O que muda com a lei sobre drogas que o Senado correu para aprovar?
Diferente do que afirmavam alguns defensores da lei, projeto não pode impedir julgamento do STF sobre prisão de consumidores de drogas.
Um Projeto de Lei que faz mudanças na política nacional de drogas foi aprovado na quarta-feira, 15, pelo Senado, após os parlamentares correrem para acelerar a votação.
O projeto endurece a política nacional antidrogas, facilita internações involuntárias e fortelece as comunidades terapêuticas - instituições de tratamento normalmente ligadas a igrejas e que recentemente estiveram sob holofotes após denúncias de abusos e violações de direitos.
As comunidades foram incluídas no Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) e agora podem receber dinhero de isenção fiscal - pessoas e empresas podem destinar até 30% do Imposto de Renda para as instituições.
O PLC (Projeto de Lei da Câmara) 37, de 2013, já havia passado pela Câmara dos Deputados e agora segue para sanção do presidente Jair Bolsonaro.
O projeto tramitava há seis anos no Senado e no último mês os senadores manobraram para avançar seu processo de aprovação. A motivação foi o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que poderá descriminalizar o consumo de drogas no país - a votação está marcada para 5 de junho.
O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL), filho do presidente, disse na semana passada em um vídeo que o PLC 37, se aprovado, poderia "acabar com a discussão" no STF.
No entanto, isso não é verdade. Apesar da fala do deputado e da pressa dos senadores em passar o projeto, o PLC 37 não impede a descriminalização das drogas nem interfere no julgamento do Supremo. O que o STF deve analisar no dia 5 é a Lei 11.343/2006 - especificamente seu artigo 28, que torna crime o porte de drogas para consumo próprio.
A Corte vai avaliar se a prisão de consumidores de drogas é constitucional - o questionamento foi encaminhado pela Defensoria Pública de São Paulo.
Uma das bases do questionamento é o princípio do direito penal que determina que uma conduta, para gerar pena de prisão, precisa lesionar um terceiro, explica Cristiano Maronna, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e secretário executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.
"Mas o consumo de drogas é uma conduta autolesiva, ou seja, que só pode fazer mal a quem pratica."
Se não interferem no julgamento do Supremo, quais as reais consequências das mudanças trazidas pelo PLC 37, aprovado pelo Senado?
Comunidades terapêuticas
Uma das questões centrais da PLC 37 é o fortalecimento das comunidades terapêuticas. Embora atendam a dependentes de drogas em recuperação, elas não são consideradas clínicas nem estabelecimentos médicos, mas entidades filantrópicas.
No ano passado o Ministério Público Federal fez uma inspeção nacional em comunidades do Brasil todo em parceria com o Conselho Federal de Psicologia e encontrou violações de direitos humanos em todas as unidades visitadas.
Segundo o relatório da inspeção, foram encontrados até casos de trabalhos forçados - além de instalações precárias, contenção de pessoas à força, falta de profissionais de saúde e agressões físicas.
O relatório apontou também violação da liberdade religiosa das pessoas tratadas, com pacientes que se recusavam a participar da rotina de orações sendo punidos com trabalho forçado, chamado nas comunidades de "laborterapia".
A nova legislação não apenas estebelece o atendimento do dependente químico nas comunidades, mas prevê a possibilidade de as instituições receberem dinheiro público por meio de isenção fiscal.
Há mais de 1.800 comunidades do tipo no Brasil atualmente, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
O PLC 37 transforma em lei uma política de dar prevalência às comunidades terapêuticas que já tinha sido adotada pelo Executivo.
O ministro da Cidadania, Osmar Terra, anunciou em março o aumento de vagas nas comunidades financiadas pelo governo federal - serão mais de R$ 153 milhões por ano repassados às instituições.
Terra é também o autor do PLC 37, elaborado por ele em 2010, quando ainda era deputado federal, e encaminhado depois ao Senado. Ele diz que as comunidades "são decisivas para enfrentar a 'epidemia das drogas'".
Para o ministro, o tratamento nas comunidades "é um dos mais eficazes" e a ideia é organizar esses tratamentos. "Vamos ter um impacto grande e diminuir o número de pessoas em dependência", disse ele nesta semana.
"Estamos vivendo uma nova etapa em que se consolidam programas, destinam-se recursos para as comunidades terapêuticas e os pacientes passam a ficar em um regime de abstinência assistida e voluntária. É um avanço importantíssimo."
Ao longo da tramitação do projeto do Senado, algumas mudanças haviam sido feitas, como o acréscimo de que as comunidades terapêuticas respeitem a liberdade religiosa das pessoas internadas. No entanto as mudanças foram retiradas do projeto que acabou aprovado.
O relator da matéria, Styvenson Valentim (Pode), disse que as mudanças foram descartadas para evitar que o projeto precisasse passar novamente por aprovação da Câmara dos Deputados, onde já havia sido aprovado com a redação anterior.
Endurecimento das política antidrogas
A nova legislação estabelece como meta no tratamento de dependência química a abstinência, deixando de lado políticas de redução de danos - conjunto de práticas de saúde pública adotadas em diversos países com o objetivo de diminuir os danos causados pelo uso de drogas em pessoas que não conseguem ou não querem parar.
A mudança vai contra o entendimento de parte da comunidade médica e acadêmica de que as políticas de redução de danos são medidas efetivas e necessárias quando em conjunto com tratamentos focados em abstinência.
"O tratamento da dependência química é multifatorial e multidisciplinar, e não pode ser baseado apenas em um modelo. A solução nunca será um serviço ou intervenção único", afirma Luís Fernando Tófoli, professor de psiquiatria da Unicamp e membro do Conselho Estadual de Políticas Sobre Drogas de São Paulo.
O PLC 37 também facilita a internação involuntária, que poderá ser pedida por familiar ou servidor público da saúde ou da assistência social; determina que o paciente possa ficar internado contra sua vontade por até três meses e estabelece a necessidade de autorização médica para que a internação seja encerrada. Atualmente, a família pode escolher pela liberação do dependente.
O projeto também trata das penas para o tráfico - a pena mínima para quem "atue no comando de organização criminosa" passa de 5 para 8 anos de prisão. Também há a determinação de que a pena seja reduzida se o acusado não for reincidente e não integrar organização crimininosa ou se "as circunstâncias do fato e a quantidade de droga" demonstrarem "menor potencial lesivo da conduta".
Para Maronna, essa medida não é suficiente para evitar a aplicação de pena de tráfico a usuários.
"Na prática, o que vai acontecer é a continuação da política de encarceramento de usuários e da arbitrariedade das decisões", diz ele. "Se você é negro ou mora na favela tem chance muito maior de ser considerado traficante com a mesma quantidade de drogas do que uma pessoa branca, rica, com ensino superior."
Cerca de 50 entidades de saúde, direito e movimentos sociais publicaram uma nota pública se posicionando contra a nova lei, entre elas a Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, a Associação Brasileira de Saúde Mental, o Conselho Federal de Psicologia, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e a Pastoral Carcerária Nacional.
Eles criticam, entre outros pontos, a falta de um indicador de avaliação e monitoramento das ações de prevenção, atenção e tratamento de pessoas que usam drogas e não inclusão da atenção psicossocial extra-hospitalar, ao lado do tratamento ambulatorial, como forma prioritária de tratamento dos dependentes de drogas.
Um dos senadores que aprovou a PLC 37, o senador Eduardo Girão (Pode) defendeu o projeto no plenário, afirmando que sua "essência é a humanidade", já que "há famílias e famílias sofrendo com dependentes químicos, chorando nas ruas, sem encontrar um caminho".
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