Nova lei de drogas pode criar "indústria da internação", diz pesquisador
Há mais de 20 anos o professor Henrique Carneiro pesquisa história -- mais especificamente a das drogas. E agora, diz ele, o Brasil está a ponto de começar a escrever um capítulo "preocupante" com a ratificação no Senado na última quarta-feira (15) de uma nova Política Nacional de Drogas (Pnad).
"Ela representa um interesse que não é o da saúde pública. A nova política de drogas tem, acima de tudo, um interesse de rentabilizar um setor privado. Isso pode criar uma indústria da internação", diz o pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) ao UOL.
Carneiro se refere às Comunidades Terapêuticas (CTs), instituições privadas, teoricamente sem fins lucrativos, que acolhem pessoas com problemas com drogas.
Apesar de não terem relação com o Estado, muitas recebem dinheiro público para cuidar dos pacientes. E, a partir de agora, com a lei, são parte da política pública brasileira. "Elas não são vinculadas à qualquer perspectiva científica, sanitária, de atendimento médico-psicológico", diz Carneiro.
Em 2017, o Conselho Federal de Psicologia inspecionou, em parceria com o Ministério Público, 28 CTs de todo o país e constatou "privação de liberdade, trabalhos forçados e sem remuneração, violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual, internação irregular de adolescentes e uso de castigos - que podem, inclusive, configurar crimes de tortura."
Críticas
Carneiro também lista outros pontos de atenção em relação à nova Política Nacional de Drogas brasileira e às estratégias que o governo Bolsonaro sinaliza querer implementar no país:
- A nova lei exclui todas as referências à redução de danos (prática de amenizar os riscos a quem não quer ou não consegue deixar de usar drogas);
- O governo deve apostar na abstinência como principal tratamento - não há evidências científicas de que esse seja o melhor método;
- O texto da lei abre a possibilidade para internação do usuário contra a sua vontade. "Se o paciente não for voluntário, ele vai largar isso no primeiro momento", diz o pesquisador.
Leia os principais trechos da entrevista com Carneiro, que também é autor de alguns livros sobre o assunto, entre eles "Drogas: A História do Proibicionismo" (Autonomia Literária, 2019):
Como o sr. enxerga a nova política de drogas implementada pelo governo?
Ela representa um interesse que não é o da saúde pública, nem o da democracia. A nova política de drogas tem, acima de tudo, um interesse de rentabilizar um setor privado que não é ligado ao aspecto científico do atendimento médico e social. Esse setor vai passar a receber um montante de verbas enorme, e é um dinheiro que não é destinado aos Caps [Centros de Atenção Psicossocial, órgão do SUS utilizado também para tratamentos relacionados à substâncias psicoativas]. Isso pode criar uma indústria da internação, já que quanto mais gente internada por mais tempo, mais renda eles podem ter. Os Caps estão carentes de verbas, então como é possível destinar esse dinheiro para setores privados que não têm qualquer competência médica?
As comunidades terapêuticas são uma saída eficiente?
As comunidades terapêuticas que estão no país hoje não têm nenhuma relação com o conceito elaborado por Maxwell Jones [psiquiatra sul-africano, radicado no Reino Unido]. Nesse caso havia participação de médicos, de enfermeiros, de toda uma gama de profissionais. Hoje essas instituições representam o oposto disso, elas não são vinculadas à qualquer perspectiva científica, sanitária, de atendimento médico-psicológico. São instituições sem nenhum protocolo, confinam as pessoas e, muitas vezes, dão a elas drogas que são piores do que as que elas tomam. Essas comunidades inclusive vêm sendo objeto de muitas denúncias, como verdadeiras fábricas de tortura, de trabalho escravo, de falta de direitos, o que por vezes as torna piores que penitenciárias.
A abstinência é o melhor caminho?
É uma das opções que deve ser sugerida ou respeitada se for de adesão voluntária. Se não, não vai funcionar. Dessa forma que está sendo proposta, ela viola princípios fundamentais da democracia. Colocá-la como única política de estado é um retrocesso enorme que compara o Brasil com países como as Filipinas e outros totalitários. Mas acredito que isso não será possível, quando perceberem a realidade da vida, do dia a dia...a única forma que você consegue melhorar é respeitando as vidas e escolhas [dos usuários].
Há menções à internação involuntária como política de drogas. Como o senhor avalia esse tipo de tratamento?
Para que não reincidam, a adesão precisa ser voluntária. Se o paciente não for voluntário, ele vai largar isso no primeiro momento. A adesão é o elemento central, se não houver adesão do paciente, passa a ser uma imposição. É claro que se o indivíduo é perigoso, se ele cometeu um crime, por exemplo, precisa ser detido. Mas considerar que antes de ele cometer qualquer ilegalidade ele pode ser internado à força, só porque faz mal a si próprio, é uma violação de um princípio básico.
E a supressão da redução de danos, há algo que justifique?
É um paradigma defendido pela Organização Mundial da Saúde, vem sendo praticado com sucesso em países da América do Norte e da Europa. E existem bons exemplos no Brasil. O programa Braços Abertos, embora tenha mudado de nome para Redenção por causa da mudança de governo, continuou aplicando a redução de danos. A prefeitura foi obrigada a manter por conta do pragmatismo da situação. Então o poder público continua dando facilidades para moradia em hotel, para pequenos trabalhos, que são a melhor forma de ajudar os dependentes. Você não pode reduzir isso a uma doença, é um contexto social de degradação, e as populações mais frágeis são as mais vulneráveis em relação às drogas.
Em relação às políticas de drogas que vigoram em outros países, estamos no mesmo caminho?
Estamos no caminho oposto. Não tem nenhum país da Europa ou América do Norte que não tenha a redução de danos como política pública. Já visitei programas na Suíça, no Canadá, e existem muitos bons resultados. O Brasil vai na contramão disso. Em países como Inglaterra e Canadá, o próprio Estado fornece a substância para ser consumida em lugar asséptico, para [o usuário] não comprar do traficante.
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