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Receber tratamento de fertilização em troca de doação de óvulo é prática comum em clínicas

Lilian Ferreira

Do UOL, em São Paulo

09/02/2012 07h00

A regra é clara, mas a interpretação não é assim tão simples. E não há Arnaldo para esclarecer esta questão. Em clínicas de fertilização, a maioria dos óvulos doados vem da chamada doação compartilhada ou relacionada, segundo médicos ouvidos pelo UOL Ciência e Saúde. Nesses casos, a mulher que recebe os óvulos ajuda a custear o tratamento da doadora. E pode isso?

Tanto a legislação brasileira quanto o Conselho Federal de Medicina (CFM) são contra a obtenção de lucro quando se doa partes do corpo humano. A constituição não trata da doação de gametas (óvulos e espermatozoides), mas proíbe a compra ou venda de tecidos, órgãos ou partes do corpo. Já a resolução do CFM diz que a doação de gametas deve ser altruísta, sem lucro ou comércio.

Como a doadora não recebe dinheiro com a transação, muitos médicos entendem a doação compartilhada como “uma mão lava a outra”.

Adelino Amaral Silva, presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida e consultor do CFM para a resolução sobre o tema, diz que, em março, a Câmara Técnica de Reprodução Assistida do órgão deve se reunir e acrescentar a doação compartilhada como uma ação permitida pelo Conselho (até o momento ela não é citada, apesar já ter tido um parecer favorável no CRM-DF). E completa: “doação altruística não existe, [a doação compartilhada] é a maneira que temos para obter óvulos”.

“É muito mais frequente o uso do óvulo a fresco do que congelados. E o CFM diz que não se pode receber compensação financeira, mas a doadora não está fazendo isso pelo dinheiro. As duas são beneficiadas”, defende Maria Cecília Cardoso, chefe do laboratório de reprodução assistida do Vida, Centro de Fertilidade da Rede D’Or, do Rio de Janeiro. Segundo ela, a receptora fica com a parte do pagamento do laboratório, e a doadora compra as medições que já usaria normalmente.

Para Arnaldo Schizzi Cambiaghi, diretor do Centro de reprodução humana do Instituto Paulista de Ginecologia e Obstetrícia (IPGO), a doação é por se identificar com a outra mãe.

“Existe um agradecimento. A pessoa doa porque quer ser mãe e não tem serviço público gratuito. E vê a mesma vontade na outra pessoa. É uma das maiores tristezas do mundo não conseguir, então elas fazem parcerias. Claro que tem pessoas do mal, que querem vender e não entendem a profundidade do que é ser mãe”, esclarece.

Raul Eid Nakano, diretor clínico e médico da Ferticlin, Clínica de Fertilidade Humana, diz que muitas vezes a doação compartilhada não é feita de maneira aberta. “O que ocorre é uma paciente que já aceitou doar e não ficou grávida, tem ‘desconto’ em uma segunda tentativa, por exemplo. Geralmente as mais jovens têm mais óvulos, mas não têm dinheiro”, explica.

Segundo Flávio Garcia de Oliveira, diretor da Clínica de Ginecologia e Obstetrícia FGO, a maioria das mulheres que procura a clínica usa seus próprios óvulos, mas há sim a doação compartilhada. “Se a mulher está fazendo tratamento e sabemos que ela vai produzir muitos óvulos, nós podemos informá-la que existe o programa e perguntar se ela quer doar anonimamente. E para compensar a doação é oferecida alguma vantagem”, afirma.

Garcia de Oliveira acredita que o CFM está se abrindo para estas questões. “Em outubro do ano passado, saiu uma nova resolução do CFM permitindo barriga de aluguel, mesmo que não seja parente, mediante avaliação do Conselho”, lembra. Vale lembrar que apesar do nome, no Brasil a barriga não pode ser “alugada”, a mulher que empresta o útero não pode ter ganhos.

Cambiaghi diz ainda que algumas doadoras têm questões religiosas, por isso não querem congelar, nem descartar os óvulos excedentes e acabam doando. Outro caso é a doação cruzada, quando uma pessoa conhecida de uma receptora doa o óvulo, mas ele vai para uma terceira pessoa. Esta também tem uma pessoa que irá doar para a primeira receptora. A doação nunca pode ser para uma pessoa próxima.

O que diz a lei

O advogado Ronaldo Gotlib afirma que já que não existe legislação sobre a doação ou venda de gametas, a doação compartilhada não é ilegal. “O Conselho Federal de Medicina é um órgão administrativo, é orientador para os médicos, mas ele é ético, não é legal”.

Já a juiza Deborah Ciocci, uma das maiores especialistas em direito em reprodução assistida no país, acredita que a medida não é ilegal, porque não existe crime por analogia (já que a Constituição não fala de gametas), mas é ilícita.

Em seu artigo “Aspectos legais na utilização de doação de gametas e embriões nas técnicas de reprodução humana assistida”, publicado no Jornal Brasileiro de Reprodução Assistida, junto com Edson Borges Júnior, da clínica Fertility, ela diz: “a lei civil considera o corpo humano objeto fora do comércio e torna, portanto, ilícito qualquer contrato oneroso a respeito de óvulos, espermatozoides, pré-embriões e empréstimo de útero. O temor da exploração física do próprio corpo impõe restrição ao que se conhece como doação relacionada ou compartilhada, ilícita, que o Direito deve proteger em todas as suas esferas”.

"Os tratamentos levados a efeito desta forma podem invalidar os termos de consentimento e, em tese, configurar, dentre outras conseqüências, crime de constrangimento ilegal ou lesão corporal”, afirmam no artigo.

Brasil x resto do mundo

A Espanha e os EUA são exemplos onde o comércio de gametas ocorre. Na Espanha, as doadoras são compensadas pelo tratamento. De acordo com Amaral, na Espanha uma mulher recebe cerca de mil euros por doação e seus óvulos podem ser usados por até seis receptoras.

Já Garcia de Oliveira cita o exemplo da Califórnia, onde a doação não é necessariamente anônima, mas é paga. A barriga de aluguel custa em torno de cinco mil dólares, segundo ele.