Ex-gráfica recebe R$ 54 milhões em contratos sem licitação na Saúde no RJ
Uma pequena gráfica inaugurada em julho de 2019, em Guapimirim, na região metropolitana do Rio, mudou de ramo durante a pandemia e conseguiu ganhar um total de R$ 54,4 milhões em contratos sem licitação com o Hospital Federal de Bonsucesso —maior unidade vinculada ao Ministério da Saúde no estado— e o governo do estado do Rio para fornecer remédios e material hospitalar.
Levantamento feito pelo UOL nos processos administrativos que embasam os contratos da Worldpharms —antiga Fábrica de Ideias Gráfica— revela indícios de superfaturamento e de falhas na documentação da empresa, além de atrasos na entrega dos materiais.
O Hospital Federal de Bonsucesso pagou à Worldpharms um total de R$ 1,387 milhão, no primeiro semestre deste ano, por ampolas de omeprazol —remédio usado para tratar problemas gástricos— e luvas descartáveis.
O governo do estado do Rio, por sua vez, já desembolsou R$ 2,4 milhões de um total de R$ 53 milhões previstos em três contratos, assinados em setembro, para o fornecimento de medicamentos utilizados na intubação de pacientes com covid.
O prazo previsto para a entrega expirou no início do mês e cerca de apenas 10% das 1,8 milhão de ampolas de remédios usados em intubação chegaram. O atraso no envio e a diminuição na demanda pelo insumo com a queda das internações por covid levaram a Secretaria Estadual de Saúde a reduzir pela metade o valor dos contratos, por meio da assinatura de termos aditivos.
Por email, a Worldpharms afirmou que pratica "valores de mercado", "dentro dos parâmetros legais" e que "vem entregando os produtos [atualmente ao estado do Rio] conforme disponibilidade e necessidade do uso".
A Secretaria Estadual de Saúde disse que as aquisições foram realizadas "com a participação direta da Procuradoria-Geral do Estado, e acompanhamento de órgãos de controle interno e externo, como Ministério Público Estadual (...) buscando a maior transparência possível, por meio da divulgação de documentos e demais ações administrativas".
Já o Hospital Federal de Bonsucesso se manifestou através de nota enviada pela Superintendência do Ministério da Saúde no Rio em que afirma que "as compras citadas [pela reportagem] encontram-se em processo de auditoria pelo Denasus (Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde)".
Omeprazol mais caro registrado em site federal
Transformada de gráfica em empresa de comércio de insumos hospitalares em maio do ano passado, a Worldpharms ganhou seus primeiros contratos de relevância no setor público no Hospital de Bonsucesso, em dezembro, com a venda de omeprazol para ser usado no tratamento de pacientes com covid e de luvas descartáveis para repor o estoque do almoxarifado após um incêndio que atingiu a unidade.
As duas compras sem licitação feitas pela unidade federal ocorreram seguindo um roteiro semelhante. Algumas empresas foram contatadas por email, e uma convocação de possíveis fornecedores foi publicada num jornal carioca no dia 22 de dezembro, com prazo para que as propostas fossem apresentadas até 13h do mesmo dia.
No caso do omeprazol, o hospital só recebeu duas propostas: uma de R$ 71,66 a ampola, da empresa MPM Produtos Farmacêuticos, e a de R$ 65, da Worldpharms, que foi a vencedora.
O valor é o maior para o produto entre os 34 registrados no Painel de Compras Covid-19, site criado pelo Ministério da Economia para a divulgação de preços praticados pelo setor público durante a pandemia.
Para se ter uma ideia, o segundo maior valor foi de R$ 44,90, de uma compra realizada em dezembro do ano passado pelo Instituto Evandro Chagas, no Rio de Janeiro. O menor foi de R$ 6,40, do 51º Batalhão de Infantaria da Selva, de Altamira (PA), em agosto de 2020.
O Hospital de Bonsucesso pagou R$ 390 mil por 6.000 ampolas de omeprazol. Se, por exemplo, fosse adquirida a mesma quantidade pelos R$ 44,90, a compra teria saído por R$ 269.400. Ou seja, a economia teria sido de pelo menos R$ 120.600.
Ao UOL, a Worldpharms alegou que "num mercado de escassez e pandemia (...) praticar valores de mercado é a única forma de ofertar o produto e garantir o fornecimento".
No processo administrativo, o hospital ainda encaminhou um email a outras instituições federais para questionar sobre valores que estavam sendo praticados para a aquisição do omeprazol.
A mensagem foi mandada às 15h57 de 22 de dezembro e pedia uma resposta até 16h, apenas três minutos depois. Tudo após já ter sido encerrado o prazo para envio de propostas das empresas, às 13h do mesmo dia. Não há registro de qualquer resposta.
Na data em que foi concluída a dispensa de licitação, dia 23 de dezembro de 2020, a Worldpharms ainda não possuía cadastro na Anvisa para armazenar e distribuir medicamentos. Segundo consulta por CNPJ no site da agência, isso só ocorreu em 6 de janeiro deste ano.
A empresa disse que "sempre teve todas as autorizações necessárias para fornecimentos dos produtos ofertados''. E alegou uma "mudança de sede" ao ser questionada sobre a falta do cadastro.
Quantidade de luvas gera dúvidas
Logo após a conclusão do processo de compra do omeprazol, a Worldpharms conquistou o outro contrato sem licitação com o Hospital de Bonsucesso, para o fornecimento de luvas descartáveis, em 28 de dezembro.
A unidade pagou R$ 997.542 por 11.466 caixas que deveriam conter 50 pares cada uma. A caixa saiu a R$ 87.
O que levanta dúvidas é a quantidade de luvas em cada caixa. As duas amostras enviadas ao hospital para aferição de qualidade, cujas fotos constam no processo administrativo, continham 25 pares, metade portanto do que deveriam ter.
O UOL também entrou em contato com a fabricante, a empresa Luvix, que informou que realizou a venda direta para a Worldpharms apenas de caixas de 25 pares, ao valor de R$ 30 cada. A Luvix disse não ter responsabilidade sobre preços praticados por revendedores.
A fabricante também relatou ainda que providenciou a troca de 900 caixas de 25 pares fornecidas ao hospital pela Worldpharms por queixas referentes à coloração do produto, que chegaram através do SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor).
A Worldpharms deveria ter entregado as luvas em janeiro, mas elas só chegaram ao hospital entre 26 de fevereiro e 12 de abril.
Sobre a quantidade de luvas entregue, a reportagem vem insistentemente tentando contato com a empresa através de emails, mensagens e telefonemas a Tiago Costa Rezende Gomes, um dos donos, mas não houve retorno.
Atualmente, o capital social é de R$ 2,4 milhões e a sede fica em Ramos, na zona norte do Rio. Os sócios da Worldpharms são Tiago Costa Rezende Gomes e Luiz Ricardo Nunes Portugal.
Gomes já teve cargo em 2018 na Câmara de Vereadores de Teresópolis, cidade da região serrana do Rio, como presidente da Comissão de Licitações. Portugal foi candidato a vereador na capital fluminense pelo PSDC em 2016, mas não se elegeu.
Mesma concorrente nos dois processos
Na pesquisa de preços das luvas, o hospital recebeu três propostas, além da enviada pela Worldpharms, que inicialmente ofereceu um preço de R$ 89,90 pela caixa.
A mais em conta foi a da MPM Produtos Farmacêuticos, de R$ 87. Coincidentemente, foi a mesma empresa que havia oferecido proposta para vender o omeprazol.
A MPM foi desclassificada porque sequer tinha o cadastro obrigatório no sistema unificado de fornecedores do governo federal, nem tem entre suas atividades o comércio atacadista de medicamentos e insumos. A firma é uma farmácia localizada em Jacarepaguá, na capital fluminense.
"Entrei [no processo de dispensa de licitação] porque tenho uma distribuidora. Mas foi pela farmácia porque uma certidão minha [da outra empresa] estava vencida, algo assim. Aí, como não passou, por ser varejista, a gente saiu da licitação", afirmou, por telefone, Eduardo Barros Pereira, dono da empresa.
O hospital convocou então a Worldpharms, que concordou em equiparar o preço aos R$ 87 da MPM.
Os processos de compra das luvas e do medicamento tiveram o aval do coordenador de administração do Hospital de Bonsucesso, Walter Fernandes Filho. Ele foi exonerado do cargo em fevereiro deste ano, mas voltou a ser nomeado no fim do mês passado.
Atualmente, atua como ordenador de despesas, função responsável pelo controle dos recursos da unidade.
O UOL tentou contato com Fernandes por meio da assessoria de imprensa do Hospital de Bonsucesso, sem sucesso.
Atestado para provar capacidade
Depois dos contratos com o Hospital de Bonsucesso, a Worldpharms voltou à cena com novas dispensas de licitação, desta vez com a Secretaria Estadual de Saúde do Rio, para o fornecimento de medicamentos usados para a intubação de pacientes com covid.
A empresa apresentou um atestado para provar que teria capacidade técnica para fornecer os remédios ao governo do Rio. O documento é assinado por Vitor Marra, dono da Vgmed Comércio e Distribuição de Produtos, empresa com capital social de R$ 600 mil, sediada na cidade de Paty do Alferes, no interior do estado.
No atestado, Vitor afirma que recebeu "dentro do prazo acordado e em ótima qualidade" 2,5 milhões de ampolas de quatro tipos de medicamentos para intubação.
Para cada um dos medicamentos, há no atestado exatas 10 mil unidades a mais do que constava numa proposta inicial enviada pela Worldpharms à Secretaria de Saúde, no valor de R$ 73,1 milhões.
Ou seja, pelo documento, a empresa de capital social de R$ 600 mil teria adquirido mais de R$ 73 milhões em medicamentos da Worldpharms, levando-se em conta o preço oferecido ao estado.
Desde quinta (11), o UOL tenta contato por email e telefone com a Vgmed, sem sucesso.
A Secretaria de Saúde afirmou que "o atestado não possui menção de valores, e sim o quantitativo de medicamentos" e que a Worldpharms apresentou outros documentos solicitados de órgãos sanitários.
Preços acima da média
O estado do Rio assinou no início de setembro três contratos com a Worldpharms para o fornecimento de quatro medicamentos usados em intubação de pacientes com covid, no valor total de R$ 53 milhões.
Em todos os casos, a Secretaria de Saúde fechou negócio com valores acima da média levantada pela própria pasta de aquisições feitas no setor público. Por esse valor médio, o total ficaria em R$ 31,2 milhões, ou seja, uma redução de R$ 21,8 milhões.
A secretaria, no entanto, alegou que os medicamentos da Worldpharms são importados, sem registro sanitário no país, e utilizou uma norma de março deste ano, da CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos) —órgão federal responsável pela regulação econômica do mercado de remédios—, que permitiu a utilização de um teto de preços estipulado pelo órgão.
"A secretaria foi além e requisitou a cada empresa contratada [houve outras nas mesmas dispensas de licitação] uma declaração formal de responsabilidade, com a apresentação de planilha de custos detalhados de como se chegou ao valor proposto", completou a pasta.
Até agora, o estado já pagou R$ 2,4 milhões para a empresa. O prazo previsto nos contratos para a entrega expirou no início do mês e menos de 10% das 1,8 milhão de ampolas chegaram. Esse atraso e a diminuição na demanda pelo insumo com a queda das internações por covid levaram a Secretaria de Saúde a reduzir pela metade o valor dos contratos.
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