"A gente tá vivendo como dá"

Na periferia, moradores se ajudam, procuram bicos e dependem de doações

Maria Teresa Cruz (Texto) e Tommaso Protti (Fotos) Colaboração para o UOL, em São Paulo

A família de Rosilene Maria Ferreira da Silva, 41, vive de bicos e doações. "Não repara a bagunça", diz a auxiliar de limpeza desempregada, ao abrir a porta da casa de quatro cômodos e um banheiro onde vivem oito pessoas, quatro gatos, dois cachorros e uma tartaruga, no Jardim Peri Alto, na zona norte de São Paulo.

Antes da pandemia de covid-19, ela conta, eles "viviam com dificuldade, mas até que era estável".

Agora, a gente tá vivendo como dá. Os filhos fazem bico, o que aparece, ajudante de pedreiro, carreto. Meu marido também, mas é pouca renda, não passa muito de R$ 250. Eu peguei o auxílio de R$ 150 e o ano passado, de R$ 600. Impactou muito essa diferença."

O Brasil tem mais de 14,8 milhões de desempregados, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) —o maior contingente de pessoas em busca de trabalho desde o começo da série histórica, em 2012.

Na periferia de São Paulo, não é difícil encontrar histórias como a de Rosi: famílias numerosas vivem na mesma casa e estão sem renda, pois todos trabalhavam em serviços autônomos ou estabelecimentos que foram fechados.

A auxiliar de limpeza diz que largou o vício do crack há dois anos. "Saí por mim mesma e pelo amor de minha mãe, que veio do Recife me tirar dessa situação", lembra, emocionada. Agora, faz planos para quando a pandemia acabar.

"Se um dia eu tiver condições, quero ir para um lugar maior, para ter um lugar para os meus filhos dormirem e poder cuidar deles, enquanto eles quiserem."

Sem conseguir fazer o isolamento social, os moradores da periferia convivem de perto com a covid-19.

Os inquéritos sorológicos realizados pela Prefeitura de São Paulo apontam que os bairros de menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) —ou seja, com menos qualidade de vida— mantêm uma incidência maior de casos. Desde o começo da pandemia, as regiões mais vulneráveis da cidade são as que somam mais mortes por causa do coronavírus.

Levantamento divulgado em maio deste ano indica que:

  • 36,2% da população não vacinada de bairros com baixo IDH tiveram a doença,
  • 33,7% nas regiões de IDH médio, e
  • 29,9% nas de alto.

"Temos um esquema: eu pego marmitex e meus filhos, frutas e verduras"

Também no Jardim Peri Alto, a lavadeira Cleide de Souza Nascimento, 40, mora com cinco dos sete filhos. Lá, a covid não chegou. Mas a dengue, sim. "Um dos meus filhos pegou. Ficou duas semanas ruim", conta.

Com pouco dinheiro, Cleide também depende de doações. Além das cestas básicas, às terças-feiras, a cada 15 dias, garante as sobras da feira livre —quando o UOL esteve em sua casa, viu uma sacola com verduras que ela havia recebido. "Eu e meus meninos saímos e temos um esquema: eu vou pegar o marmitex enquanto eles vão pegar frutas e legumes."

Ela também se vira com reciclagem. "Quando é muito bom, coletamos uns R$ 35 por dia."

Apesar das dificuldades, Cleide faz planos com o namorado de 23 anos, para depois da pandemia. "Quero que a gente possa voltar a respirar. E sem máscara", diz, sorrindo.

"Quem menos tem é quem mais ajuda"

Perto dali, na Brasilândia, a cozinheira Joana Darc dos Santos, 55, prepara, em média, 180 marmitas por dia para a comunidade, em parceria com a associação de moradores. "A gente faz alimentação para ajudar quem precisa nessa pandemia, porque sabemos que muita gente ficou desempregada."

Joana começou a fazer marmitas ainda no ano passado.

Eu achei que isso ia acabar rápido e o que a gente está vendo são as pessoas cada vez mais com dificuldade de ter o alimento na mesa. O curioso é que quem menos tem é quem mais ajuda a gente. A desigualdade já era grande, mas sinto que piorou. Tem gente passando muita necessidade. É de doer o coração."

A mineira Nilva Aparecida Correia, 58, que perdeu a visão pouco antes da pandemia, conta com a marmita de Joana para alimentar a família. A filha dela morreu há quatro meses de overdose e deixou aos cuidados dela os seis netos. "A gente vive porque tem que viver mesmo, porque gosta da vida, apesar de todo o sacrifício."

"Eles não dão chance para ninguém ter uma dignidade"

Sem emprego e sem renda, a manicure Odila Chaves, 36, também perdeu o teto no fim de maio, em uma reintegração de posse. Ela vivia em um terreno ao lado do conjunto habitacional na Avenida General Penha Brasil, Vila Dionísia, na zona norte, com mais 200 famílias. As casas, basicamente construídas com madeira, telha e placas de compensado, foram demolidas por uma retroescavadeira.

A reportagem esteve no local no dia da reintegração e encontrou famílias tentando recuperar seus pertences e preocupadas com a falta de lugar para dormir.

"A gente está aqui na luta há seis meses, porque o aluguel está difícil. Eles não dão chance para ninguém ter uma dignidade. Estão colocando mãe e pai de família desempregado na rua. Estão tirando as pessoas como se não fossem nada. A gente está saindo com uma mão na frente e outra atrás", diz Chaves, 36 anos.

Ela conta que, junto com o marido, pagava aluguel de R$ 950 no imóvel onde morava com os seis filhos. Mas, em fevereiro deste ano, foram despejados, porque não tinham como arcar com a despesa.

História semelhante é a do feirante Anderson Eduardo, 32, que foi demitido por causa da pandemia. Ele tinha comprado um freezer usado e estava vendendo bebidas na comunidade, além de alguns bicos para garantir o sustento dos três filhos. "Agora minha esposa e as crianças foram para um lado, eu vou para a Barra Funda e estou tentando garantir que ao menos a geladeira e o fogão fiquem a salvo."

O terreno onde as famílias viviam pertence ao missionário R.R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus. A assessoria da congregação afirma que o espaço foi invadido no fim do ano passado. De acordo com as mensagens enviadas ao UOL, o objetivo era construir um templo no local e já havia um projeto antes da pandemia.

A assessoria diz ainda que houve reuniões com autoridades antes da reintegração de posse e a Prefeitura "se dispôs a atender" as famílias. "A reintegração seguiu rigorosamente todos os requisitos determinados pela Justiça e pelos órgãos públicos", relata o texto.

Em nota, a Prefeitura de São Paulo informou que a Supervisão de Assistência Social Casa Verde/Cachoeirinha cadastrou as famílias que ocupavam o terreno e orientou sobre a rede de acolhimento e assistência. A administração municipal também afirmou que a área é particular e que a reintegração de posse foi decidida pela Justiça.

Neste mês, a Assembleia Legislativa aprovou um projeto de lei para suspender ações de despejo e reintegração de posse durante a pandemia no estado. Agora, o texto depende da sanção ou não do governador João Doria (PSDB).

Muito além de 500 mil mortes

Imagine se toda a população de uma cidade como Florianópolis desaparecesse em pouco mais de um ano. Segundo estimativa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a capital de Santa Catarina tem 508 mil habitantes —pouco mais do que os 500 mil mortos por causa da covid-19 em todo o país em 15 meses.

Em meio ao luto —hoje, são cerca de 2 mil mortes por dia, em média—, nosso país também enfrenta os efeitos colaterais da pandemia do coronavírus, como o aprofundamento da desigualdade social. A quantidade de famílias em extrema pobreza e o desemprego bateram recorde.

No pior ponto da crise social, o UOL conversou com quem está se virando para sobreviver na pandemia —seja com doações, trabalhando incansavelmente ou atravessando a cidade em uma moto para entregar comida, enquanto não tem certeza de que ele mesmo irá almoçar.

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