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Plano da CIA pode ter atrapalhado a luta contra a poliomielite

The New York Times

16/07/2012 12h31

É possível que o assassinato de Osama bin Laden tenha feito uma vítima acidental, a campanha mundial para erradicar a poliomielite?

No Paquistão, onde a pólio nunca foi eliminada, a decisão da CIA de enviar uma equipe de vacinação ao esconderijo de Bin Laden para conseguir informações e amostras de DNA prejudicou claramente a campanha nacional pela erradicação da doença. A questão é: até que ponto?

Depois que o estratagema do Dr. Shakil Afridi foi revelado por um jornal britânico há cerca de um ano, aldeões raivosos, especialmente na região tribal da divisa com o Afeganistão, perseguiram as verdadeiras equipes de vacinação, acusando-as de serem compostas por espiões.

E então, no mês passado, os comandantes talibãs de dois distritos proibiram a presença dessas equipes, afirmando que elas não poderiam voltar para lá até que os Estados Unidos interrompessem os ataques aéreos. Um deles citou Afridi – que está cumprindo uma sentença de 33 anos dada por um tribunal tribal – como um exemplo da forma como a CIA poderia utilizar a campanha para encobrir a atividade de espiões.

"Sem dúvida isso foi um revés", afirmou o Dr. Elias Durry, coordenador das campanhas de poliomielite no Paquistão pela Organização Mundial da Saúde. "Mas, a menos que isso se espalhe ou se torne um problema de longo prazo, o programa não será seriamente afetado."

Ele e os outros líderes da campanha mundial contra a pólio afirmam que já se recuperaram de situações mais complicadas. Os dois distritos – o Waziristão do Sul e do Norte – são compostos por montanhas pouco povoadas, onde a transmissão é menos intensa que nas favelas urbanas. Apenas cerca de 278.000 crianças com menos de 5 anos – o público alvo da campanha de vacinação – vivem naquela área. Em comparação, no norte da Nigéria, onde a pólio está sendo combatida após anos de resistência pública, o número de crianças está na casa dos milhões.

Além disso, segundo Durry, as equipes vacinaram 225.000 crianças do Waziristão no início de junho, antes de serem banidas da região. Todas elas precisarão de muitas doses para ficarem completamente protegidas, mas cada nova dose lhes dá mais algum tempo.

Segundo o Dr. Bruce Aylward, chefe da campanha de erradicação da pólio na OMS, as equipes de vacinação ficam à espreita em pedágios e estações de trem e de ônibus. Elas dão as gotinhas para todas as crianças que encontram.

Provavelmente não saberemos da verdade até que o número de casos de pólio diminua com o início do outono. O vírus prefere altas temperaturas e as monções do verão enchem os esgotos onde ele se reproduz.

Crianças paralisadas também podem ser encontradas em países vizinhos com uma maior vigilância, como já aconteceu nas fronteiras com a China e com o Tadjiquistão. Testes genéticos mostrarão se essas cepas vieram do Paquistão.

Por outro lado, se a campanha estiver vencendo essa batalha, os casos de paralisia irão desaparecer lentamente – assim como ocorreu na Índia, um antigo epicentro da doença, mas que já não registra novos casos há um ano e meio. Além disso, o vírus não será mais encontrado nas amostras de esgoto das cidades paquistanesas, ao contrário do que ocorre atualmente.

Os problemas com a população chegaram ao auge em julho do ano passado, quando o jornal The Guardian revelou o envolvimento da CIA. Em janeiro deste ano, o secretário da defesa Leon E. Panetta confirmou a informação. As demonstrações públicas aumentaram novamente em maio, quando Afridi foi sentenciado. Uma coalizão de grupos de ajuda humanitária protestou para David Petraeus, o diretor da CIA.

"É difícil imaginar uma estratégia mais estúpida e era óbvio que isso traria problemas, especialmente para a pólio", afirmou o Dr. Zulfiqar A. Bhutta, um especialista em vacinação da Universidade Aga Khan, no Paquistão.

Bhutta, que também dirige o comitê governamental de ética em pesquisa, afirmou que tanto Afridi quando a CIA poderiam ser, "no mínimo, processados". Para ganhar credibilidade, a equipe de Afridi vacinou vizinhanças inteiras de Abbottabad sem permissão.

Mas esse revés foi apenas um entre muitos na interminável batalha contra a poliomielite, que já deveria ter acabado no ano 2000. Agora, a guerra continua contra o 1 por cento de casos restantes. Os casos mundiais de paralisia diminuíram de 350.000, nos anos 1980, para cerca de 600, atualmente.

A vitória estava muito próxima, mas se afastou novamente, forçando os órgãos de saúde a pedirem mais um bilhão de dólares em Genebra.

A Nigéria só registrou 62 casos no ano passado; o Paquistão, 198. Para cada caso conhecido, há cerca de 200 portadores que não apresentam os sintomas, acreditam os especialistas. Neste ano, apenas 22 casos foram confirmados no Paquistão até o momento. Mas o vírus ainda é detectado em amostras de esgoto, o que significa que as pessoas continuam espalhando-o.

Paradoxalmente, Afridi não estava vacinando contra a pólio, mas contra a hepatite B.

Não se sabe exatamente o porquê, mas esta é uma explicação possível: as vacinas contra a hepatite são injetadas, enquanto que as contra a pólio são administradas oralmente. Se o objetivo era coletar amostras de DNA – o que a equipe de Afridi aparentemente deixou de fazer –, seria mais fácil colher um pouco de sangue em cada agulha. Além disso, "a hepatite B poderia ser rastreada", afirmou Bhutta. "A luta contra a pólio conta com a participação de muitas pessoas e agências", afirmou.

Entretanto, a vacina contra a pólio tem um longo histórico de controvérsias entre os muçulmanos de diversos países, de modo que os paquistaneses não estavam familiarizados com a diferença entre as técnicas de vacinação.

Abundam os rumores em torno da vacina contra a pólio: que essa era uma estratégia ocidental para esterilizar as meninas, que ela é suja de acordo com a lei islâmica, que ela continha o vírus da AIDS. O Fundo para a Infância da ONU e a OMS, que supervisionam a campanha, pediram para que os estudiosos islâmicos, incluindo os principais clérigos sauditas, publicassem fatwas afirmando que a vacina é segura e deve ser tomada.

Há cinco anos no Afeganistão, quando os simpatizantes dos talibãs espancaram equipes de vacinação, a UNICEF e a OMS obtiveram sucesso ao pedir para que o líder talibã mulá Muhammad Omar escrevesse cartas de proteção que pudessem ser levadas pelas equipes.

Agora, eles estão tentando iniciar o diálogo com os comandantes locais no Paquistão.

"Eles sabem que nós não temos qualquer controle sobre os ataques aéreos", afirmou Aylward. "E eu ainda não encontrei um pai ou uma mãe que prefiram ter um filho paralisado. Os comandantes talibãs enfrentam os mesmos problemas – mas eles têm ressentimentos que ainda precisam ser abordados."

A vacinação seria mais bem vinda se outros serviços fossem acrescentados, tais como cuidados para prevenir a mortalidade infantil, afirmou Bhutta.

Os problemas com a pólio no Paquistão começaram muito antes da equipe da marinha matar Bin Laden. Uma "máfia" de líderes locais estava embolsando o dinheiro da gasolina, colocando crianças nas folhas de pagamento e criando equipes fantasmas e estatísticas falsas, afirmou Durry. Mais de 300.000 crianças viviam nas áreas consideradas perigosas demais para se entrar.

Então, no começo de 2011, incentivado pelo sucesso da Índia e pela ameaça da OMS de emitir alertas de viagem, o primeiro-ministro desenvolveu um novo plano.

Ele ordenou que as autoridades recrutassem mães para as equipes de vacinação, e o apoio à campanha cresceu drasticamente. Imãs fundamentalistas foram convencidos a apoiar a vacinação. "O programa finalmente está funcionando bem", afirmou Durry.

Alguns observadores continuam com dúvidas. Amir Latif, chefe do escritório nacional do Online News em Karachi, afirmou que a resistência continuou grande em algumas áreas tribais.

Heidi Larson, antropóloga da London School of Hygiene and Tropical Medicine que produziu um "índice de confiança nas vacinas", afirmou que o nível de confiança caiu drasticamente depois do artigo publicado pelo Guardian. A UNICEF afirmou que sua própria pesquisa envolvendo 200.000 famílias paquistanesas não mostrou esse declínio.

Segundo o órgão, as recusas à vacina aumentaram em apenas uma província, o Baluchistão, e só quando a campanha se tornou muito mais agressiva. "As mães diziam: 'Meus filhos já tomaram muitas dessas gotinhas'", afirmou a Dra. Julie Hall, líder do programa de pólio da Unicef.

Ainda que o estratagema da CIA tenha causado estragos, Bhutta acredita que o Paquistão será capaz de eliminar a pólio.

"Eu acredito que a tragédia da resistência irá desaparecer", afirmou. "O bom senso religioso está em ação no momento, e a minoria desvairada é apenas uma minoria."