Sobrevivente de ataque químico ainda bebê reencontra família 27 anos depois
Em 1988, o então líder iraquiano Saddam Hussein lançou um ataque químico contra o próprio país na cidade curda de Halabja, onde aviões despejaram uma mistura de gás mostarda e gás sarin (que afeta o sistema nervoso) contra uma comunidade curda rebelde. Milhares de pessoas morreram e muitas famílias se separaram no caos que se instalou após o ataque.
Na época, Maryam Barootchian era um bebê. Acabou sendo criada no vizinho Irã, mas voltou recentemente ao Iraque para tentar reencontrar parentes sobreviventes. E conseguiu encontrar seus familiares em um programa de televisão, diante de uma audiência de milhões de pessoas.
Barootchian havia sido retirada da cidade por soldados iranianos e levada até Teerã de helicóptero. A bebê acabou sendo separada da mãe, que teve problemas de visão devido ao ataque químico. Mas ela só descobriu tudo isso muitos anos depois.
No Irã, Barootchian foi adotada por uma família que havia perdido a filha de 14 anos para a leucemia e criada na cidade de Sari, perto do Mar Cáspio.
"Um dia ligaram do [Departamento de] Bem-Estar Social e disseram que crianças estavam chegando da zona de guerra. 'Venha pegar uma'", contou Fatemeh, a mãe adotiva de Barootchian. Foi ela quem escolheu o nome Maryam, o mesmo da filha que havia morrido.
"Eu precisava deste nome, queria trazer a memória dela de volta", disse Fatemeh. Ela conta que a primeira noite em que a bebê dormiu em seus braços foi como se "Maryam estivesse de volta, viva de novo".
Preconceito
À medida que crescia, Barootchian começou a sentir o preconceito de outras crianças. "Um dia eu estava brincando com outras crianças no jardim de casa. Até que elas me disseram que eu não podia mais brincar. Perguntei por que e elas responderam: 'porque você é adotada'. Não entendi o que 'ser adotada' significava."
"Elas disseram: 'Significa que você não é filha dos seus pais. Se você olhar para o seu álbum de família, vai ver que eles não se parecem com você'. Fui para casa e olhei minhas fotos. Elas estavam certas", disse.
Apesar do relacionamento nem sempre ter sido fácil com a mãe adotiva, Barootchian era muito próxima de seu pai, Hushang.
Depois que ela completou 18 anos, Hushang confirmou que ela tinha sido adotada e explicou que Barootchian era curda, acrescentando que não sabia com certeza onde ela havia nascido. Hushang morreu pouco tempo depois.
"Ninguém me consolou. Eu chorava no túmulo de meu pai e [as pessoas] falavam: 'Por que você está chorando? Você não é filha dele'", contou.
"Então entendi que meus problemas só estavam começando. Que minha tristeza só estava começando. Me senti tão sozinha que, depois de dois anos, pedi ajuda de minha mãe para encontrar minha família."
Viagem
Barootchian viajou para cidades e vilarejos iranianos de maioria curda, procurando por pistas. Por sorte, encontrou dois assistentes sociais curdos no aeroporto de Teerã e eles conheciam pessoas na Sociedade de Vítimas do Ataque Químico de Halabja, que ajudava a reunir as crianças perdidas a suas famílias, por meio de exames de DNA.
"Eu sabia que tinha nascido mais ou menos na mesma época do ataque químico contra Halabja. E pensei que poderia ser uma das crianças de Halabja cuja família foi morta ou teve que deixar o lugar", disse.
Luqman Qadir, líder da Sociedade, se encarregou do caso de Barootchian.
"Quando essa catástrofe aconteceu em Halabja, nós estávamos lá, vimos o que aconteceu, então entender a história de Maryam é fácil para nós. Vimos dezenas, até centenas de crianças que perderam os pais e estavam espalhadas pelo Irã", disse.
Ninguém sabe exatamente o número de crianças que ainda estão desaparecidas, e Barootchian é uma das poucas "crianças perdidas" que estão voltando para Halabja em busca de seu passado.
"Perder os pais é um desastre para qualquer um, mas é particularmente difícil para mulheres, pois quando elas querem se casar escutam perguntas sobre o passado delas", afirmou Qadir.
E Barootchian confirma que havia uma possibilidade de casamento, mas a família do noivo desistiu ao saber que ela era adotada.
"Várias vezes, quando era criança, me disseram: 'ninguém sabe quem são seus pais, você pode ser ilegítima ou resultado de um casamento temporário, ou você pode ter sido encontrada em uma lata de lixo ou em um banheiro'. Mas agora sei que sou daqui e posso andar de cabeça erguida", disse ela.
Famílias desesperadas
Quando Maryam Barootchian chegou a Halabja em maio para começar os exames de DNA encontrou famílias desesperadas que ansiavam para que ela fosse sua filha perdida.
Farhard Bazarnji, especialista em doenças genéticas na cidade iraquiana de Sulaymaniyah, perto de Halabja, se ofereceu para ajudar Barootchian. Ela foi à TV pedir para as pessoas que fizessem testes de DNA. Bazarnji examinou 58 famílias e selecionou um grupo menor.
Barootchian se encontrou com as pessoas cujo DNA era mais próximo do seu. Até que, em agosto, todos se reuniram no monumento pela paz em Halabja para o anúncio da especialista Farhar Bazarnji, que foi transmitido pela TV.
"Maryam, infelizmente seu pai está morto, ele foi uma das vítimas do ataque em Halabja", disse Bazarnji na transmissão. "Mas, felizmente, posso falar esta noite: Maryam, você tem um irmão. Maryam, você tem uma mãe, e esta noite você ficará feliz pois vai encontrá-los. Até hoje você era conhecida como Maryam, mas hoje posso te dizer que seu nome é Hawnaz e você é filha da senhora Gilas Eskander."
A multidão presente gritou e aplaudiu. Uma mulher idosa usando óculos escuros se levantou e foi levada até Barootchian, repetindo o nome da filha, "Hawnaz", abrançando-a e chorando muito. Gilas Eskander foi a última pessoa a se apresentar para o exame de DNA em julho, e descobriu-se que ela é a verdadeira mãe.
"Estou tão feliz. Sinto como se tivesse renascido, como se estivesse vendo o mundo com novos olhos", disse Eskander.
As outras famílias ficaram decepcionadas.
"Depois de três meses de turbilhão psicológico, estou arrasada. Pensei que minha irmã tivesse voltado à vida, mas esta noite eles a mataram", disse uma delas.
Eskander, por sua vez, pensou que a filha tinha morrido no ataque químico. Ela se casou novamente e vive entre Halabja e a cidade iraniana de Paveh, onde ainda recebe tratamento para os problemas de visão.
Agora, Barootchian está conhecendo o irmão mais velho, que veio da Holanda para se encontrar com ela, um meio-irmão e uma meia-irmã. O irmão mais novo está desaparecido desde o ataque de 1988.
Desde a revelação no programa de TV, ela passou meses conhecendo a família em Sulaymaniyah e Irbil. Ela, que cresceu falando persa (língua oficial do Irã), está aprendendo a falar curdo.
E o governo regional curdo prometeu ajuda financeira a todas as crianças perdidas do ataque contra Halabja e para encontrarem suas famílias.
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