"Almoçar é raridade"

Motoboys cruzam a cidade para entregar as refeições, mas sem garantia da própria saúde

Leonardo Martins, Maria Tereza Cruz (Texto) e Tommaso Protti (Fotos) Do UOL e Colaboração para o UOL, em São Paulo

Formado em marketing, Claudio Francisco de Carvalho Junior, 37, faz entregas por aplicativo na cidade de São Paulo há um ano. Ele atua em uma área nobre do centro expandido da capital —passando pela Paulista, Aclimação, Bom Retiro, Barra Funda, Perdizes e Pompeia.

No início da pandemia de covid-19, Carvalho encontrou no delivery uma oportunidade para se manter. Hoje, conta que as dificuldades são muitas, desde situações delicadas no trânsito, a pressão para a entrega rápida, passando por uma remuneração que chega perto da dignidade só se as jornadas passarem de 12 horas diárias.

Quando a reportagem perguntou sobre o almoço, o motoboy, que entrega refeições, riu:

Nesse ramo, almoçar é raridade".

De acordo com Carvalho, os restaurantes reduziram suas equipes por conta da crise —por isso, os pratos demoram para ficarem prontos. Para ganhar tempo entre o pedido e a entrega, o motoboy tem que se esforçar.

"Isso força a gente a correr para a comida não esfriar", diz.

Ele calcula que recebe, em média, a cada 15 dias, R$ 2.300. "Mas trabalhando umas dez, 12 horas por dia. E tem a manutenção da moto para colocar na conta, que fica em R$ 500, R$ 700."

Por causa da correria e do baixo rendimento, tem dias que Carvalho almoça só no fim da tarde.

Agora, jantar? Só Deus sabe quando o entregador vai parar à noite para comer".

"No começo, foi muito no improviso"

Para amenizar a rotina cansativa e faminta dos motoboys, uma padaria em Pinheiros, zona oeste, montou uma mesa com café, bolo e salgados.

"A pandemia fez com que nós começássemos a atender por aplicativo. Os motoboys precisavam levar os produtos e nós, preparar as entregas", diz Paulo José Cardoso, 45, um dos donos da padaria CPL.

"No começo, foi muito no improviso, alguns ficavam impacientes. E nós não podíamos bater de frente porque, no final, é um trabalho de equipe."

O café foi uma forma que encontramos de fazer um meio campo. Quando é um pedido de preparo fácil, a saída é rápida. Mas pedidos mais complexos levam mais tempo. Então, eles podem aproveitar para fazer uma pausa e comer. Foi uma forma de mantê-los próximos e o clima ficou muito mais leve."

Na Paróquia Senhor Bom Jesus dos Passos, também em Pinheiros, a distribuição de refeições completas para os motoboys acontece às sextas-feiras e aos sábados. E não é raro encontrar filas no local.

A igreja costumava doar marmitas a moradores de rua, de cortiços e ocupações. Com a pandemia, entregadores de comida também entraram no grupo.

"Tem lugar que não dá um copo de água"

Os motoboys David, 27, e Francisco, 31, se conheceram na padaria. "É o único estabelecimento que eu conheço que faz isso [oferece alimento]. Tem café, pãozinho, às vezes mortadela, salgados. É legal, um reconhecimento do nosso trabalho", avalia David. "Tem lugar que não dá um copo de água."

Os dois também viraram entregadores de comida por causa da pandemia. Ao UOL, eles preferiram não revelar os sobrenomes.

David trabalhava como motorista de aplicativo com um carro alugado, mas, em março do ano passado, devolveu o carro à locadora depois que os boletos ficaram mais caros. Nessa época, Francisco trabalhava como atendente em um restaurante e foi demitido.

Sem rumo e sem dinheiro, compraram suas motos, baixaram um aplicativo de delivery e, desde então, saem da zona leste da cidade todos os dias em direção ao centro da capital.

No começo da pandemia, ainda fiquei uns dias parados depois de ser demitido, estava com medo do vírus. Mas precisava pagar as contas. Foi a única solução. Quem não tinha moto, comprou. Quem não tinha grana para moto, foi de bicicleta. Se virar para ganhar o pão de cada dia.

Até agora, os dois não pegaram covid-19. Mas David perdeu um tio e Francisco, alguns amigos. Os dois dizem que tiveram receio quando começaram a trabalhar com entregas.

"A rotina é cansativa e perigosa. É difícil trabalhar e entrar pra dentro de casa, o medo dobrou", diz David.

Mas o que mais incomoda a dupla é o preconceito. "Para os ricos, motoboy tem fama de ladrão. Fama de ser folgado", afirma David.

Os entregadores de aplicativos não são contratados formalmente. Por isso, não recebem benefícios como vale-refeição ou plano de saúde.

Segundo estimativa do Sindmoto (Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Moto-Taxistas do Estado de São Paulo):

  • A cidade de São Paulo tem em torno de 320 mil motociclistas.
  • No estado, são 650 mil.

A entidade calcula que houve aumento de 20% a 25% no número de motociclistas que passaram a atuar profissionalmente com entregas e outros serviços neste ano, na comparação com 2020.

Ao UOL, o aplicativo de entrega iFood informou que conta com cerca de 200 mil entregadores ativos na plataforma em todo o Brasil. No início do ano passado, eram 150 mil. Eles trabalham, em média, 26 horas por mês, de acordo com a empresa.

O app afirma que "desde março de 2020, mais de R$ 133 milhões foram destinados para garantir a proteção à saúde e cuidados dos entregadores". Entre as iniciativas, estão a distribuição de kits de proteção e valor para a compra dos equipamentos, e benefícios que dão desconto de até 80% para consultas médicas, dentistas e exames, além de auxílio financeiro para quem apresentar sintomas ou fizer parte dos grupos de risco para covid-19.

Os entregadores que necessitam parar por causa da doença recebem "um valor baseado na média dos seus repasses nos últimos 90 dias".

Muito além de 500 mil mortes

Imagine se toda a população de uma cidade como Florianópolis desaparecesse em pouco mais de um ano. Segundo estimativa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a capital de Santa Catarina tem 508 mil habitantes —pouco mais do que os 500 mil mortos por causa da covid-19 em todo o país em 15 meses.

Em meio ao luto —hoje, são cerca de 2 mil mortes por dia, em média—, nosso país também enfrenta os efeitos colaterais da pandemia do coronavírus, como o aprofundamento da desigualdade social. A quantidade de famílias em extrema pobreza e o desemprego bateram recorde.

No pior ponto da crise social, o UOL conversou com quem está se virando para sobreviver na pandemia —seja com doações, trabalhando incansavelmente ou atravessando a cidade em uma moto para entregar comida, enquanto não tem certeza de que ele mesmo irá almoçar.

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