"Tiveram medo da vacina"

Cultura indígena bate de frente com orientações de combate à covid e notícias falsas sobre imunizantes

Maria Teresa Cruz, Bruna Barbosa (Texto) e Tommaso Protti (Fotos) Colaboração para o UOL, em São Paulo e em Cuiabá

A Estrada Turística do Jaraguá é o caminho para o ponto mais alto da cidade de São Paulo, entre Pirituba e Perus, na zona noroeste. E também leva à Terra Indígena do Jaraguá, que tem cerca de 630 habitantes em seis aldeias que ocupam 532 hectares. O povo guarani vive em constante embate com a especulação imobiliária, que tem avançado pela região.

Eles mal tinham se recuperado de uma dessas lutas, no início do ano passado, quando a OMS (Organização Mundial da Saúde) anunciou oficialmente a pandemia do coronavírus. Logo, o Grupo Temático Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva alertou para a vulnerabilidade da população indígena.

"Experiências anteriores mostram que doenças infecciosas introduzidas em grupos indígenas tendem a se espalhar rapidamente e atingir grande parte dessas populações, com manifestações graves em crianças e idosos", dizia a nota, de março do ano passado.

Uma das jovens lideranças guarani, Thiago Henrique Karai Djekupe, 27, disse que as orientações de isolamento foram recebidas com "uma tristeza muito grande" por lá.

A realidade da comunidade é muito diferente. As pessoas não têm banheiro, as casas são pequenas, às vezes um cômodo comporta duas famílias. A pergunta imediata foi: como vamos fazer essas práticas se não temos condições? E então veio a ideia de se autoisolar dentro da comunidade."

O UOL se comprometeu a não ter contato muito próximo com nenhum morador quando esteve por lá, no início deste mês.

"Muita gente teve medo de tomar a vacina"

Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), mais de 1 mil indígenas já morreram em decorrência da covid-19 desde março do ano passado. Na Terra Indígena do Jaraguá não houve mortos, mas, segundo Karai Djekupe, ao menos 76 pessoas se contaminaram. No início de junho, sete casos positivos estavam sendo monitorados.

Os indígenas entraram no grupo prioritário de vacinação contra covid-19 em janeiro. Quase todas as pessoas acima de 18 anos foram vacinadas no Jaraguá. Dois líderes espirituais se negaram a tomar vacina por conta desta condição. E outro indígena não quis, por causa de fake news —um problema que atinge muitas aldeias.

Embora grande parte dos guarani fale mbya, variação dialetal, o contato com os não indígenas é frequente —inclusive pela internet.

Aquelas histórias de que a vacina matava, que era uma fraude, chegaram à comunidade. E como alguns nem sabem falar direito o português e ouviam essas coisas, começavam a pensar que poderia ser uma estratégia do governo para acabar com nosso povo. Muita gente teve medo de tomar a vacina e foi difícil o processo de convencimento, de conscientização.

Thiago Henrique Karai Djekupe, liderança guarani

"Os mais velhos falam que passaram por coisas piores"

A área onde estão as seis aldeias é insuficiente para que os guarani plantem a própria alimentação. A maioria trabalha em atividades que foram prejudicadas pela pandemia e o grupo passa por dificuldades.

"A maioria da comunidade vivia mesmo de artesanato, palestras, de apresentação cultural de músicas, cantigas, atividade com arco e flecha, de dança...A gente recebia escolas ou ia para escolas, só que toda essa articulação foi interrompida e isso trouxe um impacto social enorme", conta o jovem.

Para o sanitarista e especialista em saúde indígena Douglas Rodrigues, em todo o país, os indígenas foram a própria "salvação" nas aldeias. Eles se uniram e buscaram desenvolver o trabalho de conscientização e quais são as formas de proteção. Até a internação era questionada, no início, pois muitos não queriam se distanciar das famílias.

Embora ainda esteja difícil, o principal impacto foi no início. Faltaram políticas diferenciadas. Dou como exemplo o auxílio emergencial: implicou no deslocamento enorme de indígenas para centros urbanos. Se expõem, adoecem e levam para as aldeias. Não houve uma forma diferenciada de acesso.

"Os meninos mais esclarecidos ajudaram"

As fake news atrapalharam a vacinação do Pará. O biólogo Luis Carlos Sampaio, que atua no Instituto Kabu, de apoio às aldeias kayapó, conta que, quando os imunizantes chegaram, muitos indígenas se recusaram a tomar por causa das notícias falsas que falavam de efeitos graves.

Das 12 aldeias, apenas em uma tomaram, porque os meninos mais esclarecidos conversaram com todo mundo. Nas outras, a vacina ficou parada e o estado acabou puxando de volta."

Por lá, as visitas estão mais restritas. No início da pandemia, organizações nacionais e internacionais doaram produtos de higiene, de limpeza e alimentos. Agora, ninguém passa fome, diz Sampaio.

Em meio à preocupação com a pandemia, a luta pelas terras continua. Em agosto do ano passado, os kayapó bloquearam a BR-153 na região de Novo Progresso, para pedir a renovação do plano que prevê compensação por danos ambientais e sociais por causa da construção e asfaltamento da rodovia. A briga foi parar na Justiça.

Em Mato Grosso, os indígenas se mobilizaram para defender assistência adequada. "Nossa ideia foi não esperar somente as ações de governo", afirma o presidente do Conselhos Distritais de Saúde Indígena Xavante, Clarêncio U'repariwe Tsuwate.

Com apoio de outras entidades, ele fundou a SOS Xavante —que ajudou na confecção de máscaras e na compra de produtos de higiene, oxímetros, concentradores de oxigênio e remédios, entre outras ações.

"No começo foi muito impactante, porque éramos obrigados a usar máscaras na cidade, mas não tinha como conseguir a matéria-prima e a máquina de costura."

Quando a gente fica cabisbaixo, começa a querer cair, os mais velhos falam que passaram por coisas piores. Aí a gente se mantém firme. Não há escolha, a gente tem que resistir. É o único caminho possível."

Thiago Henrique Karai Djekupe, liderança guarani da Terra Indígena do Jaraguá

Muito além de 500 mil mortes

Imagine se toda a população de uma cidade como Florianópolis desaparecesse em pouco mais de um ano. Segundo estimativa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a capital de Santa Catarina tem 508 mil habitantes —pouco mais do que os 500 mil mortos por causa da covid-19 em todo o país em 15 meses.

Em meio ao luto —hoje, são cerca de 2 mil mortes por dia, em média—, nosso país também enfrenta os efeitos colaterais da pandemia do coronavírus, como o aprofundamento da desigualdade social. A quantidade de famílias em extrema pobreza e o desemprego bateram recorde.

No pior ponto da crise social, o UOL conversou com quem está se virando para sobreviver na pandemia —seja com doações, trabalhando incansavelmente ou atravessando a cidade em uma moto para entregar comida, enquanto não tem certeza de que ele mesmo irá almoçar.

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