Topo

'Retratos de afeto': obra revela intimidade de pessoas com câncer

"Neste projeto eu tinha uma missão e uma grande responsabilidade: manter a dignidade de todos os retratados e dar vida a essas histórias, que não são únicas", diz Cruz - Valdir Cruz
'Neste projeto eu tinha uma missão e uma grande responsabilidade: manter a dignidade de todos os retratados e dar vida a essas histórias, que não são únicas', diz Cruz Imagem: Valdir Cruz

João Fellet

Da BBC Brasil em Brasília

27/03/2017 09h09

Habituado a longas viagens pela Amazônia, o fotógrafo paranaense Valdir Cruz passou os últimos anos dedicado a outro tipo de expedição: embrenhar-se por hospitais e cidades do interior para acompanhar pessoas com câncer em sua rotina e intimidade.

Entre as várias viagens e a edição das imagens, foram cinco anos de "muitas emoções, choros, abraços e mais choros", ele conta à BBC Brasil.

"Neste projeto eu tinha uma missão e uma grande responsabilidade: manter a dignidade de todos os retratados e dar vida a essas histórias, que não são únicas", diz Cruz.

Radicado em Nova York desde os anos 1980, o fotógrafo também pretendia contar, por meio dos relatos e das imagens, a história do Hospital do Câncer de Barretos, em São Paulo.

Fundado em 1967 pelo casal de médicos Paulo e Scylla Prata, o hospital é referência nacional no tratamento da doença, com atendimento gratuito pelo SUS. Hoje, além da sede em Barretos, a instituição tem unidades em outras oito cidades, além de 12 carretas que viajam o Brasil realizando exames e pequenas cirurgias.

O trabalho, que mescla fotografias e entrevistas, deu origem ao livro Retratos de Afeto, que será lançado em 17 de maio no Conjunto Nacional, em São Paulo, onde as obras ficarão expostas até 2 de junho.

A BBC Brasil apresenta a seguir algumas das pessoas retratadas por Valdir Cruz.

Maria Madalena Rodrigues da Silva

Moradora de Juazeiro (BA) e viúva há dez anos, Maria Madalena Rodrigues da Silva, 60, descobriu um câncer nas mamas em 2013. Ela diz que, mesmo após a cirurgia, jamais abandonou as tarefas domésticas. "Eu faço tudo, eu lavo, eu passo, eu arrumo casa e ainda faço comida de fim de semana pra vender, faço buchada."

É católica, mas isso não impede que cultue Iemanjá. Questionada se já escondeu a doença, responde: "Pois eu não, meu filho. Pode falar que eu tô com câncer onde for. Enquanto com vida, esperança, não é isso?"

Isabely Alves Modesto

Quando notou sangue na urina da filha, Talita Modesto a levou para o hospital e descobriu que a pequena Isabely tinha câncer nos rins. A família viajou de Roraima a Barretos, onde a menina retirou os órgãos no Hospital do Câncer.

Ela resistiu bem ao tratamento. Hoje, um ano depois, está curada, mas terá de fazer exames anuais pelo resto da vida. "A Isabely é calada, mas é forte e guerreira, a bichinha", diz a mãe.

Maria Lúcia Barbosa de Souza

Maria Lúcia Barbosa de Souza, de 67 anos, descobriu ter câncer no colo do útero aos 21, quando trabalhava como doméstica em Ribeirão Preto (SP). Desde então, passou por quatro cirurgias.

Ela conta como soube que teria de ser operada da última vez: "A doutora disse 'eu vou te contar uma coisa, você não vai gostar, mas eu vou ter que te falar'.

"Eu falei: 'a senhora não fala pra ver que eu brigo com a senhora'. Ela falou: 'vai ter que fechar a sua xoxota'. Eu falei: 'doutora, essa xoxota já está velha e cansada, já usei muito'. Mas eu não sabia que a equipe dela estava atrás dos panos ali, pensava que só estávamos eu e ela, e depois nós caimos na risada."

Derlis Lagranã

Derlis Lagranã tinha 17 anos quando caiu do cavalo no sítio em que morava com os pais e quatro irmãos. Os médicos acharam que a dor que ele sentia na perna era resultado da queda. Só meses depois descobriu-se que ele tinha osteossarcoma, câncer nos ossos.

"A queda foi só pra ele descobrir o câncer e se tratar pra se curar", conta a mãe, Ruth. O jovem amputou a perna no Hospital do Câncer de Barretos e passou a fazer quimioterapia, porque também haviam sido detectados cistos no pulmão.

Derlis morreu em 2013.

Beatriz Carvalho de Freitas

Beatriz Carvalho de Freitas descobriu um sarcoma (câncer em tecidos moles) na mão esquerda ao tratar uma fratura que demorava a curar, aos 13 anos. Hoje, aos 17, se trata de leucemia. Ela conseguiu um doador de medula e passou por várias sessões quimioterapia. No tratamento, mudou até de tipo sanguíneo.

Hoje estuda numa escola vizinha ao Hospital do Câncer de Barretos e espera o dia em que poderá levar uma vida normal. A mãe, Zelma, diz que o tratamento levará mais dois anos. "Ela vai poder ir a festa, frequentar muita gente. Mas passam logo os anos, passam sim."

Maria Alice Alves de Oliveira

Mãe de três filhos, Maria Alice Alves de Oliveira descobriu ter câncer de mama aos 39 anos, em 2012. Quando soube da doença, temeu ser abandonada pelo marido, mas isso nunca ocorreu.

O cabelo caiu com a quimioterapia. "Aí eu usei peruca, usei lenço, saí careca, fiz tudo". Nos últimos cinco anos, perdeu amigos que conheceu no hospital, mas se diz animada com a perspectiva de terminar o tratamento neste ano.

Anida Riston Braun

Anida Riston Braun, 62 anos, ficou grávida de gêmeos quatro vezes e de trigêmeos, uma vez. Dos 18 filhos que deu à luz, nove sobreviveram. Em 2014, foi internada às pressas no Hospital de Câncer em Porto Velho com uma hemorragia embaixo do olho. Era câncer de pele.

Retirou os tumores e passou a fazer radioterapia. Ela conta que, depois da cirurgia, o marido passou a dormir em outro quarto por orientação do médico. "Mas cuidar, ele cuida do mesmo jeito. Ele fica do meu lado. Se eu levantar, me dá tontura, ele cuida, me segura. Se eu quero, ele me dá banho também. Ele fala que faz de tudo por mim. Ele gosta de mim."

Anida morreu em 2015.

Francisca dos Santos

Francisca dos Santos, 57 anos, chorou quando soube que teria de extrair a mama. O tumor, que se originara seis meses antes, estava em estágio avançado.

"Quando eu cheguei a Salvador, que eu vi minhas amiguinhas tudo sem peito, tudo boa, tudo sadia, aí pronto, aí eu vi que não é um bicho de sete cabeças."

O cabelo caiu com a quimioterapia, mas já voltou a crescer. "Eu fui tão curada, de um jeito que eu não tomo comprimido nenhum."

Casada há 37 anos, diz que o marido a apoiou durante todo o tratamento. "Meu marido é novo, tem 61 anos. Mas se eu tivesse um marido que não me aceitasse sem a mama, aí eu podia ter ficado abalada."

Diego Araújo Rabelo

Desde os dois anos de idade, Diego Araújo Rabelo tem xeroderma pigmentoso, rara doença genética que deixa o paciente mais suscetível a câncer de pele.

Recentemente, teve de retirar parte do nariz. A mãe conta que, quando se viu pela primeira vez numa foto após a cirurgia, devolveu a câmera rapidamente. Hoje, segundo ela, o filho se acostumou.

Quando o médico lhe disse que estava ficando bonito, concordou: "Tô ficando bonito".

Henrique Prata

Filho dos fundadores e atual administrador do Hospital do Câncer de Barretos, na foto de 2015, Henrique Prata posa na área onde foi erguido o Hospital do Câncer da Amazônia, em Porto Velho.

Prata abandonou os estudos aos 15 anos, quando passou a trabalhar nas fazendas do avô materno. Hoje, aos 64 anos, comanda uma estrutura que realiza 6 mil atendimentos por dia, todos gratuitos, e é parcialmente financiada por doações de artistas e apresentadores de TV.

Scylla Duarte Prata

Filha de pecuaristas e fundadora do Hospital do Câncer de Barretos ao lado do marido, Paulo Prata, morto em 1997, a ginecologista e obstetra Scylla Duarte Prata tirou dinheiro do bolso muitas vezes para quitar dívidas da instituição.

Como médica, ajudou a trazer ao Brasil técnicas modernas de colposcopia e de exame papanicolau. Hoje, aos 93 anos, continua a trabalhar e a acompanhar a rotina do hospital, agora administrado pelo filho Henrique.