A loja na Bahia que abre mercados com proposta '100% negra'
O mundo da moda não reflete a realidade do Brasil, país em que os negros (pretos e pardos) são maioria - somavam 53,6% da população em 2014.
De olho nessa desproporção histórica, um jovem casal de Salvador criou uma loja virtual que tenta mostrar que é possível, sim, priorizar a negritude nesse mercado - e lucrar com isso.
Lançada neste ano, a Kumasi é uma plataforma de vendas online que reúne artigos artesanais produzidos somente por pequenos empreendedores negros.
"É uma loja também para marcar posição. Abrir e ocupar espaço no ambiente de negócios, criar uma narrativa protagonizada por nós mesmos", diz Lucas Santana, 23 anos.
Estudante de Engenharia Elétrica, ele toca o negócio ao lado da namorada, Monique Evelle, 23 anos, e da sogra Neuza Nascimento, 46 anos.
Frases e expressões feministas e antirracismo estampam produtos à venda no site. "Poder às minas pretas", "Nunca fui tímida, fui silenciada", "Tentaram nos enterrar, esqueceram que somos sementes".
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Com seis meses de funcionamento, a Kumasi vem ganhando espaço em duas frentes: clientes tradicionais, atraídos por peças específicas, e os "ativistas", que consomem por uma causa.
Desabafo social
E a própria loja nasceu por uma causa: levantar recursos para bancar a Desabafo Social, rede de educação em direitos humanos criada por Monique e que transformou a jovem em referência quando o assunto é feminismo negro e ativismo social no Brasil.
A rede de jovens e adolescentes começou em 2011 como uma chapa de grêmio estudantil de escola pública. Hoje tem 30 mil seguidores na internet. Com 80 voluntários em 13 Estados, organiza grupos de estudos, videoconferências e oficinas sobre temas como racismo e inserção social.
Pensando em como bancar a rede, Monique e Lucas tiveram a ideia de vender camisetas com a frase que se tornou marca registrada da jovem: "Se a coisa tá preta, a coisa tá boa".
"Uma vez conversava com amigas sobre frases racistas e mencionamos que é comum dizer que a 'coisa está preta' quando algo está ruim. Então, numa palestra em 2014, eu disse que 'se a coisa está preta, na verdade está boa'. Isso viralizou", diz Monique, prestes a se formar em Humanidades na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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Vitrine virtual
Na loja virtual batizada com o nome da cidade de Gana que abriga o maior mercado popular do oeste da África, apenas negros podem vender - e ser modelos para as peças em exposição.
"Uma vez recebemos uma mensagem dizendo que ter apenas modelos negros era racismo. Mas e em todo lugar que só tem modelo branco, não é racismo?", questiona Monique.
As camisetas são o carro-chefe, mas o site também expõe turbantes, agendas, bonés, colares e outros acessórios produzidos por oito microempreendedores convidados.
A família reúne os pedidos e faz dois despachos por semana - Rio e São Paulo são os destinos da maioria das encomendas.
Participantes
A artesã Evanilza dos Santos, 58 anos, participava de feiras esporádicas por Salvador e diz que suas vendas de semijoias cresceram 50% no site. "É muito diferente a exposição do produto na internet", diz.
Em feiras, cobra-se, em média, uma comissão de 20% aos participantes. No site, a taxa é de 12%, e integrantes contam com atividades de qualificação, como workshops de marketing digital, produção de vídeos para redes sociais e acesso a microcrédito.
"Tento resgatar as raízes do povo negro com minhas peças. Sentia falta disso em produtos que encontrava na rua", diz Annia Rizia, 24 anos, que produz acessórios com búzios.
Estudante de Artes na UFBA, Rizia diz que o trabalho artesanal é sua única renda hoje, e ajuda a financiar os materiais do curso. "A grande vantagem do site é que posso enviar produtos a outros Estados. Sem essa parceria, o custo era muito alto."
Autoestima
Segundo o instituto Data Popular, oito de cada dez pessoas que melhoraram de vida no Brasil nos últimos 15 anos são negras. Ascensão social e aumento da autoestima se refletem no consumo, afirma o instituto, elevando a demanda por linhas e produtos específicos para a população negra.
No caso da Kumasi, a divulgação ganhou com "embaixadores voluntários" que endossaram os produtos nas redes sociais, como o ator Lázaro Ramos e os músicos Liniker e Tassia Reis.
Hoje já há outros empreendedores interessados em integrar a plataforma, que passa por um upgrade tecnológico para reunir mais vendedores e clientes sem prejudicar a navegação e a logística.
A visibilidade também tem seu preço - o slogan de Monique, por exemplo, já estampa peças de outras lojas. "A galera não tem criatividade. Nossos próprios clientes quando veem uma imitação nos avisam. Isso é mais uma prova de que se a coisa tá preta, a coisa tá boa", brinca a estudante.
Trajetória
Filha única de uma empregada doméstica e de um segurança de condomínio, Monique foi criada no Nordeste de Amaralina, região de Salvador estigmatizada pela pobreza e violência.
Desde cedo, ouvia histórias da mãe em que as protagonistas eram princesas negras e de cabelo crespo. "Não existiam princesas negras. Eram todas brancas, de cabelo comprido. Monique não se via nas princesas, então eu criava a personagem", diz a sócia e mãe, Neuza.
Desde a adolescência, Monique usava o tempo livre em atividades com jovens em bairros da periferia. Chegava sozinha - para se aproximar, jogava bola no meio de garotos ou cantava rap. Quando conseguia atenção, puxava papo sobre temas de cidadania e direitos humanos.
"Conversamos sobre como agir durante abordagens policiais, por exemplo, e também mostramos exemplos de pessoas que mudaram a própria realidade", afirma Monique, que tem sido convidada a falar em eventos no Brasil e no exterior.
Apenas nos três últimos anos, a jovem de Salvador figurou entre as "25 mulheres negras mais influentes no Brasil" (site Blogueiras Negras, 2013) e "30 mulheres com menos de 30 para ficar de olho" (Editora Abril, 2015), figurou na lista Mulheres Inspiradoras 2015 (site Think Olga) e ganhou o prêmio Laureate Brasil 2015, voltado para jovens com ações de empreendedorismo social.
Parceria
O outro pilar da empreitada é Lucas - "realizador de sonhos" da loja, segundo a definição no site da empresa.
Estudante do nono semestre de engenharia, ele trabalha presencialmente por três dias da semana no espaço colaborativo em que organizam as entregas. De casa, responde clientes, faz a manutenção do site e cuida do marketing digital.
Neuza, que trabalhou mais de dez anos como empregada doméstica e diarista, hoje tem sua única atividade na loja. Diz ter "muito orgulho" de ser sócia da filha e afirma que sempre a apoiou. "Nunca desacreditei minha filha, mesmo no início. Ela não ganhava nada, mas ajudava várias crianças."
Hoje a Kumasi funciona como MEI (microempreendedor individual), com limite de faturamento de R$ 60 mil/ano. A ideia é mudar para outro regime de tributação quando atualizarem a plataforma e puderem incorporar mais vendedores.
A loja funciona como marketplace - espaço onde expositores e compradores se encontram e fazem transações. Os vendedores, independentes, recebem pelos produtos que vendem, descontada a comissão do site.
Já a venda de produtos do Desabafo Social (como a camiseta "Se a coisa tá preta...") continua sendo destinada às ações da rede, que acaba de se enquadrar como Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) e quer criar uma rede de educação à distância em 2017.
"Tudo que fazemos é pensando na transformação. Na Kumasi ou nas outras atividades, a ideia que todos cresçam juntos", diz Monique.
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