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Governo corta verba contra o câncer para bancar orçamento secreto em 2023

Ao lado de Ciro Nogueira, Bolsonaro é cumprimentado por Arthur Lira na convenção do PP que oficializou apoio à tentativa de reeleição do presidente  - Adriano Machado/Reuters
Ao lado de Ciro Nogueira, Bolsonaro é cumprimentado por Arthur Lira na convenção do PP que oficializou apoio à tentativa de reeleição do presidente Imagem: Adriano Machado/Reuters

Felipe Frazão

Brasília

23/09/2022 11h03

O corte de despesas promovido pelo governo Jair Bolsonaro para acomodar os R$ 19,4 bilhões reservados ao orçamento secreto, usado para acordos políticos, atingiu os recursos destinados a investimentos para prevenção e controle do câncer, historicamente a segunda doença que mais mata no País. A verba foi reduzida em 45%, passando de R$ 175 milhões para R$ 97 milhões, em 2023.

Os recursos fazem parte de um dos programas considerados como "estratégicos" pelo Ministério da Saúde, a Rede de Atenção à Pessoa com Doenças Crônicas - Oncologia. Anualmente, a própria pasta costuma recorrer a deputados e senadores para turbinar as verbas do programa, agora à míngua, por meio das emendas parlamentares individuais ou de bancada.

Com a rubrica "estruturação de unidades de atenção especializada", atingida pela tesourada, o Ministério da Saúde repassa dinheiro a governos estaduais, prefeituras e entidades sem fins lucrativos para implementar, aparelhar e expandir os serviços de saúde hospitalares e ambulatoriais. A verba pode bancar a construção, ampliação, reforma e aquisição de equipamentos e materiais permanentes.

O governo reservou para este ano R$ 520 milhões para todas as ações, que foram reforçadas por emendas e chegaram a R$ 1,9 bilhão. Em 2023, o governo reservou apenas R$ 202 milhões, somados todos os planos de aplicação, uma queda de R$ 318 milhões.

Além do controle do câncer, o governo Bolsonaro reduziu a reserva de dinheiro público para incrementar a estrutura de hospitais e ambulatórios especializados que fazem parte de redes focadas em outros três grupos: a gestantes e bebês, a Rede Cegonha; a dependentes de drogas e portadores de transtornos mentais, Rede de Atenção Psicossocial - Raps; e a Rede de Cuidados a Pessoas com Deficiência, voltado para reabilitação. As três são consideradas "estratégicas".

Entre os equipamentos que costumam ser adquiridos com recursos do programa estão tomógrafos, aparelhos de raio-X, de ressonância magnética, de megavoltagem para radioterapia, macas, cadeiras de rodas, incubadoras, oxímetros, ventiladores pulmonares, desfibriladores, entre outros.

O corte pode prejudicar, por exemplo, a reforma e a compra de equipamentos para centros de parto normal, maternidades, bancos de leite humano, UTIs neonatais, hospitais psiquiátricos, centros de reabilitação, oficinas ortopédicas, centros de referência de alta complexidade em oncologia, laboratórios e serviços de referência para diagnóstico do câncer de mama e do colo de útero.

Entre as mulheres, o câncer de mama é o que tem mais incidência no Brasil, com 30% dos casos. Entre os homens, o de próstata responde por 29%, conforme dados de 2020 do Instituto Nacional de Câncer (Inca). O governo não cortou a verba do Inca: serão R$ 430 milhões para 2023, R$ 5 milhões a mais do que dispõe atualmente. Porém, o impacto vai além.

No caso da Rede de Atenção a Pessoas com Deficiência a queda foi de 56%, passando de R$ 133 milhões para R$ 58 milhões previstos pelo governo. A Rede Cegonha e a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) tiveram redução de 61%, com orçamento caindo, respectivamente, de R$ 44 milhões para R$ 17 milhões e de R$ 18 milhões para R$ 7 milhões. Despesas diversas caíram de R$ 150 milhões para R$ 23 milhões.

O acesso a médicos em áreas remotas da Amazônia também foi prejudicado. Os atendimentos e consultas feitos por militares do Exército e da Marinha a ribeirinhos e moradores de regiões de fronteira ou difícil acesso serão limitados, por causa da queda orçamentária. O repasse do Fundo Nacional de Saúde aos comandos militares cairá para R$ 8,1 milhões, ante os R$ 21 milhões transferidos atualmente.

De um total de R$ 1,64 bilhão atualmente, a saúde indígena terá em 2023 somente R$ 664 milhões, com as maiores perdas nas ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde nas tribos e saneamento básico em aldeias.

O Brasil Sorridente, programa com foco na saúde bucal, também perdeu 61% das verbas destinadas a compra de equipamentos odontológicos, reforma e construção de centros de especialidades e laboratórios de próteses dentárias. Antes com R$ 27 milhões, o programa agora terá R$ 10,5 milhões.

Para reservar R$ 19,4 bilhões ao orçamento secreto, o governo Bolsonaro determinou um corte linear de 60% nas verbas da saúde. Como revelou Estadão, a decisão comprometeu, além das verbas para investimento, programas de atendimento direto, como o Farmácia Popular, que distribui medicamentos gratuitamente ou com desconto, e os atendimentos do programa Mais Médicos e Médicos pelo Brasil, cujo objetivo é suprir a carência por atendimentos e minimizar a disparidade regional na distribuição dos profissionais pelo território.

No caso do Farmácia Popular, a verba caiu de R$ 2,4 bilhões para R$ 1 bilhão, um corte de 59%. O programa fornece medicamentos para asma, hipertensão e diabetes, entre outros, assim como fraldas geriátricas. Mais Médicos e Médicos pelo Brasil perderão metade dos recursos: de R$ 2,96 bilhões para R$ 1,46 bilhão.

Depois da repercussão eleitoral negativa, o presidente Bolsonaro e ministros se apressaram em dizer que os programas poderão ter orçamento revisto durante negociação no Congresso. A recomposição, entretanto, depende de acordo político e não tem garantias de que ocorrerá. "O Ministério da Saúde está atento às necessidades orçamentárias e buscará, em diálogo com o Congresso Nacional, as adequações necessárias na proposta orçamentária para 2023", disse a pasta, em nota à reportagem.

"No Brasil pós-pandemia, mais uma vez perde a população e os investimentos estratégicos para estruturar a rede, que serão reduzidos em prol de gastos de baixa qualidade, que atendem muitas vezes interesses particulares em detrimento da alocação a partir da gestão tripartite do SUS (Sistema Único de Saúde)", diz o economista Carlos Ocké, doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e pós-doutor pela Yale School of Management.