Referência desprotegida

Colegas temem que história de técnica de enfermagem morta por covid-19 no RJ se repita: 'faltam EPIs'

Marcela Lemos Colaboração para o UOL, no Rio JORGE HELY/ESTADÃO CONTEÚDO

Amigos da técnica de enfermagem Anita de Sousa Viana, 63, que morreu na última quinta-feira (16) em decorrência de infecção pelo novo coronavírus, acusam o hospital municipal Ronaldo Gazolla, unidade de referência no tratamento da covid-19 na zona norte do Rio, de negligência no socorro à profissional e de falta de equipamentos de proteção individual (EPIs). Eles temem que o desfecho da colega se repita.

Segundo relatos de profissionais da unidade de saúde mantida pela Prefeitura do Rio, Anita tinha febre e tosse intensa e se queixava de estar ofegante. Ainda assim, só conseguiu fazer o teste para coronavírus (que deu positivo) e um leito de UTI fora do hospital em que trabalha e dias antes de morrer.

A Prefeitura do Rio nega que haja falta de equipamentos e fala em "critérios técnicos" para justificar a falta de acesso da técnica de enfermagem à UTI (leia no fim deste texto).

iStock/ljubaphoto

"Tiraram o direito dela de se tratar e tentar vencer a doença. O hospital que chamam de referência foi negligente. Não deram atenção a quem estava lá, lutando pela vida de vários pacientes diariamente"

O relato é de uma colega de Anita que não terá o nome revelado por medo de represálias.

De acordo ainda com o relato da profissional, no decorrer da semana Anita viu seus sintomas piorarem e mandou mensagens de áudio para colegas implorando por um teste.

"Alguém sabe me dizer se aí no Gazolla estão fazendo teste rápido? Pelo amor de Deus, eu preciso fazer esse teste", dizia Anita na mensagem.

Em outra mensagem, Anita reclamava da falta de assistência aos profissionais de saúde.

"Ontem eu e mais quatro estávamos gripados e ninguém fez o teste. Ninguém se preocupou em correr atrás e fazer o teste em nós".

Anita de Sousa Viana, em áudio para colegas de trabalho dias antes de morrer

ERBS JR./ESTADÃO CONTEÚDO

Mesmo trabalhando em uma unidade de referência para o tratamento da doença, Anita só conseguiu atendimento na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) de Bangu, na zona oeste da cidade, mantida pelo governo do estado. Ela deu entrada no local em 12 de abril.

Segundo informações da unidade, ela chegou ao local lúcida e com relato de tosse havia mais de cinco dias e falta de ar.

Na UPA, ela foi medicada, fez exames, piorou e foi transferida para a sala vermelha, destinada a pacientes graves. Foi colocada em um respirador até ser transferida para um hospital na cidade de Volta Redonda — a 100 quilômetros de Bangu.

"A equipe avisou que ela seria transferida e o caso já era tão grave que ela tinha risco de morrer durante a transferência", contou a profissional ao UOL.

Anita chegou ao Hospital Zilda Arns, em Volta Redonda, em 13 de março e morreu três dias depois.

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Máscara para sete dias

As profissionais que atuam no hospital Ronaldo Gazolla relataram ainda precariedade na proteção dos funcionários.

De acordo com uma delas, o macacão do tipo Tyvek, que deveria ser descartável e trocado a cada 4 horas, chega a ser utilizado no hospital por um mesmo profissional por 12 horas.

"Eram 12 horas sem poder se alimentar, sem poder ir no banheiro, sem poder beber água, só podia sair duas vezes do macacão. Houve técnicos que tiveram hipoglicemia [queda na taxa de açúcar no sangue, muitas vezes por falta de alimentação] e desmaiaram no meio do CTI", afirmou a profissional.

Elas também falam que a direção pede que as máscaras sejam reutilizadas por uma semana.

"Como usar sete dias a mesma máscara? Sem contar que a gente acaba atendendo todos os pacientes com o mesmo macacão. Cada paciente tem uma patologia diferente. Aí, você entra em um hospital com suspeita de covid-19 e saí com uma bactéria super resistente", diz a funcionária.

O que diz a Prefeitura

Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde disse que não há falta de equipamentos de proteção individual na unidade e que o uso de cada um é definido pela Anvisa. A pasta não comentou de forma específica as denúncias sobre reutilização das máscaras por sete dias nem o uso de roupa de proteção por 12 horas. Sobre o macacão Tyvek, a secretaria disse que "algumas unidades desse macacão foram testadas no Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, mas os EPIs de uso regular são [outros] estritamente os recomendados pela Anvisa".

A nota enviada à reportagem diz ainda que "a Prefeitura do Rio está investindo cada vez mais na aquisição de EPIs para os profissionais de saúde. Nesta semana, serão distribuídos 460 mil capotes para as unidades. Também foi comprado 1,1 milhão de máscaras N-95. Além disso, está prevista a chegada de mais 3 milhões de máscaras, óculos e outros itens na próxima semana".

Sobre os testes rápidos para covid-19, a pasta informou que foram realizados entre os dias 7 e 15 de abril nos profissionais de saúde e que a adesão ao teste era voluntária. Ao todo, 450 funcionários foram testados, de acordo com a pasta.

Anteriormente a pasta já havia informado que lamentava a morte da funcionária e que a transferência para um leito no hospital de referência obedece critérios clínicos definidos pela central unificada de regulação.

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