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'Se matarem macacos, mosquitos vão atrás de sangue humano': como massacre de primatas é tiro no pé contra febre amarela

"O macaco é quase um mártir (...) Eles nos indicam onde há infecção", diz pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz - Getty Images
'O macaco é quase um mártir (...) Eles nos indicam onde há infecção', diz pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz Imagem: Getty Images

Nathalia Passarinho

Da BBC Brasil em Londres

01/02/2018 13h04

Fotos de corpos de macacos têm se espalhado pela internet desde o aumento, nos últimos meses, dos casos de febre amarela em regiões dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Distrito Federal. E muitos desses animais não morreram por causa do vírus: foram executados com pedras, pauladas ou envenenamento. Além de cruel, a medida tem efeito contrário ao imaginado por muitas pessoas: prejudica o combate à doença.

Classificados por pesquisadores ouvidos pela BBC Brasil como "sentinelas" e "mártires", os macacos são o alvo preferido dos mosquitos silvestres que transmitem a febre amarela, que costumam voar na altura da copa das árvores.

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Muitos primatas acabam desenvolvendo a doença e morrem. Ao verificar um volume expressivo de corpos deles em determinada região, autoridades sanitárias e pesquisadores conseguem identificar a presença da febre amarela, traçar o possível trajeto do vírus - conforme os corredores da floresta existente - e planejar ações de imunização das pessoas.

A doença tem tido um impacto tão expressivo na população de macacos da Mata Atlântica que existe o temor, por exemplo, de que todos os bugios desapareçam das florestas do Rio de Janeiro.

Para piorar, os poucos macacos que sobreviveram à febre amarela ou escaparam do vírus estão sendo vítimas da desinformação. Muitas pessoas matam esses animais por acharem que eles são responsáveis pela propagação da doença.

Macaco 2 - Vigilância Sanitária do RJ - Vigilância Sanitária do RJ
Ao contrário de evitar a propagação da febre amarela, matar macacos pode expor mais os seres humanos à doença
Imagem: Vigilância Sanitária do RJ

Só este ano, dos 144 macacos mortos recolhidos pela Vigilância Sanitária e Controle de Zoonoses do Rio de Janeiro para testes de febre amarela, 69% foram executados - apresentavam várias fraturas ou veneno no organismo.

Em todo o ano passado, dos 602 animais mortos, 42% foram assassinados, segundo dados do órgão.

Nem o mico-leão-dourado escapou. Corpos de animais dessa espécie, ameaçada de extinção, também foram localizados com sinais de execução.

Morte de macacos traz risco para humanos

Mas o que os "caçadores" de macacos não sabem é que, ao contrário de evitar a propagação da febre amarela, matar os bichos expõe os seres humanos a riscos maiores de contrair esse mal grave, que pode matar.

A febre amarela é uma doença infecciosa que é transmitida, no Brasil, principalmente por mosquitos silvestres dos gêneros Haemagogus e Sabethes, que moram na copa das árvores e têm predileção pelo sangue de primatas.

O Aedes aegypti, que vive em áreas urbanas, também é capaz de transmitir febre amarela, mas até agora não houve contaminação e transmissão por essa espécie de mosquito - desde 1942 que não há epidemia urbana de febre amarela. As pessoas infectadas até o momento teriam contraído a doença em alguma região com mata.

Macaco 3 - Josué Damacena/IOC/Fiocruz - Josué Damacena/IOC/Fiocruz
Febre amarela é transmitida no Brasil principalmente por mosquitos silvestres dos gêneros Haemagogus e Sabethes
Imagem: Josué Damacena/IOC/Fiocruz

Segundo o pesquisador Ricardo Lourenço, do Instituto Oswaldo Cruz, tanto o homem quanto o macaco, quando picados, só carregam o vírus da febre amarela em quantidades suficientes para infectar outros mosquitos por cerca de três dias.

Depois disso, o organismo passa a produzir anticorpos e a concentração do vírus diminui. Em cerca de dez dias, macacos e seres humanos terão morrido ou se curado da doença, ficando imunes a ela.

Já o mosquito permanece com as moléculas da febre amarela para sempre. Eles podem até passar o vírus para os ovos e, consequentemente, para os filhotes que nascerem.

Macaco 4 - Getty Images - Getty Images
Até mico-leão-dourado, espécie ameaçada de extinção no Brasil, tem sido alvo de violência por causa do pânico e desinformação sobre a febre amarela
Imagem: Getty Images

Se muitos macacos começarem a morrer, a tendência é aumentar a chance de contaminação de humanos. Sem ter primatas para picar na copa das árvores, os mosquitos buscarão alimento em outras localidades - e o homem vira a próxima opção como fonte de sangue.

"Mesmo que acabem todos os macacos de uma aérea, durante algumas gerações o vírus vai ficar ali. E o mosquito vai procurar o ser humano para se alimentar", diz Lourenço, autor de pesquisas sobre mosquitos transmissores.

O médico epidemiologista Eduardo Massad, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da britânica London School of Tropical Diseases, reforça esse argumento.

"Suponha que desaparecessem todos os macacos da serra da Cantareira. O mosquito picaria pessoas. Se você diminui a população de macacos, mais gente será picada", disse à BBC Brasil.

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Dos 144 macacos mortos recolhidos pela Vigilância Sanitária e Controle de Zoonoses do Rio de Janeiro, cerca de 100 foram executados
Imagem: Vigilância Sanitária do RJ

'Sentinelas' da doença

Além de servirem de isca para mosquitos, evitando com isso que mais humanos sejam picados, os macacos alertam para o "trajeto" do vírus pelo país.

Após campanhas de erradicação do Aedes aegypti, o Brasil se livrou da febre amarela urbana na década de 1942 - a doença acabou se concentrando na região amazônica. Nos anos 2000, porém, o vírus começou a "descer" para o leste, alcançado regiões de mata de Minas Gerais, Espírito Santo e, mais recentemente, São Paulo e Rio de Janeiro.

Macaco 6 - Josué Damacena/IOC/Fiocruz - Josué Damacena/IOC/Fiocruz
Sem ter macaco para picar na copa das árvores, os mosquitos buscarão alimento nos humanos
Imagem: Josué Damacena/IOC/Fiocruz

O pesquisador Aloisio Falqueto, professor do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) acredita que o vírus migrou para a Mata Atlântica por meio do ser humano.

"A minha teoria é o elemento urbano. Muitas pessoas migram para a Amazônia sem tomar vacina. Uma pessoa pegou o vírus na Amazônia e entrou na Mata Atlântica depois, na altura de Montes Claros (MG), e aqui é um barril de pólvora, pela presença de macacos sem anticorpos e seres humanos. A força de transmissão é muito maior", diz.

Já Ricardo Lourenço acredita que os mosquitos acabaram migrando naturalmente para o Sudeste, por corredores de mata e rios. Conforme foram picando macacos e esses animais morreram, teriam descido cada vez mais para o sul do país em busca de alimento.

Macaco 7 - Vigilância Sanitária do RJ - Vigilância Sanitária do RJ
Além de servirem de isca para mosquitos, evitando com isso que mais humanos sejam picados, os macacos alertam para o 'trajeto' do vírus pelo país
Imagem: Vigilância Sanitária do RJ

"Mosquitos se dispersam por dois motivos: para achar lugar para colocar ovo e para achar fonte de alimentação sanguínea. Se começa a morrer macaco, ele começa a buscar sangue em outro lugar", diz o pesquisador, que explica que o mosquito pode voar 3 km por dia.

A única forma de perceber a chegada de mosquitos infectados é pela morte dos macacos. Desde o início dos anos 2000 que pesquisadores alertam o governo federal e governos estaduais para a necessidade de ampliar ações de imunização em cidades com mata onde foram localizados animais mortos.

"Os macacos nos avisam da iminência do vírus. Quando começam a morrer, sabemos da existência e intensidade do vírus naquela região. Podemos calcular por onde ele vai se alastrar e quem devemos imunizar", afirma Aloísio Falqueto.

"A morte do macaco é um aviso de que devemos imunizar as populações nas áreas de risco", explica.

Ricardo Lourenço compara o animal a um "soldado" que atua como vigia da chegada da febre amarela. "O macaco é quase um mártir. É uma vítima e um instrumento de vigilância e de alerta. É uma sentinela do quartel. Eles nos indicam onde há infecção."