Emocional, seletiva e limitada: o que a ciência sabe sobre nossa memória?
Um arquivo de pastas recheadas com fotos, frases, músicas: é assim que muitas vezes a memória é representada, mas como é que a ciência explica seu funcionamento.
A memória surge de uma proteína codificada no cérebro e, como um hardware, tem limite de armazenamento. O que explica se uma informação será ou não armazenada depende de uma série de fatores, que incluem os sentidos e as emoções.
Entenda melhor como funciona nosso arquivo pessoal.
Como se forma a memória?
A formação da memória ocorre com a criação de uma nova estrutura (um engrama), que surge de uma proteína codificada pelo neurônio. Essa descoberta rendeu um prêmio Nobel ao cientista Eric Kandel, que demonstrou a formação de memória em um molusco em 2000.
Nem toda informação é transformada em engrama, pois a capacidade cerebral tem limite. Saber se uma memória será armazenada ou não depende da amígdala cerebelosa, parte do cérebro que avalia se a importância das emoções.
“Se for interessante para você, a tendência é que fique na lembrança”, diz Paulo Camiz, professor e geriatra da Universidade de São Paulo, idealizador do projeto Mente Turbinada.
“Se tem valência emocional ou grande valência em termos de benefício interno, automaticamente a memória já é codificada”. Assim, um livro que emociona é mais fácil de lembrar que um livro burocrático.
Além disso, estudos recentes mostraram a existência das chamadas “time cells” (células do tempo), neurônios responsáveis por lembrar uma sequência de fatos na ordem em que aconteceram.
Existem vários tipos de memória?
Há pessoas que são mais visuais, mais auditivas, como se fossem diferentes tipos de inteligência, diz Fábio Porto, neurologista do Hospital das Clínicas.
Além da facilidade inata para armazenar um tipo de memória, há também o que pode ser desenvolvido. Estudo da University College London realizado em 2000 mostrou que o hipocampo dos taxistas de Londres, que precisavam decorar as ruas da cidade para exercer o trabalho, era maior do que o de pessoas comuns. Além disso, taxistas que passavam mais tempo trabalhando também tinham hipocampo maior do que outros taxistas.
Cada memória depende de uma região específica do cérebro. “As memórias de linguagem estão na área de linguagem. As memórias visuais estão na área visual”, explica Porto. “Não é só uma região que guarda, são guardadas de forma difusa”.
Uma revisão de estudos publicada na revista Continuum no ano passado pelo pesquisador Brandy R. Matthews, da Escola de Medicina da Universidade de Indiana mostra que o nosso arquivo pessoal parece funcionar em um modelo de sistemas múltiplos de memória que são distintos e complementares, numa estratégia de compensação quando um dos sistemas falha.
As memórias mais comuns são:
- a episódica: capacidade de lembrar fatos relacionados à sua vida, por exemplo, o que comeu ontem, onde passou o Natal em 2010;
- a semântica: capacidade de aprender os fatos universais, como o que é um leão, conhecimento de geografia, física etc;
- de trabalho: capacidade de manter informação online e usá-la, é de curto prazo, ou seja, não usa o engrama;
- de procedimento: memória motora, como dirigir e andar de bicicleta;
- prospectiva: lembrar de se lembrar, como marcar consulta médica e se lembrar depois.
Como se esquece?
A memória tem um limite e pode ser afetada por circunstâncias emocionais. A memória de curto prazo pode ser afetada por desatenção, estresse, falta de sono, ansiedade e depressão. “Hoje tem muita informação para manter online, a gente está cada vez mais dependente do nosso spam de memória de trabalho”, diz Porto.
Camiz explica que a memória tem três mecanismos: aquisição, armazenamento e evocação. O emocional pode influenciar em qualquer uma dessas etapas, principalmente na aquisição e na evocação.
“Se você está distraído, não tem foco, não vai memorizar. Se está interessado, a aquisição fica mais intensa, tem participação da amígdala (região cerebral)”, diz.
Revisão publicada na revista Lancet, de 2013, coordenadda por Hans J Markowitsch, da Universidade de Bielefeld,classifica os tipos de amnésia estudados nos últimos anos e aponta o papel fundamental da amígdala na formação da memória. O esquecimento também pode acontecer por causa de doenças que lesionam partes do cérebro relacionadas à memória. “Nem toda perda de memória é Alzheimer”, ressalta o neurologista do Hospital das Clínicas.
Na doença de Parkinson, por exemplo, a memória de se fazer coisas automaticamente, como tocar um instrumento, é prejudica. Outras doenças que atingem a região do lobo temporal esquerdo fazem com que a pessoa esqueça palavras menos comuns e simplifique a fala, por exemplo.
É mais fácil aprender algo sobre o que já se sabe
Essa observação que já ocorria na prática foi confirmada por um estudo divulgado em julho deste ano na revista Science. Asim Rashid, da Universidade de Toronto, no Canadá, e seus colegas, mostraram que quando um estímulo de medo era dado a camundongos, os mesmos neurônios eram ativados se o estímulo fosse repetido em menos de seis horas.
Já se fosse ativado mais de 24 horas depois, outros neurônios eram ativados. “Isso explica de forma científica o que a gente já constatava no dia a dia, que é um dos mecanismos de formação da memória. Por exemplo, você lembra bem de fatos próximos que aconteceram no mesmo dia, mas não consegue ter a mesma relação com algo que aconteceu no dia seguinte”, diz Paulo Camiz.
Fábio Porto explica que a memória vai sendo adicionada na memória que você já tinha. Ou seja, quando se aprende duas coisas em um espaço de tempo relativamente curto e existe uma correlação entre elas, a formação da segunda memória é facilitada. “A grande vantagem desse estudo é demonstrar isso in vitro, conseguiram comprovar uma teoria em neurônios mesmo”, diz.
Memória piora com a idade?
Assim como uma pessoa idosa não consegue ser tão rápida numa corrida como um jovem de 20 anos, a memória pode ficar um pouco mais lenta com o envelhecimento. Além disso, a idade é o principal fator de risco para doenças que afetam a memória.
“O hipocampo começa a diminuir aos 60 anos”, diz Porto.
Em 2013, uma revisão de estudos publicada na revista Progress of Neurobiology questiona o que é o envelhecimento normal e o causado pela Doença de Alzheimer. A conclusão da pesquisa da Universidade de Oslo, na Noruega, é que alguma redução em habilidades cognitivas específicas como rapidez mental, funções executivas e memória episódica são normais do envelhecimento. No entanto, habilidades verbais e conhecimento do mundo são mantidos.
Na doença, a plasticidade do cérebro é modificada, o que afeta a recuperação de lesões. Numa situação saudável, a idade faz pouca diferença e é possível treinar a memória assim como se fortalece um músculo, explica o geriatra Paulo Camiz.
“Envelhecer e perder a memória não são sinônimos”. Para ele, é preciso ressaltar que a informação em si não se traduz em conhecimento nem em sabedoria.
Como melhorar a memória?
Estudo da Universidade da Califórnia divulgado em 2013 na revista Nature Neuroscience mostrou que quanto maior a quantidade de sono profundo, melhor a memória. “O sono faz você consolidar a memória”, diz Porto. “Os sistemas de memória não são infinitos, você tem que dar um tempo para eles processarem a informação”.
Exercícios físicos também trazem benefícios à memória, pois produzem substâncias que ajudam na formação dos engramas. Em 2011, pesquisa da Universidade de Pittsburgh, nos EUA, revelou que um ano de atividade física moderada aumentou o tamanho de hipocampo de adultos saudáveis.
O bom colesterol, produzido pelo corpo, foi um fator de proteção contra doenças da memória, mostrou estudo publicado no jornal Cell Reports neste mês, da equipe do pesquisador Carlos Dotti, do Centro de Biologia Molecular Severo Ochoa, em Madri, na Espanha. Ele observou que camundongos idosos têm níveis baixos de colesterol no hipocampo e que o uso de remédios que impedem a perda do colesterol nessa área do cérebro fez com que a memória dos animais melhorasse. A pesquisa ainda não foi testada em humanos.
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