Como deve ser o tratamento de saúde para dependentes do crack?
As cenas dos usuários de crack que se espalharam por São Paulo após a ação conjunta da Prefeitura e do Governo do Estado neste mês na Cracolândia, na região central, levantaram novamente o debate: qual seria o tratamento para os dependentes que se espalham pela maior cidade do país?
Para os especialistas ouvidos pelo UOL, quando se trata do crack, não há receita única para todos nem remédio milagroso. Eles defendem processos baseados em abordagens médicas e psicossociais, com participação da família e de grupos de apoio, além de internação e uso de medicamentos, quando necessário.
A droga é um grave problema para 20,7% dos municípios brasileiros. Um relatório de 2012 publicado pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) apontou que duas milhões de pessoas já tinham usado crack alguma vez na vida. Outro estudo, dessa vez realizado pela Fiocruz em 2013, estimava que havia 370 mil usuários regulares da droga apenas nas capitais brasileiras.
“O ideal seria que o tratamento começasse no ambulatório. O paciente chega à atenção primária, na Unidade Básica de Saúde, e o médico generalista detecta que ele está tendo problemas com álcool, tabaco e outras drogas, e então encaminha para o ambulatório especializado; mas isso não acontece", afirma a psiquiatra Ana Cecília Petta Marques.
Se eu não detecto uma doença crônica no começo, ela se instala e o paciente fica grave. É isso que acontece com a droga. ”
Ana Cecília Petta Marques, da Unifesp
“O crack deteriora o cérebro de forma intensa. É uma droga estimulante, como as anfetaminas, que destrói os neurônios”, completa a psiquiatra.
Primeira etapa: desintoxicação e análise da saúde
“A maioria dos dependentes de crack, primeiro, precisa receber medicamentos para tratar pneumonia, doenças sexualmente transmissíveis, de pele, odontológicas”, diz o psiquiatra Jorge Jaber, professor da PUC-Rio e dono de uma clínica privada para dependentes químicos no RJ.
A primeira etapa do tratamento deve ser detectar os tratamentos necessários e verificar a necessidade de internação para a desintoxicação.
A avaliação aprofundada é importante para fazer diagnósticos do que ele era e do que ele virou, porque, se ele tinha uma depressão antes, pode ter uma recaída se ficar deprimido novamente.”
Em caso de internação, a solução deve ser bem avaliada e, se possível, negociada com o paciente, para que o dependente perceba seu problema e esteja aberto ao tratamento, que pode levar de uma semana a um mês.
Nesse período, os médicos normalmente usam remédios para aliviar as dores causadas pela abstinência e tratam as doenças associadas.
Segundo a médica da Unifesp, se o uso do crack for detectado no início, essa primeira fase até pode feita no CAPS, com a prescrição dos medicamentos necessários e o paciente em casa.
O problema é que a maioria dos usuários só chega ao serviço de saúde com alto grau de dependência e então a internação se torna necessária. “Cada caso vai ter uma solução ajustada, mas, em média, eles ficam um mês internados. Em seguida, se não têm uma rede externa, contato com a família, são encaminhados para comunidades terapêuticas”.
Tratamento leva seis meses
A fase seguinte, de recuperação, envolve cuidados múltiplos (psiquiátrico, psicológico, social, terapia ocupacional, entre outros) no ambulatório ou em comunidades terapêuticas. “Neste momento, grupos de apoio, como narcóticos anônimos e outros, são muito importantes”, diz a médica.
Em Itapira (interior de São Paulo), cerca de 70% dos internos da Comunidade Terapêutica Rural Santa Carlota são encaminhados por unidades de saúde da capital, a maioria deles, dependentes de crack. O espaço funciona a partir de uma parceria com a Secretaria de Estado da Saúde e o Instituto Bairral e todos os cem leitos disponíveis são para atendimento gratuito.
“O dependente de crack tem características específicas, costuma ter uma compulsão grande e desenvolve uma inabilidade em lidar com um desconforto físico, emocional e psicológico”, diz Mauricio Landre, coordenador técnico da unidade.
No local, os internos cuidam da limpeza dos seus quartos e fazem outras atividades de organização do espaço coletivo. Funcionários da comunidade executam atividades na cozinha e de manutenção da comunidade. Por restrições financeiras ou pelo rompimento do vínculo, só 35% dos internos costumam receber visitas de familiares.
A próxima etapa é voltada para a reinserção do paciente na sociedade e a prevenção das recaídas. Em média, o processo leva seis meses e pode variar de acordo com as necessidades de cada pessoa.
No último passo, o acompanhamento médico se torna menos frente. “Nunca mais esse paciente sai do tratamento. Pelo menos uma vez por ano, ele precisa fazer uma consulta”, afirma Marques.
Quando a rede de atendimento funciona, diz ela, entre 50% e 60% dos dependentes conseguem parar de usar a droga.
Em busca de apoio
No Rio, a clínica Jorge Jaber também atende dependentes químicos, mas é voltada aos que possuem planos de saúde ou podem pagar diárias que variam entre R$ 200 e R$ 300. Em comum, ambas oferecem acompanhamento psicológico, práticas de esportes, atividades físicas e tratamentos em grupo. Na privada, há serviço de hotelaria e equipe médica disponível 24h.
“O dependente puro, que não tem outros problemas psiquiátricos associados, reage bem ao tratamento nas OS (organizações sociais) ou em entidades religiosas”, afirma Jaber, que também faz consultas gratuitas.
No Brasil, 336 comunidades terapêuticas credenciadas pelo Governo Federal estão aptas a receber de forma gratuita dependentes químicos.
Há duas formas de acessar essas unidades: diretamente, pela busca no site, ou a partir do encaminhamento por um CAPS (centro de atenção psicossocial). Segundo as normas, a permanência deve ser voluntária.
Redução de danos é política alternativa
Uma das alternativas à internação são as políticas de redução de danos, quando o usuário é acompanhado por ações que minimizem os riscos a eles próprios ou a outros, sem que haja necessariamente a redução do consumo da droga, como no programa Braços Abertos, instituído pela gestão Fernando Haddad (PT) em São Paulo e interrompido pelo prefeito João Doria (PSDB).
“Essa discussão entre os defensores da redução de danos e os defensores da abstinência completa assumiu um caráter político, mas elas não deveriam se excluir", diz Jaber.
Nós, psiquiatras, devemos perseguir a abstinência total e se a gente não conseguir, que diminua a quantidade da droga, a frequência do consumo e os prejuízos do uso. Isso porque, às vezes, o paciente consegue se dar bem no ‘guichê número um’ e, às vezes, no ‘número dois’”
Jorge Jaber, psiquiatra
Em suas diretrizes para o tratamento de crack, o Conselho Federal de Medicina diz que esse tipo de ação deve ser utilizada “conforme evidências médicas e bases legais”. Em seu site, o Ministério da Justiça afirma que esse tipo de ação é ampara na Constituição Federal e “deve ser realizada de forma articulada inter e intra-setorial, visando à redução dos riscos, as consequências adversas e dos danos associados ao uso de álcool e outras drogas para a pessoa, a família e a sociedade”.
Um problema no tratamento da questão é que faltam médicos nos serviços especializados para tratamento de problemas mentais, que deveriam estar habilitados ao tratamento de dependentes de álcool e drogas. No caso do crack, a cada barreira do sistema, a situação do usuário piora e aumentam os riscos de morte por uma doença associada ou pela violência.
Em São Paulo, uma pesquisa da Unifesp com 131 dependentes descobriu que, após 12 anos da primeira entrevista, 20,6% deles tinham morrido e 18,3% não foram encontrados. Nas certidões de óbito, a causa mais frequente foram os homicídios, seguidos pelas infecções por HIV. Só 10% haviam morrido por overdose.
Entre os localizados pela pesquisa, 16,8% continuavam usando a droga, 10% estavam presos e 32,8% tinham parado.
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