Dor de barriga, vômito, tonturas: a vida dos trabalhadores do tabaco no RS
Álvaro Abegg, de 18 anos, André Bittenbender, 30, Carlos Machado da Silva, 46 e Alison Pozzebon de 23 anos não se conhecem, mas todos têm algo em comum. Os quatro são pequenos agricultores e cultivam tabaco nos municípios de Gramado Xavier e São Lourenço do Sul, no Rio Grande do Sul. Os fumicultores também nunca colocaram um cigarro na boca, mas conhecem bem os sintomas causados pela nicotina quando ingressa na corrente sanguínea.
A doença da folha verde do tabaco (DFVT) é um tipo de intoxicação aguda, que causa dor de cabeça, vômito, fraqueza e cólicas. O Brasil é o segundo maior produtor de tabaco do mundo, atrás apenas da China, de acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde). O problema, no entanto, só aparece em plantações em que não são usadas as proteções adequadas para a colheita.
Assim como os quatro personagens desta matéria, quase 75 mil produtores gaúchos dependem da plantação de tabaco para sobreviver, muitos têm passado pelo mesmo problema e não buscam ajuda nas unidades de saúde locais pela falta de conhecimento ou informação sobre o assunto. A inexistência de um diagnóstico preciso por parte dos profissionais da saúde pode acabar colocando em risco a vida destas pessoas.
Eu fui de manhã para roça e trabalhei até o meio-dia na colheita. Depois coloquei as folhas no forno e comecei a passar mal. Fiquei a tarde e a noite inteira vomitando."
Álvaro Abegg, 18, vive no município de Gramado Xavier
O jovem, que nunca experimentou um cigarro, admitiu que não procurou ajuda médica para sanar os efeitos da intoxicação, que duram de um a dois dias. “Costumava tomar um chá que minha mãe fazia, mas não adiantava”, lamentou.
O agricultor de São Lourenço do Sul, André Bittenbender, 30, também sentia os mesmos sintomas e que tão pouco procurava um médico. “Sentia uma dor de cabeça, tontura, náuseas. A maioria das vezes eu não procurava um médico, o que eu fazia era repouso e logo melhorava”, explicou.
Outra vítima de intoxicação foi o estudante de biologia e agricultor, Alison Pozzebon, 23, que trabalha na lavoura com sua família em Gramado Xavier, na região central do Estado. Durante a colheita de tabaco o jovem chega a ficar 12h em meio a plantação de fumo.
“Teve um dia que o tempo fechou e começou a chover. Ainda faltava um pouco de tabaco para encher a estufa. Coloquei a vestimenta para colher as folhas e logo tirei por causa do calor, pois abriu o sol. Quando chegou a noite comecei a passar mal, sentia tremores, náuseas. Foi horrível, fiquei acordado a noite toda”, lembra Alison.
Quando colhia as folhas úmidas sem EPI (Equipamento de Proteção Individual) me dava dor de barriga, vômito, muita fraqueza e ficava sem dormir, o sono não vinha.”
Carlos Machado da Silva, 46
Overdose de nicotina
A doença da Folha Verde do Tabaco (DFVT) é uma forma de intoxicação aguda resultante da absorção da nicotina pela pele, como se fosse uma overdose, explica Adriana Skamvetsakis, médica e a coordenadora do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador do município de Santa Cruz do Sul (RS).
A doença só foi identificada no Brasil em 2007, devido a um trabalho do Ministério da Saúde no município alagoano de Arapiraca, onde 107 trabalhadores estavam com a intoxicação
“A nicotina é absorvida pelo trabalhador na colheita das folhas. O suor, o orvalho e a chuva facilitam o contato da substância com a pele”, disse Adriana. Os principais sintomas causados pela intoxicação são dores de cabeça, tonturas, mal-estar, fraqueza muscular e problemas digestivos como dores de barriga e cólicas.
A doença da Folha Verde é crônica, no entanto não existem muitos estudos científicos específicos da exposição ocupacional da nicotina em contato com o corpo humano. “Estes estudos são mais direcionados ao tabagismo do que a absorção da nicotina através da pele".
Diagnóstico difícil
Entre as dificuldades para diagnosticar com precisão a doença estão os sintomas, que neste caso são denominados de “inespecíficos”, ou seja, não são sintomas exclusivos da doença da Folha Verde.
“Muitas outras enfermidades podem apresentar dores de cabeça, mal-estar, vômitos, etc. Se o agricultor não chegar no posto de saúde e explicar para o médico que ele estava colhendo fumo, dificilmente o médico irá suspeitar disso. Este é um sério problema”, explicou a profissional da saúde.
Dados da Secretaria Estadual da Saúde apontam em 2017, foram diagnosticados 27 casos, sendo que no município de Gramado Xavier, 19 agricultores relataram as autoridades de saúde os sintomas da intoxicação. Para a médica do trabalho Adriana Skamvetsakis, os dados não representam o que realmente acontece na cultura da colheita do tabaco.
“Acredito que o número de casos seja muito maior do que estes. Mesmo havendo um crescimento nos índices, muitos casos ainda são subnotificados”, disse.
Anaclaudia Gastal Fassa, professora do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas, diz que a dificuldade do diagnóstico também tem relação com a variabilidade dos sintomas de pessoa para pessoa. “As pessoas desenvolvem tolerância à nicotina, então isso tem uma variabilidade individual grande, varia de acordo com o sexo também. As mulheres, por exemplo, apresentam mais sintomas pois desenvolvem menos tolerância. Os fumantes apresentam menos efeitos, ou muitas vezes, não sentem nada.”
Segundo a médica, ainda não há estudos científicos que apontam o verdadeiro impacto dos altos níveis de nicotina que circulam pelo organismo humano por meio da absorção dérmica. “Não se sabe se isso aí tem efeito crônico. Ainda é pouco estudado este tema, mas sabe-se que a doença da Folha Verde é fator de risco para várias outras enfermidades”, disse Anaclaudia Gastal Fass.
Uso da vestimenta para colheita
Para evitar a intoxicação pela nicotina da planta, o Sinditabaco desenvolveu uma vestimenta para ser usada pelos trabalhadores rurais durante a colheita do tabaco.
“Nós contratamos uma consultoria da USP especializada na área de proteção e saúde do trabalhador. Este é um material relativamente confortável e impermeável que garante a proteção contra a absorção da nicotina”, explicou Darci José da Silva, assessor técnico da associação. O kit completo, que inclui calça, jaqueta, luvas, bota e chapéu custa R$ 36.
O Sindibataco/RS alega que as vestimentas têm certificação do Ministério do Trabalho, tanto para a aprovação contra riscos de origem química (agrotóxicos) quanto para a colheita do tabaco.
“Até onde se sabe não existem testes para a absorção da nicotina. A colheita do fumo ocorre no período do verão, e agora imagina você colher o tabaco sob um sol forte com aquela roupa plástica! E aí, o que acontece? A pessoa pode desenvolver a doença do calor. Também há a questão do desconforto do equipamento individual. Não há roupa certificada para a colheita do fumo”, afirmou a médica e pesquisadora.
No campo, muitos produtores de tabaco abrem mão dos EPIs durante a colheita.
“Usamos de vez em quando, quando o fumo está molhado durante a colheita. Mas quando tenho que colocar na estufa, para curar as folhas, não uso nada. Ninguém fica com aquelas roupas o dia inteiro, é muito quente, insuportável”, desabafou um produtor rural que trabalha há mais de 20 anos com fumo na região do Boqueirão, em São Lourenço do Sul (RS).
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