Pelas águas do rio Araguaia, parte da história do Brasil no século 20 foi contada. Naquela região distante dos centros urbanos, entre o final da década de 1960 e o inicio dos anos 1970, um movimento guerrilheiro criado pelo Partido Comunista do Brasil se formou com o objetivo de promover uma revolução e derrubar o regime militar.
O grupo armado recebeu o apoio de parte da população local, mas foi considerado uma ameaça à segurança nacional, se tornando alvo de uma ofensiva do governo a partir de 1972.
A região entre Maranhão, Pará e Tocantins se transformou então em um palco de operações militares que deram um fim ao projeto dos guerrilheiros. Em 1975, as Forças Armadas receberam uma missão secreta para enterrar na floresta os corpos de guerrilheiros e simpatizantes.
Em 2010, porém, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro no caso da Guerrilha do Araguaia por não ter punido os responsáveis pelas mortes e desaparecimentos. Na sentença de 126 páginas, o tribunal concluiu que o Estado brasileiro fora responsável pelo sumiço de 62 pessoas.
O caso parecia encerrado, mas não estava. Agora, um livro revela outra dimensão daquela operação: o sequestro de crianças. Resultado de um trabalho de anos do pesquisador Eduardo Reina, a obra desenterra revelações sobre um dos momentos de maior violência na história brasileira.
Em "Cativeiro sem Fim", publicado pelo Instituto Vladimir Herzog e pela Alameda Editorial, Reina conta como bebês, crianças e adolescentes foram sequestrados de famílias de militantes de esquerda ou de pessoas contrárias ao regime. No Araguaia, essa prática teria envolvido 11 menores de idade, filhos de guerrilheiros ou camponeses simpáticos ao movimento contra a ditadura.
Como um butim de guerra, as forças militares se apropriavam dessas vítimas, chamadas de "filhos de subversivos" ou de "bebês malditos". No Brasil, pela primeira vez, Reina descobriu 19 casos de sequestro de bebês e crianças pela ditadura. Na Argentina, há registro de 500 casos desse crime contra a humanidade.
Reina conta ao UOL que o objetivo de seu trabalho era "dar voz àqueles que foram esquecidos à força, tornados invisíveis pela história e pela mídia". "[Quis] Contar a verdadeira história da ditadura civil-militar no Brasil, no período 1964-1985, sem filtros ou pendência de narrativa. É mostrar a verdade, a realidade. Mostrar a história de pessoas que foram jogadas no buraco negro da história do Brasil. De pessoas que foram usadas pelas forças militares na ditadura. Mostrar as histórias de pessoas que vivem num cativeiro sem fim", disse.
O livro levantou com detalhes o caso de 11 crianças ligadas diretamente à Guerrilha do Araguaia, além de outras oito no Rio de Janeiro, em Pernambuco, no Paraná e em Mato Grosso.
Com a ajuda de militares, servidores públicos, funcionários de instituições e de cartórios, as vítimas foram entregues a famílias de militares e a pessoas ligadas aos órgãos de repressão. Essas histórias, até agora invisíveis, revelam traços de crueldade e que jamais foram admitidas ou investigadas pelos militares.