Jamil Chade

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Em carta sigilosa, Milei é acusado por ONU de 'revisionismo' sobre ditadura

Numa carta sigilosa enviada por relatores da ONU para a presidência de Javier Milei, o argentino é acusado de promover um desmonte das políticas de direitos humanos no país e de memória e Justiça em relação aos crimes cometidos pela ditadura argentina entre 1976 e 1983. De acordo com o documento, a Argentina serviu de exemplo por anos sobre como promover uma redemocratização e evitar a impunidade. Mas alerta que, agora, o impacto dessas medidas poderá ser sentido em toda a América Latina e sua busca por Justiça contra regimes autoritários.

A carta, obtida pelo UOL, enumera as decisões tomadas por Milei para minar a responsabilidade do estado argentino diante de crimes contra a humanidade cometidos por militares e cita casos de "revisionismo" e "negacionismo". A cobrança enfureceu o governo Milei que, numa resposta, rejeitou a acusação e alegou que a medida é uma necessidade diante da crise econômica que o país enfrentou.

"A existência de uma crise financeira não deve implicar, por si só, a limitação de recursos humanos e financeiros para determinadas áreas de importância crucial para os processos de justiça transicional e reconciliação, como as entidades dedicadas ao esclarecimento de crimes e graves violações de direitos humanos perpetrados durante a ditadura militar na Argentina", afirma a carta da ONU.

O documento, de outubro de 2024, é assinado por Gabriella Citroni, presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, Morris Tidball-Binz, relator especial da ONU sobre Execuções Extrajudiciais, e Bernard Duhaime, relator especial da ONU sobre a promoção da Verdade, Justiça, Reparações.

Crianças sequestradas

Uma das queixas da ONU se refere à revogação do decreto que criou, há 20 anos, a Unidade Especial para a Investigação do Desaparecimento de Crianças (UEI).

O objetivo original era garantir à Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (CONADI) o apoio operacional para restaurar a identidade das vítimas, esclarecer os atos criminosos e individualizar e processar os responsáveis. As investigações realizadas pela UEI tentariam elucidar, por meio de provas documentais, a origem biológica das pessoas sobre as quais foram recebidas informações de que poderiam ser filhos de pessoas desaparecidas durante o terrorismo de Estado.

Antes mesmo do desmantelamento da unidade, o acesso às informações solicitadas pela Comissão aos Ministérios da Segurança e da Defesa foi restringido em várias ocasiões no governo Milei. Segundo a carta, esses pedidos tinham como objetivo ter os arquivos pessoais de possíveis perpetradores de sequestros - que supostamente eram membros das Forças Armadas e de Segurança.

"Com a dissolução da Unidade, não há nenhuma autoridade especificamente dedicada a tentar elucidar, por meio de provas documentais, a origem biológica de pessoas que possam ser filhos de pessoas que desapareceram durante o terrorismo de Estado", alertaram os relatores da ONU.

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Desde sua criação, a Unidade Especializada processou um total de 6938 casos de investigação de supostas vítimas, alguns dos quais ainda estão em andamento. Desse total, a Unidade processou 2.468 casos, 1.842 que foram arquivados devido à existência de documentação prévia que corroboraria a origem biológica ou a análise genética. 584 casos (quase 25%) foram finalmente encaminhados aos tribunais para elucidação. Foram ainda realizadas 58 restituições de identidade de pessoas nascidas em cativeiro.

Demissões em massa

Na carta, os relatores ainda denunciam o "forte esvaziamento" da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, acompanhado de um "grande número de demissões de trabalhadores, curadores, arqueólogos, historiadores, educadores, equipe de manutenção e outros".

"Em dezembro de 2023, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos tinha uma folha de pagamento de 1.050 pessoas. Em maio de 2024, ela seria reduzida para 870", alertam.

"Essa redução afetaria substancialmente a capacidade operacional de várias áreas para executar diferentes políticas de Memória, Verdade e Justiça e a promoção e proteção dos direitos humanos, em particular na Direção Nacional de Sítios e Espaços de Memória, no Arquivo Nacional de Memória e na Área de Comunicação da Secretaria de Direitos Humanos", indicaram.

As demissões na Área de Comunicação da Secretaria de Direitos Humanos, por exemplo, levaram à demissão de todas as pessoas responsáveis pelo gerenciamento do site onde eram publicadas informações sobre julgamentos em andamento e passados contra a humanidade. "Isso significa que novos procedimentos e desenvolvimentos judiciais não serão publicados, privando assim o domínio público de tais informações", apontou a carta.

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Reparações às vítimas suspensas

A ONU também alerta para a suspensão dos pagamentos de reparações para vítimas de graves violações de direitos humanos. O Ministro da Justiça ordenou uma auditoria abrangente por 180 dias úteis de todos os pedidos de reparação em andamento - mais de 20.000 - durante os quais os pagamentos serão interrompidos.

As autoridades argumentaram que a auditoria é uma resposta à descoberta de irregularidades em dezenas de arquivos. Para a ONU, ainda que as auditorias sejam um procedimento regular, "é preocupante que elas estejam ocorrendo no contexto de declarações de autoridades governamentais de alto nível que colocam em dúvida a credibilidade e a abrangência do programa de reparações e os pedidos de reparações das vítimas".

"Com relação à persecução criminal de autores de crimes contra a humanidade durante a última ditadura militar (1976-1983), há relatos de que o Ministro da Segurança decidiu retirar as recompensas financeiras oferecidas pelo governo àqueles que pudessem fornecer informações que ajudassem a capturar cerca de vinte fugitivos acusados de crimes contra a humanidade, argumentando que os recursos seriam usados no combate ao tráfico de drogas", afirmou a carta.

"Isso poderia afetar as investigações judiciais em andamento e beneficiar os responsáveis por crimes muito graves com a impunidade. De acordo com a Promotoria de Crimes contra a Humanidade, 685 casos estão pendentes", constatou.


Revisionismo e provocações

Num dos trechos da carta, os relatores pedem que o governo Milei explique o está fazendo para lutar contra o "revisionismo" e o "negacionismo" diante das "graves violações de direitos humanos cometidas pela ditadura".

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Um dos destaques do documento é o caso registrado em maio de 2924, quando um grupo de oficiais aposentados realizou uma cerimônia para comemorar o Dia da Marinha, organizando um tour pelo Espacio Memoria y Derechos Humanos Ex ESMA, onde funcionou um campo de detenção durante os anos da ditadura. O local foi o palco de crimes contra a humanidade, cometidos de forma massiva e sistemática. Hoje, o local foi convertido em um lugar de memória e abriga o Museu do Sítio de Memória da ESMA, que foi declarado Patrimônio Mundial pela UNESCO.

De acordo com a carta, no ato, os participantes cantaram a marcha da marinha em dois locais emblemáticos e "tiraram autorretratos comemorativos de si mesmos ao lado de um dos aviões que foram usados nos "voos da morte".

"Também foi relatado que os 5 participantes compartilharam as imagens do evento nas redes sociais, dando a entender que se tratava de um ato de recuperação de um "espaço usurpado", disse.

Em 11 de julho de 2024, foram publicadas fotos tiradas por seis deputados do partido governista na prisão de Ezeiza com um grupo de indivíduos condenados à prisão por sua participação ativa em crimes contra a humanidade. Após a reunião, cinco dos seis deputados teriam redigido um comunicado solicitando a revisão das sentenças dos condenados e que eles fossem condenados à prisão domiciliar.

De acordo com os relatores da ONU, as organizações de vítimas e de direitos humanos exigiram uma investigação e a expulsão dos deputados. "Esses eventos supostamente ocorreram em um contexto de uso recorrente, por parte de altos funcionários do atual governo, de argumentos que relativizam as gravíssimas violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar, tais como questionar o número de vítimas, negar ou minimizar os crimes cometidos e sua natureza, justificar a violência do Estado, desumanizar as vítimas e desqualificar os atores sociais que trabalham com questões de memória, verdade e justiça para esses crimes, inclusive para evitar sua repetição", alertaram.

Violações de obrigações e fim do "exemplo"

No documento, fica evidenciado que os relatores temem que a Argentina, que chegou a ser um exemplo de como lidar com os crimes de uma ditadura, pode estar se afastando dessa condição.

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"Expressamos grave preocupação com as supostas medidas regressivas adotadas pelo atual governo em relação à verdade, justiça, reparação, memória e garantias de não repetição de graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade cometidos durante a última ditadura militar, bem como com os supostos episódios de revisionismo de graves violações de direitos humanos cometidas durante a última ditadura militar", alertaram os relatores.

"Estamos seriamente preocupados com o fato de que as medidas para reduzir as estruturas governamentais dedicadas à promoção da verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição e os atos revisionistas mencionados colocam em risco a realização dos direitos inalienáveis das vítimas à verdade, justiça e reparação, além de implicar o não cumprimento das obrigações nacionais e internacionais do Estado argentino nessa matéria", disseram.

Segundo a ONU, as instituições argentinas "são reconhecidas internacionalmente, tanto regional quanto globalmente, e têm servido de exemplo para o projeto e a implementação de medidas semelhantes de justiça transicional em outras partes do mundo".

"Portanto, os retrocessos que vêm ocorrendo com relação à sua integridade e funcionamento são observados por nossos mandatos e pela comunidade internacional com grande preocupação", lamentaram.

De acordo com a ONU, outros países têm tomado essa estruturas como referência na busca, identificação e especialização de crimes cometidos durante as ditaduras. "Por esse motivo, seu desmantelamento pode ter implicações que afetam os processos de justiça transicional em toda a região", alertaram.

Para a entidade, "a memória de épocas passadas marcadas por graves violações de direitos humanos contribui para o desenvolvimento de uma cultura democrática e de respeito aos direitos humanos e que, ao contrário, a manipulação ou revisão dessa memória a serviço de objetivos políticos e ideológicos pode levar, e muitas vezes leva, à repetição de violências passadas e a novas violações".

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"A negligência nessa área, por ação ou omissão, pode levar à não conformidade do Estado com o direito internacional", completam.


A resposta de Milei

No dia 4 de dezembro de 2024, o governo de Javier Milei rebateu a carta dos relatores da ONU. No documento de 25 páginas, sua administração detalhou o trabalho que está tendo para trazer maior "eficiência" à máquina estatal argentina e insistiu que os processos contra criminosos da ditadura não foram suspensos.

O documento também alega que o encerramento de certas atividades tem como objetivo impedir que o Poder Executivo tenha "funções judiciais". Quanto à suspensão de pagamentos de reparação, o argumento é de que um número elevado de casos não traziam dados suficientes para justifica-los.

A resposta também insiste que está investigando o caso dos deputados que fizeram apologia à ditadura e que o número de funcionários para essas instituições é adequado para que possam cumprir suas funções.

Mas foi a acusação de revisionismo que deixou o governo mais irritado. No texto, a diplomacia alerta que "chama a atenção o fato de a comunicação fazer alusão a episódios de revisionismo ou negacionismo em relação às graves violações de direitos humanos cometidas durante a última ditadura militar, quando o local onde se encontrava a antiga Escuela Mecánica de la Armada abriga hoje a entidade pela Memoria, la Verdad y la Justicia".

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"É uma área de mais de 30 hectares, onde estão localizados mais de 30 edifícios - edifícios emblemáticos, como o Museo Sitio de Memoria ESMA - antigo centro clandestino de detenção, tortura e extermínio; o edifício Cuatro Columnas, onde está localizado o Arquivo Nacional da Memória", insistiu.

"Ele é visitado por mais de 400 pessoas por dia, 20 escolas por semana. Em um contexto como esse, podemos falar de negacionismo, podemos falar que a memória não está sendo preservada? A Secretaria Nacional de Direitos Humanos e todos os seus órgãos descentralizados também funcionam lá. Podemos continuar a falar de negacionismo e do fato de que a memória não é praticada? O Estado argentino gasta 4 bilhões de pesos por ano para apoiar a entidade que administra o local", justificou.

Milei, porém, insistiu em justificar os cortes diante da crise econômica.

"Com relação à preservação dos espaços e locais de memória sob a jurisdição da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, informa-se que, no contexto da crise econômica e financeira pela qual o país está passando, os espaços de memória podem ter uma certa desaceleração na implementação de medidas de conservação devido a questões orçamentárias, mas não estão abandonados", garantiu.

Segundo a resposta, "a herança institucional, econômica e social recebida pela atual administração exigiu a adoção de medidas urgentes para superar a situação de emergência criada pelas condições econômicas e sociais excepcionais sofridas pela nação". "Tornou-se necessário um ajuste fiscal urgente no setor público nacional", disse.

"A fim de fornecer respostas mais eficientes e melhorar o funcionamento das instituições, a República Argentina iniciou um processo de ampla reestruturação do Estado", completou.

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