Repressão aos negros

Documentos mostram como a ditadura espionou movimento contra o racismo, com agentes infiltrados e perseguições

Carlos Madeiro Colaboração para o UOL, em Maceió Folhapress

A ditadura militar instaurada há exatos 55 anos no Brasil espionou, perseguiu e minou a luta de movimentos raciais no Brasil na segunda metade da década de 1970 e início de 1980. Documentos confidenciais obtidos pelo UOL junto ao Arquivo Nacional revelam que militares se infiltraram nos grupos, ficharam os líderes e tentaram a todo custo impedir que a luta dos negros crescesse.

Segundo os documentos, o movimento negro se configurava um problema porque repudiava o regime, contestava a propaganda oficial de um país sem racismo e encampava a necessidade do restabelecimento da democracia.

Para a ditadura, o racismo servia ainda como "desculpa" para a criação de grupos que visavam prejudicar a "ordem social" do país. Além disso, os relatórios viam ligação estreita entre muitos desses líderes e movimentos de esquerda que lutavam contra o governo militar.

Durante o regime, 41 líderes negros morreram ou desapareceram após supostas ações militares, segundo dados da Comissão da Verdade de São Paulo. Há ainda relatos por todo o país de centenas de prisões políticas e casos de tortura envolvendo integrantes de lutas contra o racismo.

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Nos anos 1970, a luta ressurge

A percepção dos militares de que haveria risco com o movimento negro teve início em meados da década de 1970. No dia 7 de fevereiro de 1975, um primeiro informe expedido pelo Exército foi encaminhado ao SNI (Serviço Nacional de Informações) e ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social) com informações de um grupo no Rio de Janeiro "liderado por jovens negros de nível intelectual acima da média".

O documento cita que havia influência norte-americana para os jovens, que, inspirados, estariam "com pretensões de criar no Brasil um clima de luta racial entre brancos e pretos". O movimento negro dos Estados Unidos é citado em vários desses documentos como responsável por "inspirar" negros no país. A partir dali, a ditadura abriu os olhos e passou a espionar possíveis grupos.

Em um extenso relatório assinado pelo SNI em 25 de julho de 1978, o órgão do governo afirma que a observação começou de fato em 1976, quando "os órgãos de informações tiveram suas atenções despertadas para a proliferação, nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, de associações culturais destinadas à propagação da cultura negra no Brasil".

O documento pede uma observação especial para evitar a adesão de mais pessoas. "Embora não se constitua, no momento, em um 'movimento de massa', o nível alcançado lhe confere evidente importância, com possibilidades de evoluir com proporções prejudiciais à ordem política e social."

Em agosto de 1978, um documento da Polícia Federal do Rio Grande do Sul mostra como os órgãos de investigação da ditadura tiveram preocupação. "Esses movimentos revelam o incremento das tentativas subversivas de exploração de antagonismos raciais em nosso país, merecendo uma observação acurada das infiltrações no movimento 'black', tendo em vista que, se porventura houver incitação de ódio ou racismo entre o povo, caberá a Lei de Segurança Nacional", dizia num trecho (reproduzido abaixo).

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Movimento espionado

Secreto por muitos anos, um outro documento do Ministério do Exército de outubro de 1979 mostra como os militares infiltraram pessoas dentro do recém-criado MNU (Movimento Negro Unificado). "O método utilizado foi a infiltração em entidades dedicadas ao estudo da cultura negra, por meio de palestras em reuniões e simpósios", informou.

A investigação espiã deixou clara uma preocupação específica com a Bahia, que estaria liderando o movimento com a temática negra no país. Da espionagem saíram nomes de líderes que deveriam ser acompanhados. Muitos deles viriam a ser presos numa tentativa de enfraquecer o movimento.

"Esta foi mais uma manifestação do MNS [Movimento Negro de Salvador], que vem elaborando uma campanha artificial contra a discriminação racial no BRASIL e, em particular, na BAHIA", diz um trecho do texto, citando um evento realizado pela organização.

"Ficou delineado que, em SALVADOR, os 'centros de luta' têm por função 'mobilizar, organizar e conscientizar a população negra nas favelas, nas invasões (de terras urbanas), nos alagados, nos conjuntos habitacionais, nas escolas, nos bairros e nos locais de trabalho, visando a formar uma consciência dos valores da raça'", completa o documento.

Há registro de que a perseguição continuou até o início de abertura política, com a entrada de João Figueiredo (1979-1985) no poder. Em documento de 7 de junho de 1981, o SNI faria um informe de "propaganda adversa" do jornal "O Trabalho". À época, a publicação abordava, entre outros pontos, que "o negro, na medida em que se organiza, passa a ser considerado um perigo".

O serviço pediu atuação para impedir a circulação. "Da análise empreendida, verifica-se que o jornal 'O TRABALHO', em seu exemplar n° 9 106, de 20 a 26 de maio de 1981, volta a infringir dispositivos que permitem o seu enquadramento legal."

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Segundo país mais negro do mundo

Para o professor da USP (Universidade de são Paulo) Ricardo Alexino Ferreira, a ideia central da ditadura era "ter controle sobre tudo e todos", por isso a criação de movimentos sociais sempre foi vista com temor.

"Qualquer movimento social seria uma temeridade para esse projeto autoritário", diz. No caso racial, Ferreira lembra que o Brasil é o segundo país mais negro do mundo, e a união de pessoas pela raça poderia apresentar riscos ao regime.

"O racismo ira causar um movimento gigante. Ainda mais que o negro brasileiro começava a observar a luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos. Nomes como os de Rosa Parks, Martin Luther King, Malcom X e os Panteras Negras já eram inspiração para muitos negros brasileiros", afirma.

Um dos nomes mais citados nos documentos confidenciais da ditadura era o do ativista Abdias do Nascimento, visto como uma liderança intelectual. "Naquela época, Abdias do Nascimento já trazia para o Brasil o 'Teatro Experimental do Negro', que criou a cultura negra norte-americana de resistência", diz Alexino Ferreira.

Alto poder de contestação

A professora Flávia Rios, da UFF (Universidade Federal Fluminense), afirma que o temor dos militares aos movimentos negros tem vários fatores de influência.

"Um deles é que muitos integrantes do movimento negro também eram integrantes de outras organizações semiclandestinas, ou mesmo clandestinas, de esquerdas políticas organizadas, marxistas, trotskistas, comunistas e outras denominações. Isso os colocava em um circuito já de constante observação da ditadura", afirma.

Outra questão geradora de incômodo aos militares era que os movimentos traziam ao debate o racismo e a discriminação no Brasil. "Isso ia de encontro ao discurso oficial de democracia racial no país. Enquanto isso, o Estado se representava nacionalmente e internacionalmente como um país que não tinha conflitos, desigualdade nem discriminação", aponta ela.

Um terceiro fator notado pela professora foi a influência do movimento negro norte-americano e movimentos de libertação dos países africanos. "A questão racial no mundo era bastante emblemática, bastante significativa e de um alto poder mobilizatório de contestação. Em particular, por exemplo, temos os panteras negras, de quem as ideias chegavam às lideranças negras e ativistas negros brasileiros. Havia um temor da ditadura em relação a essas ideias, que eram revolucionárias", diz.

Na época, a organização cultural de bailes, por exemplo, também era vista com grande preocupação. "No Rio, em São Paulo e na Bahia, os bailes 'black' eram recepção das ideias de orgulho negro americano e aglomeravam a juventude negra. Eram grandes salões com espaço para mais de 2.000, 3.000 pessoas reunidas. E esses negros jovens eram tidos como um temor pelo aglomerado, sobretudo das periferias", afirma a professora.

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Uso de 'arapongas'

O professor Andersen Figueiredo, mestre em história pela UFRB (Universidade Federal do Recôncavo Baiano), fez sua dissertação com base nos ataques aos movimentos negros da Bahia no regime militar. Ele conta que havia constante perseguição aos líderes.

"Sempre que eles deixavam as reuniões, eram rotineiramente vigiados, seguidos pelos agentes da polícia. Foi um momento tenso para todos que militaram na década de 1970 e início de 1980", afirma.

Muitas dessas perseguições, diz, vinham de informações adquiridas pelo monitoramento oficial, seja com pessoas infiltradas, seja por fotografias ou mesmo acesso a conteúdo de encontros.

"Uma das pautas era como o negro poderia se inserir na política para retomada da democracia. As reuniões eram clandestinas, podiam ocorrer em vários bairros, sem prévia convocação. Isso foi ganhando espaço, e não havia locais para esses militantes se reunirem por causa da perseguição da polícia à época. Os 'arapongas' iam para ver o que estava sendo discutido", afirma.

Por conta do monitoramento dos movimentos, quem participava das reuniões sofria constantes abusos. "Além de perseguidos, muitos ativistas foram presos, outros perderam seus empregos por frequentar as reuniões do movimento negro. Também houve uma perseguição psicológica", lembra.

Mortos ou desaparecidos foram 41 durante o regime. O último documento disponível no Arquivo Nacional sobre espionagem aos movimentos negros data de 1981 -quatro anos antes do fim da ditadura militar.

Foram 41 mortos ou desaparecidos durante o regime. A pesquisa feita pela reportagem aponta que as perseguições e espionagem oficiais, segundo documentos do Arquivo Nacional, perduraram ao menos até 1981 -quatro anos antes do fim da ditadura militar.

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