Acusado por 40 mil mortes, 'Pinochet da África' vai a julgamento
O ex-presidente do Chade Hissène Habré começou a ser julgado no Senegal por supostos crimes contra a humanidade, entre eles a acusação de responsabilidade em 40 mil assassinatos durante seu regime político (1982-1990).
O julgamento é considerado uma vitória de uma campanha de 25 anos para levá-lo à Justiça.
Habré teve de ser retirado da audiência que teve início nesta segunda-feira (20) em Dacar, capital do Senegal, após ter gritado que o julgamento era uma "farsa" . O julgamento teve início então sem sua presença, para ser logo depois suspenso temporariamente.
Esta é a primeira vez que um país africano julga um ex-líder de outro país do continente.
O ex-ditador nega responsabilidade nos crimes. Na abertura dos trabalhos, ele protestou: "Abaixo os imperialistas. [O julgamento] é uma farsa de políticos senegaleses podres. Traidores africanos, criados da América", disse.
Habré tomou o poder no Chade por meio de um golpe em 1982. De acordo com alguns analistas, ele teria tido apoio da CIA para chegar à Presidência do país africano, como uma tentativa de contrabalançar o poder do ex-ditador líbio Muammar Gaddafi no continente.
O regime de Habré durou oito anos, até que ele fosse deposto. Seu governo é acusado de milhares de assassinatos com motivação política e outros 200 mil casos de tortura, o que lhe rendeu o apelido de "Pinochet africano", em uma referência ao ex-ditador chileno Augusto Pinochet.
Questões
"Por que fui preso? Sou acusado de quê? Por que deixei de existir durante quatro anos? Estas são as perguntas que gostaria de fazer a Hissène Habré", diz Clement Abaifouta, um dos líderes da campanha para levar o ex-ditador à Justiça.
Preso pouco depois de ter terminado o ensino médio, ele foi torturado repetidamente e até forçado a enterrar outros detentos.
Nada disso o derrotou. Abaifouta prometeu a si mesmo que, caso saísse da prisão, lutaria contra a impunidade do governo Habré.
Situações como a dele eram comuns na época do regime de Habré. Várias pessoas foram presas sem justificativa pela polícia secreta, o Departamento de Documentação e Segurança (DDS).
"O DDS era uma máquina de extermínio, com o objetivo de massacrar o povo do Chade. Sabe, durante o governo de Habré, se você tivesse uma mulher bonita, um belo carro, uma boa conta no banco, qualquer coisa que chamasse a atenção podia te causar problemas."
Provas
Vários sobreviventes testemunharam no tribunal em Dacar, no Senegal. Associações de vítimas passaram décadas investigando e reunindo provas contra o ex-presidente do Chade.
"Jovens que nasceram depois do governo de Hissène Habré querem saber o que aconteceu, e temos de ajudá-los. Precisamos fornecer as provas para que historiadores possam reescrever a história do Chade", afirmou Abaifouta.
Passaram-se mais de 20 anos até que o caso chegasse à Justiça, mas em contrapartida, segundo a acusação, agora não faltam evidências.
Reed Brody, da organização Human Rights Watch, diz que a grande vitória foi o encontro de centenas de documentos da polícia secreta que haviam sido abandonados em um prédio vazio em Ndjamena, capital do Chade.
"Só nestes documentos, encontramos os nomes de 1.208 pessoas que morreram na prisão, de quase 13 mil vítimas de tortura, execução sumária e prisões arbitrárias. Os documentos são como um mapa do funcionamento da repressão contra o povo do Chade", diz Brody.
Apesar dos milhares de testemunhos de vítimas, ainda é possível encontrar simpatizantes do ex-presidente em Ouakam, um tranquilo subúrbio de Dacar no qual o ex-líder permaneceu exilado durante 23 anos.
Entre amigos, Habré é conhecido como bom muçulmano e homem correto.
Justiça
Depois da aposentadoria, o ex-presidente se manteve longe da vida pública.
Embora já tenha sido condenado no Senegal em 2013, Habré sempre negou ter conhecimento sobre assassinatos e torturas durante o seu governo e se recusou a colaborar com o tribunal.
Por isso, o atual julgamento é tido como histórico.
A União Africana há muito critica a Corte Penal Internacional, em Haia, que supostamente teria uma tendência a julgar líderes africanos.
De toda forma, Habré não poderia ser julgado em Haia, já que os seus supostos crimes teriam acontecido antes da fundação do tribunal.
Para muitos, a criação de uma corte africana com jurisdição universal abriu um precedente crucial para a Justiça na África.
O Senegal será o primeiro país do mundo a processar um líder de outro país por supostos abusos de direitos humanos.
"Temos de ser capazes de julgar os nossos próprios líderes aqui na África. Sou contra o fato de o [ex-presidente da Costa do Marfim] Laurent Gbagbo ser julgado em Haia", afirmou o estudante de Direito Nafissa. "Este julgamento é importante para nós, vou acompanhá-lo com a maior atenção."
O julgamento é realizado nas Câmaras Extraordinárias Africanas, um tribunal especial temporário criado pelo Senegal e pela União Africana, aberto em 2013.
Para as vítimas do governo Habré, o julgamento poderia marcar uma virada para a Justiça da África.
Elas torcem para que ele sirva como alerta para aspirantes a ditadores do continente de que a impunidade não é para sempre.
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