Justiça para indígenas

Etnia de SC aguarda decisão do STF que pode concretizar profecia de curandeiro sobre demarcação de terras

Amanda Perobelli Da Reuters, em José Boiteux (SC) AMANDA PEROBELLI/REUTERS

Empurrada para um canto degradado de suas terras ancestrais, a etnia xoclengue, presente no sul do Brasil, aguarda por uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que pode lhes devolver o território perdido há décadas.

Sentados ao lado de um fogão a lenha, anciões xoclengues se lembram dos tempos em que a abundância de peixe e de animais de caça alimentava suas famílias, antes de grande parte de suas terras férteis terem sido vendidas pelo Estado para produtores de tabaco, nos anos 1950.

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Agora, os xoclengues torcem para que a mais alta Corte brasileira cumpra a profecia que um pajé fez em seu leito de morte: de que um dia eles recuperariam suas terras.

O STF decidirá se o governo estadual de Santa Catarina aplicou uma interpretação excessivamente restrita dos direitos indígenas ao reconhecer apenas terras tribais ocupadas pelas comunidades nativas no momento em que a Constituição do Brasil foi ratificada, em 1988.

Ordem de despejo

O caso surgiu quando o governo de Santa Catarina usou essa interpretação para desalojar um grupo de xoclengues de uma reserva ambiental.

A Funai (Fundação Nacional do Índio), o órgão federal para assuntos indígenas do Brasil, apelou da decisão em nome dos xoclengues.

Foi "outra tentativa de nos eliminar", disse Brasílio Pripra, líder comunitário de 63 anos. "Nosso povo vive aqui há milhares de anos."

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O procurador-geral do estado, Alisson de Bom de Souza, que representará Santa Catarina no tribunal, disse que buscará uma decisão que respeite os direitos indígenas sem ferir outros direitos constitucionais dos brasileiros.

Os xoclengues foram retirados de suas terras tradicionais de caça há mais de um século para dar espaço aos colonos europeus, a maioria alemães fugindo da turbulência política e econômica na Europa.

A certa altura, o Estado recompensava em dinheiro pela morte de indígenas, então mercenários juntavam orelhas de índios, uma história dolorosa que foi documentada por antropólogos e passada por gerações.

Antes, eles nos matavam com armas. Agora, eles nos matam com uma canetada

João Paté, ex-cacique xoclengue

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Reuniões à luz da fogueira

Determinados a manter suas tradições vivas, os xoclengues se reúnem ao redor de fogueiras à noite para contar histórias em sua própria língua e manter seus rituais de dança e oração, às vezes pintando os rostos dos mais jovens.

Eles ainda compartilham sua comida em refeições comunais, mas a carne que assam é comprada fora da reserva, já que não possuem terras suficientes para caçar ou criar gado.

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"Não podemos plantar alimento vivendo neste buraco. Eles querem se livrar de nós. Eles não gostam de nós", disse Vanda Kamlem, 87, cercada por seus seis netos. Ex-parteira, Vanda se recorda dos tempos em que colhia pinhões das abundantes araucárias.

Agora, a floresta foi derrubada e os peixes se tornaram escassos, à medida que as águas dos rios se tornaram turvas, segundo contou à reportagem.

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"Os colonos foram chegando aos poucos, tomando as terras. Eles montaram duas serrarias e devastaram o local", disse Paté, um pastor evangélico que realiza os cultos na igreja comunitária.

Ele disse que a palavra de Deus salvou os xoclengues do alcoolismo, predominante nos anos 50.

Os xoclengues somam 3.000 pessoas hoje, espalhadas em 14.156 hectares de território montanhoso, onde deslizamentos ameaçam os lares e grande parte das terras é íngreme demais para a agricultura.

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Eles reivindicam 24 mil hectares adicionais de ricas plantações de tabaco, que dizem ter pertencido a eles por séculos antes da chegada dos colonos.

Se a decisão do STF for favorável aos xoclengues, mais de 800 famílias de pequenos proprietários enfrentarão "caos" e "futuro incerto", criticou Tarcísio Boeing, 65, que cultiva 50 hectares que estão em posse de sua família, de ascendência alemã, há mais de um século.

Descendente de alemães diz ter escrituras

"Esta terra foi comprada e temos as escrituras dela", disse Chico Jeremias, 61, que conta que seu avô alemão chegou ao Brasil há um século e lhe deixou 27 hectares que cultiva com seus quatro filhos.

Se o tribunal decidir ampliar o território indígena, para onde irão essas famílias de produtores rurais? Esta se tornará uma terra sem lei.

Por todo o Brasil, a decisão do STF afetará centenas de processos envolvendo terras indígenas, muitas das quais oferecem um baluarte contra o desmatamento da floresta amazônica.

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E se os xoclengues perderem?

Uma derrota dos xoclengues no tribunal poderia abrir um precedente para uma dramática reversão dos direitos dos índios, algo que defende o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ele diz que um número muito baixo de índios vive em grandes extensões de terras no Brasil, impedindo o avanço da agricultura.

Poderosos interesses do agronegócio teriam uma base legal mais firme para contestar reivindicações de terras indígenas e o Congresso teria sinal verde para redigir uma definição mais restritiva de terras indígenas na lei federal.

Caso percam o processo, os xoclengues mais jovens dizem que continuarão lutando. "Estamos aqui e resistiremos até o fim. Esta luta não acabará", disse Lázaro Kamlem, 47.

Ele é descendente do pajé Kamlem, o curandeiro xoclengue que disse em seu leito de morte, em 1925, que a tribo perderia suas terras para os "homens brancos", mas que um dia a recuperariam.

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