Morte, exílio, tortura

Família relata suas vítimas da ditadura brasileira: "É muito pesado conversar a respeito"

Eduardo Militão e Flávio Moraes (fotos) Do UOL, em Brasília e em Piracicaba (SP) Flavio Moraes/UOL

Na sala lotada, uma mulher atrás de uma mesa cita um nome e ouve a resposta: “Presente!”. Menciona outro nome e ouve resposta idêntica. Os citados estão no auditório na Asa Sul, em Brasília, na manhã daquela segunda-feira 3 de dezembro de 2018. O local está lotado de familiares de pessoas desaparecidas ou mortas durante a ditadura militar (1964-1985).

A cada menção ao nome de um parente, o grupo se une e responde um “presente” de maneira religiosa, como num ritual fúnebre. A adolescente Angelina Torigoe Oliveira, 14, não viveu essa realidade no Brasil. Mesmo assim, não contém as lágrimas e sai da sala. Procura um banheiro para limpar o rosto.

“Meu tio-avô morreu, eu não conheci ele, era o Hirohaki Torigoe”, explicou ela à reportagem do UOL depois de se recompor e enxugar as lágrimas, quando participava junto com a mãe do 1º Encontro Nacional de Familiares de Desaparecidos. A família é quem conta a história do estudante de medicina que sumiu em 1972. Não é só: outra tia-avó foi torturada. O pai de Angelina fugiu do país e ficou exilado em Portugal e no México por três anos. A mãe, a produtora rural Naomi Torigoe, 51, tem evitado contar algumas coisas à filha.

Cinquenta anos após o AI-5 (Ato Institucional número 5), o tema da ditadura continua presente.

“Quando voltou esse tempo agora que está difícil na política, ela voltou a falar sobre isso que ele desapareceu”, contou Angelina. “Meu tio-avô não quis fugir, ficou aqui pra lutar e morreu. Várias partes da minha família sofreram bastante. A gente não conversa muito porque é um assunto que todo mundo sofreu e é muito pesado conversar. Mas, quando a gente conversa, todo mundo se emociona.”

Flavio Moraes/UOL

Choques elétricos

A professora de serviço social da PUC-SP Rosalina Santa Cruz, 75, estava grávida quando foi presa em 1971. Passou um ano na cadeia, sofreu choques elétricos até na vagina. Perdeu a criança que carregava na barriga. Seu irmão Marcelo, advogado de 74 anos que vive em Recife (PE), foi expulso da faculdade em 1969 e se exilou do Brasil até 1971, quando regressou da Europa. O outro irmão deles, o estudante de direito Fernando Santa Cruz, teve menos sorte: foi preso no Rio em 1974 e nunca mais apareceu. Os três lutavam contra a ditadura no movimento estudantil, em entidades como a Ação Popular 

Em comum, as famílias Torigoe e Santa Cruz viveram os dez piores anos do regime. O AI-5 foi baixado em 13 de dezembro de 1968, pelo governo do general Costa e Silva, e durou até 1978, na era de Ernesto Geisel.

O AI-5 colocou minha família na clandestinidade

Rosalina Santa Cruz, professora aposentada

Segundo a coordenadora-geral de Direito à Memória e à Verdade do Ministério de Direitos Humanos, Amarilis Tavares, a regra simplesmente “legalizava” tortura, censura e repressão praticadas desde 1964 e até um pouco antes, .

Flavio Moraes/UOL Flavio Moraes/UOL
Flavio Moraes/UOL

Sobrinha relata emboscada

A produtora rural Naomi Torigoe, mãe da adolescente Angelina, contou que o tio Hirohaki vivia com toda família em Lins (SP). Mudou-se para a capital para estudar medicina na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Lá, passou a integrar o Molipo, o Movimento de Libertação Popular, que militava contra a ditadura. Foi preso em 5 de janeiro de 1972. “Dizem que foi uma emboscada no bairro de Santa Cecília”, explicou Naomi. “Mas há testemunhas de que ele foi levado ao DOI-Codi.”

A sigla significa Destacamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna. Em São Paulo, era comandado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Ele foi condenado em 2008 por sequestro e tortura. Ustra morreu em 2015 sem passar um dia na prisão. O presidente eleito, Jair Bolsonaro, tem como livro de cabeceira uma obra escrita pelo réu condenado, “Verdade Sufocada”. Dedicou a ele o voto para cassar a então presidente Dilma Rousseff em 2016.

De acordo com a Comissão da Verdade de São Paulo, um documento com menções a Hirohaki foi encontrado nos arquivos do DOPS (Departamento de Ordem Pública e Social) de São Paulo. Ele foi escrito em fevereiro de 1973 pelo Comitê de Solidariedade aos Presos Políticos do Brasil e é intitulado “Aos bispos do Brasil”. O documento dizia: “Ferido, foi levado para o DOI/SP onde foi intensamente torturado pela chamada equipe B, chefiada pelo capitão Ronaldo, enente (sic) Pedro Ramiro, capitão Castilho, capitão Ubirajara e o carcereiro Maurício, vulgo ‘Lungaretti’ do DPF”.

Um laudo de necropsia indica indica “dez ferimentos produzidos por arma de fogo”, segundo a Comissão da Verdade. Hirohaki foi enterrado com nome falso em 7 de janeiro de 1972 no cemitério de Perus, em São Paulo. Em 20 de janeiro, o pai de Naomi, Schmidt Torigoe, apenas viu as fotos do irmão morto. A sobrinha da vítima diz que o corpo ou os restos mortais nunca foram localizados pela família, passados 46 anos. “Foram mostradas somente as fotos para constar que ele estava realmente morto”, contou Naomi ao UOL.

“O corpo ou restos mortais nunca foram encontrados. Sabemos que ele está morto mas não sabemos o que foi feito com o corpo que estava em poder do Estado.” As buscas na vala de Perus continuam.

Em 2013, o MPF (Ministério Público Federal) em São Paulo denunciou o coronel Ustra e o ex-delegado de polícia Alcides Singillo pela ocultação do cadáver de Hirohaki. Em 2014, a 5ª Vara Federal de São Paulo ordenou o fim do processo por prescrição – excesso de tempo entre os fatos, de 1972, e a análise judicial.

O desembargador Paulo Fontes, do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região) ordenou que o caso continuasse sendo julgado. Em 2015, Ustra morreu. Um novo recurso da defesa dele e de Singillo está previsto para ser julgado este mês pelo tribunal. O UOL procurou o escritório do advogado do ex-delegado, mas não houve retorno do pedido de esclarecimentos.

Tia foi denunciada sem fatos narrados

Os primeiros sustos na família Torigoe já tinham surgido antes do sumiço de Hirohaki. A tia de Naomi, a ceramista Nobue Ishii, hoje com 80 anos, também foi presa e torturada pelos militares.

Em 1969, durante o AI-5, o procurador Durval Moura Araújo denunciou Nobue ao juiz da 2ª Auditoria da 2ª Região Militar junto com outras pessoas perseguidas pelo regime, de acordo com documentos do projeto “Brasil Nunca Mais”, da Biblioteca do MPF. A tia de Naomi usava o codinome “Marta” e participava “da chamada Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil”. Segundo a denúncia, o grupo praticava “atos de subversão e terrorismo”, sob o comando de Carlos Mariguella, com o objetivo de “subverter a ordem política e social do país”, tudo “dentro da orientação do comunismo internacional”. O promotor acusa vários integrantes do partido de roubar bancos, lojas, carros, impressoras e mimeógrafos em São Paulo.

Mas, sobre Nobue, afirma apenas que ela está “foragida”. Foi denunciada por participar de “agrupamento que, sob a orientação ou com o auxílio de govêrno (sic) estrangeiro ou organização internacional, exerça atividades prejudiciais ou perigosas à segurança nacional”, conforme o decreto 314, de 1967. Também foi enquadrada na lei por subversão e por “praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária”. Somadas, as penas variavam de sete a 21 anos de prisão.

Presa e torturada, Nobue evitou comentar o assunto com a família, destacou Naomi. “Na época, os pais não falavam de medo, para poupar a gente”, recordou-se. E, à época do sumiço de Hirohaki, Nobue decidiu ir embora do país rumo à França. Lá, foi recebida pelo professor de línguas Daniel Darras, que atendia refugiados e imigrantes. Casou-se com ele. Vivem como ceramistas e apicultores em Saint-Georges-de-Luzençon, no sul do país, a 650 quilômetros de Paris. A reportagem não conseguiu contato com com Nobue.

Sua sobrinha conta que, depois da Lei da Anistia, em 1979, passou a se relacionar mais com a tia, em suas voltas ao Brasil. Nem assim ela detalhava o que sofreu nas prisões. “Tem o trauma, né? Mas sabe que não deveria? A gente quer saber, tem que ensinar nas escolas para que não se repita mais”, avalia Naomi.

Por isso, ela fez questão de levar a filha, Angelina, ao 1º Encontro de Familiares, em Brasília. A jovem disse que não chorou à toa. “O que mais me emociona é ver que muita gente idolatra pessoas que fizeram a família dos outros sofrerem, que mataram gente a sangue frio desse jeito”, explicou Angelina. “Também me emociona muito que ninguém quer contar isso para as pessoas.”

Flavio Moraes/UOL

Teatro por 12 horas para confundir censores

A vida da produtora rural Naomi se encontraria com as cicatrizes da ditadura novamente em 1984, quando conheceu o marido. O ator e diretor Joel Cardoso Oliveira, 67, atuou no Teatro Oficina, palco de peças censuradas pelo regime. Ele contou ao UOL que a estratégia do grupo era fazer peças longas de seis a até 12 horas de duração para confundir os censores. “Os policiais assistiam às peças infiltrados”, lembrou Oliveira, que é pai da jovem Angelina.

Em 1974, havia vários grupos de teatro pelo país. Em São Paulo, estavam em cartaz peças como “O Casamento do Pequeno Burguês”, uma crítica à classe média. Em Minas Gerais, Joel Oliveira estava apresentando “As Criadas”. A montagem mostra o sonho das empregadas domésticas de se tornarem patroas. Todos os atores são homens vestidos de mulher. Neste ano, quando estavam voltando para casa, o elenco soube que a polícia havia invadido o Teatro Oficina em São Paulo. Uma série de colegas atores estavam presos. Oliveira e os remanescentes decidiram fugir, saindo aos poucos do país para não chamar a atenção.

O pai de Angelina tomou um avião no Rio de Janeiro com destino a Lisboa. Teve ajuda para não ser preso ao tentar embarcar. “A gente tinha interação com os políticos do MDB”, contou Oliveira. Ele ficou em Portugal e no México até 1977, atuando como ator. Voltou ao Brasil mesmo com o AI-5 ditando as regras por aqui.

“O mundo inteiro estava tão conturbado quanto o Brasil. Igual a hoje”, justificou Oliveira. Segundo ele, o risco de ser preso, torturado e morto era o mesmo na Europa ou no México. “Lá em Portugal, eu estava a um passo do franquismo”, destaca, ao citar a Espanha e o governo do ditator Francisco Franco (1939-1975). De volta ao país, o ator conheceu Naomi em Piracicaba (SP), com quem se casou.

Flavio Moraes/UOL Flavio Moraes/UOL

Faltam punições, diz coordenadora do Ministério dos Direitos Humanos

A ditadura foi responsável pelo desparecimento ou morte de 434 vítimas, de acordo com relatório da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), do Ministério dos Direitos Humanos, divulgado semana passada em Brasília. Das 243 pessoas desaparecidas, apenas 43 foram identificadas. A coordenadora-geral de Direito à Memória e à Verdade do Ministério de Direitos Humanos, Amarilis Tavares, avaliou que há muito trabalho a ser feito: reconhecer corpos e entregar os restos mortais às famílias.

No entanto, ela acrescenta ser preciso punir os agentes da ditadura que cometeram os crimes, mesmo com a Lei da Anistia, que permitiu o perdão quase automático dos delitos. “A gente tem que vencer o obstáculo, que é a Lei de Anistia. Falta lutar contra a impunidade e fazer Justiça, responsabilizar penalmente os agentes que cometeram essas violações.”

Durante a campanha eleitoral, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, afirmou que será “escravo da Constituição”. Em seu primeiro discurso após vencer o pleito, Bolsonaro disse que atuaria “seguindo os conhecimentos de Deus e ao lado da Constituição brasileira”.

Amarilis entende que é preciso “aprender com o passado para não repetir os mesmos erros”. As declarações de Jair Bolsonaro em favor de torturadores chamam a atenção dela. “Em razão de posições já expressas, é necessário que sigamos mais vigilantes ainda”, explicou. “É necessário que a sociedade também se mobilize para evitar qualquer tipo de retrocesso. O presidente foi eleito com base no processo democrático e esperamos que ele cumpra seu papel e respeite a Constituição.”

Mesa no Palácio das Laranjeiras durante a edição do AI-5 pelo então presidente Gen. Artur da Costa e Silva. Arquivo/Folhapress Mesa no Palácio das Laranjeiras durante a edição do AI-5 pelo então presidente Gen. Artur da Costa e Silva. Arquivo/Folhapress
Flavio Moraes/UOL Flavio Moraes/UOL

Leia também:

Divulgação

Comissão diz ter identificado ossada de sindicalista morto pela ditadura

Trabalho de busca por desaparecidos no regime militar continua no Brasil

Ler mais
Pedro Kirilos/Agência O Globo

As "casas da morte" usadas pelo homem-chave da tortura na ditadura

Série de reportagens busca pistas sobre Paulo Malhães no Rio Grande do Sul

Ler mais
Topo