A mãe que sofreu aborto na lama e luta para incluir feto entre vítimas de Mariana
"Pensa em milhões de trovoadas de uma vez. Era o barulho da lama. As paredes da casa começaram a tombar em cima da gente. Meu irmão gritava. Veio a lama e arrancou meu filho de 2 anos e minha sobrinha dos meus braços. Foram os dois, dentro da lama. Eu afundei. Não enxergava mais nada."
Priscila Monteiro, de 28 anos, fazia aniversário naquela tarde de quinta-feira, 5 de novembro de 2015, em Bento Rodrigues, vilarejo perto de Mariana (MG). Estava grávida de 3 meses. Faria um ultrassom no dia seguinte. "Queria muito saber o sexo do bebê."
"Aí, senti a dor do aborto. A dor do aborto. Perdi meu bebê e fui arrastada pela lama. Eram ondas, eu afundava, me cortava toda. Engoli muita lama. Furei meu rosto e cortei costela, pernas, braços, nádegas. Meu maxilar saiu do lugar. A lama levou toda minha roupa."
Narrada um ano depois à BBC Brasil, a história de Priscila ilustra o impacto da maior tragédia ambiental brasileira de que se tem notícia e vai além do leito cor de barro do rio Doce, dos peixes e margens contaminados, dos destroços de casas sem teto.
Ela foi arrastada por mais de um quilômetro e ficou 13 dias internada. No segundo dia, soube que o filho Caíque fora encontrado vivo. No quinto, lhe disseram que a sobrinha Emanuele Vitória, 5, havia morrido. O marido e o segundo filho, de 9 anos, estavam bem.
Desde então, pede que o bebê que carregava na barriga seja reconhecido como a 20ª vítima fatal da tragédia. Mas a dona da barragem rompida, a mineradora Samarco, controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton, nega responsabilidades sobre o feto.
Laudos
"A Samarco diz que o estouro da barragem não seria suficiente para ela perder o bebê", diz o advogado de Priscila.
Procurada pela BBC Brasil, a empresa disse que "não comentará o assunto". A reportagem enviou quatro perguntas à mineradora:
- A Samarco reconhece a perda do bebê em decorrência da tragédia?
- Que medidas compensatórias a empresa propôs ou proporá?
- A família pede que o bebê seja incluído na lista de vítimas. Seria o 20º óbito. Qual é o comentário da empresa?
- A Samarco inicialmente questionou a gravidez de Priscila. Por quê?
Na única vez em que comentou oficialmente o caso, há seis meses, a Samarco informou que contratou um especialista para examinar Priscila e que ele constatou que ela não estava grávida.
"Será que é por que eu tinha perdido o bebê?", questiona hoje Priscila, irritada. Ela diz que nunca viu o resultado do exame.
Seus advogados apresentaram à reportagem três fichas médicas. "Encontrava-se grávida, com confirmação laboratorial e clínica, até a última consulta", diz um deles. "Gestante de 8 a 12 semanas", diz outro. "O obstetra que a avaliou informou que perdeu o bebê", diz o terceiro.
"Não são 19, são 20 [mortes]. Meu filho é vitima. Eu amava. Eu tinha roupinhas", diz a jovem, que hoje mora em Mariana com a família - o marido e dois filhos.
'Você tem que esquecer'
No aniversário de um ano da tragédia, a família ainda se adapta à nova vida em Mariana.
"Meu filho Caíque volta para casa chorando da escola porque chamam ele de 'pé de lama'. Chamam a gente de aproveitadores. Ele não tem mais liberdade para brincar na rua, aqui eu não vou pra soltar [de casa]."
A reportagem pergunta por quê. "Ele pode ser atropelado, roubado, morto. Tem gente que mata aqui por nada."
Séria durante toda a entrevista, sem rir ou chorar, Priscila conta que a empresa ofereceu acompanhamento psicológico às vítimas logo após o desastre.
Tentou, mas não frequentou as sessões por muito tempo.
"Parei porque os psicólogos pediam para eu esquecer. Como esquecer? Eles pediam para eu contar como aconteceu. Eu contava tudo e eles falavam: voce tem que esquecer. Eu perdi meu bebê, minha sobrinha morreu, meu filho quase morreu. Como assim esquecer?"
Legislação
Seus advogados ajuizaram uma ação contra a mineradora Samarco, que junto a suas controladoras sofre hoje mais de 18 mil processos judiciais decorrentes da ruptura das barragens que guardavam milhões de metros cúbicos de restos de minerais, produtos químicos e entulho.
"Como ainda não foi designada audiência, ainda a empresa não se pronunciou dentro do processo", diz a acusação, que pede indenização por danos materiais e morais devido ao trauma de Priscila.
A reportagem não encontrou registros de casos similares ao de Priscila no Brasil.
Para Paulo Avila Fagundez Procurado, professor de bioética e biodireito da Universidade Federal de Santa Catarina, o episódio pode ser interpretado pelo conceito de "nascituro", presente na legislação brasileira.
"A pessoa passa a existir a partir do momento em que o feto sai do ventre. Mas a lei indica os direitos do nascituro, aquele que ainda virá a nascer, porque o aborto é hoje um crime contra a vida no Brasil."
Para a lei, explica o professor, o nascituro é como "uma pessoa virtual", "uma expectativa de vida humana".
"Segundo a lei, qualquer interrupção que ocorra no curso da gestação é crime e passível de punição, e quem comete o aborto na pessoa responde por crime. Nesse caso, o acidente foi responsável pelo aborto, contra a vontade da gestante."
Nove meses depois da tragédia, diretores das mineradores reconheceram pela primeira vez que o episódio foi fruto de uma obra na barragem. O anúncio foi feito pelos presidentes da Samarco e da Vale e pelo diretor comercial global da BHP - jornalistas não foram autorizados a fazer perguntas na ocasião.
"Eu queria ver o presidente da Samarco um dia", diz Priscila.
"Se eu tivesse feito um aborto, estava presa, teria cometido um crime. Ele arrancou meu filho à força do meu ventre e nada acontece."
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