Kayapós queimam ofício da Funai e dizem que órgão é "inimigo" dos indígenas
Resumo da notícia
- Indígenas bloqueiam a rodovia BR-163, em Novo Progresso, desde segunda-feira em protesto contra risco de perda de apoio a projetos na região
- Funai em Brasília diz que está aberta à negociação, mas diz que há dúvidas do DNIT sobre a renovação do programa de apoio aos indígenas
Os indígenas kayapós que bloqueiam a rodovia BR-163, em Novo Progresso (PA), queimaram um ofício enviado pela Funai e prometem resistir a uma ordem de desobstrução. Em um texto entregue aos índios, o órgão indigenista apresentou um cronograma de negociação de um programa de apoio a projetos dos indígenas que só acabaria por volta de fevereiro.
A renovação, que é parte de um processo de compensação por danos ambientais e sociais causados aos indígenas pela construção e asfaltamento da rodovia, deveria ter ocorrido em dezembro passado, segundo os kayapós.
Após a queima do documento da Funai, o vice-presidente do Instituto Kabu, entidade que coordena os projetos indígenas, Mydjere Mekragnotire, denunciou a ausência de representantes do governo federal nas negociações sobre o bloqueio da rodovia e chamou a Funai de "inimiga dos kayapós". Desde o início do protesto na segunda-feira (17), segundo os indígenas, a União não enviou representante para dialogar com os indígenas sobre as suas reivindicações.
Os índios bloqueiam os dois lados da rodovia, o que chegou a gerar um congestionamento de até 30 km nesta quinta-feira, de acordo com os manifestantes. Após uma decisão judicial, os indígenas chegaram a liberar o trânsito na noite de quarta-feira, mas na manhã de hoje retomaram o protesto.
"O que acontecer aqui vai ser de responsabilidade do governo federal. Se não vierem aqui resolver o problema. Se eles mandarem Polícia Federal, Polícia Civil, Forças Armadas. Esse asfalto aqui vai derramar de sangue. Sangue de polícia federal, de não indígena e de nós, kayapó. Para isso não acontecer, que o governo federal, que os nomes que forem citados, venham conversar com a gente, venham falar com nós", disse Mydjere.
Fragilização do combate ao desmatamento
A Funai enviou aos indígenas uma comunicação subscrita não pelo presidente, mas pela coordenadora do setor de licenciamento ambiental, Carla Fonseca de Aquino Costa. Ela argumentou que "desde março de 2020 estão sendo realizadas tratativas para renovação do PBA-CI para os próximos cinco anos". O PBA-CI é o Programa Básica Ambiental-Componente Indígena, elaborado como condicionante para a emissão da licença de instalação do projeto de pavimentação da BR-163. O primeiro estudo de impacto ambiental foi realizado ainda em 2002.
A partir da definição do PBA, os indígenas se organizaram em torno do Instituto Kabu e passaram a receber as compensações financeiras e a desenvolver projetos em várias áreas, entre as quais a preservação da floresta de duas terras indígenas que somam 6 milhões de hectares, no Pará. Conforme os indígenas, o programa deveria ser revalidado no final de 2019, mas as negociações não avançaram até agora e o instituto passou a sofrer as consequências da interrupção do repasse dos recursos.
As dificuldades do instituto podem abrir espaço para a fragilização dos projetos, entre os quais a fiscalização dos territórios indígenas, que são alvo constante de exploração clandestina de madeira e ouro, além de prejudicar o combate à pandemia do novo coronavírus.
No ofício, a coordenadora da Funai afirma que o responsável pela obra da rodovia, o DNIT (Departamento Nacional de Transportes), "demonstrou a impossibilidade de se quase duplicar os valores já aplicados no novo ciclo" e que, por isso, "está sendo trabalhada" a renovação do PBA-CI "com participação ativa da Funai, além de suas atribuições institucionais", que seria apenas de "avaliação da proposta por parte do empreendedor".
Carla diz ainda que foram empenhados R$ 1,9 milhão do órgão para o Instituto Kabu e que o valor deveria ser liberado em breve.
'Funai, vocês foram criados para nos defender', diz líder indígena
Em um vídeo compartilhado nas redes sociais, Mydjere afirmou que a carta da Funai "não diz nada para nós, não fala quando vai ser renovado o PBA". Os índios querem a destituição de Carla do cargo de coordenadora.
"No documento a gente pediu a exoneração dela porque precisamos a Funai a nosso favor. Hoje a Funai é inimiga de nós. Hoje a Funai não quer atender os indígenas. Funai, vocês foram criados por nós, vocês foram criados para nos defender. Todas as nossas demandas estão dentro da Funai, depende da Funai", disse o vice-presidente do instituto.
"Precisamos a presença aqui do presidente do Ibama, do pessoal do DNIT, do presidente da Funai, ministro ou secretário da Saúde Indígena, que venha aqui para conversar para agente. Enquanto não vierem, vamos continuar com a [rodovia] BR bloqueada, não vamos liberar. Somos Kayapó e vamos esperar."
'Estamos defendendo a proteção da Amazônia'
Em resposta ao ofício enviado pela Funai, os kayapós redigiram outra carta e a enviaram ao presidente do órgão, o delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier. Ele disseram que a renovação do PBA está atrasada, que não aceitam o cronograma encaminhado pelo órgão e que "a saúde indígena está cada vez mais fraca". Os indígenas pediram a exoneração de Carla Costa, "funcionária do Ministério do Meio Ambiente e está na Funai travando a liberação do nosso PBA".
"Nosso manifesto é pacífico, não queremos brigar. Não aceitamos o Exército, a Polícia Federal ou Polícia Militar vir aqui nos tirar à força. Desse jeito vai ter sangue derramado nesse asfalto. Estamos aqui defendendo a proteção da Amazônia, a proteção do nosso território. O governo quer abrir as terras indígenas para projetos que são ilegais, como garimpo, extração de madeira e arrendamento de pasto em nossas terras. Isso nós não aceitamos. Todo projeto deverá ser discutido e construído com as comunidades indígenas. Não aceitaremos o governo fazer imposição ou atropelar os nossos direitos", diz a carta.
'Diálogo segue aberto', diz Funai
Em mensagem à coluna, a Funai em Brasília disse que "o diálogo segue aberto com a etnia e jamais foi interrompido por parte da Funai". Reafirmou que "desde março de 2020 estão sendo realizadas tratativas com participação ativa da fundação junto à etnia e ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) a fim de renovar o PBA-CI para os próximos 5 anos".
O órgão disse que uma "proposta de cronograma" foi enviada ao Instituto Kabu, na qual "consta a solicitação de realização de reuniões virtuais, como forma de atendimento ao protocolo de consulta no contexto da pandemia, justamente para garantir maior celeridade na finalização do cronograma e evitar a descontinuidade das ações de mitigação do empreendimento. Com base no pleito realizado pelo Instituto Kabu, a previsão seria de expansão da abrangência dos programas ambientais".
A Funai diz que "o DNIT demonstrou a impossibilidade de quase duplicar os valores já aplicados no novo ciclo, e que a previsão do PBA-CI era que somente as ações de Proteção e Fiscalização fossem realizadas durante toda vida útil do empreendimento".
O órgão mencionou que, em 7 de agosto, "foi assinado o sexto termo aditivo entre a Funai e o Instituto Kabu. Para a realização das atividades, está sendo repassado o valor de R$ 1.925.784,39, cuja nota de empenho foi assinada em 14 de agosto. Além desse valor, foram repassados mais R$ 675.000,00 ainda este ano."
A Funai diz que desde o início do PBA, em 2008, "houve o repasse de cerca de R$ 39 milhões para execução" do Plano e a renovação proposta pelos indígenas foi orçada pelo DNIT em R$ 68 milhões para o período de 5 anos". O órgão não explicou se o primeiro valor sofreu correção monetária ou valorização.
"Sobre a concessão da BR-163/PA, a qual não intercepta nenhuma TI [terra indígena], a mitigação dos impactos é independente do empreendedor ser público ou privado, conforme já mencionado em momentos anteriores, inclusive em reuniões com a participação dos indígenas. Ademais, não se sabe ainda se a concessão da rodovia será considerada como viável pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Por isso, qualquer consulta no presente momento seria prematura", diz a Funai.
O órgão diz que "faz-se necessária cautela para averiguar se as medidas propostas e realizadas tiveram efetividade, bem como se as ações definidas para serem incrementadas ou renovadas possuem o devido nexo causal, razoabilidade e proporcionalidade".
Por fim, a fundação diz que "seus servidores atuam no processo de forma íntegra, ética e transparente, dentro da legalidade, seguindo todos os preceitos e normas da Administração Pública. A Funai também repudia qualquer tipo de agressão ou coação a servidores. O presidente da Funai, Marcelo Xavier, lamenta a postura adotada pelo Instituto Kabu ao promover o bloqueio da BR 163/PA, gerando aglomeração e tumulto em plena pandemia, situação que coloca a saúde dos indígenas em risco".
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