Geddel x Calero: Entenda crise e suas possíveis implicações jurídicas
O ministro Geddel Vieira Lima (Secretaria de Governo) pediu demissão do cargo nesta sexta-feira diante do agravamento da crise causada pela acusação de que teria pressionado o ex-ministro da Cultura, Marcelo Calero, para liberar a construção de um imóvel de 30 andares e 107 metros de altura em área de interesse do patrimônio histórico em Salvador.
O caso se agravou após a revelação, nesta quinta-feira, de que Calero afirmou em depoimento à Polícia Federal que o presidente Michel Temer o "enquadrou", pedindo que buscasse uma "saída" para a autorização da obra na capital baiana, na qual Geddel comprou um apartamento - unidades no local são avaliadas em R$ 2,6 milhões.
Por meio de seu porta-voz, Temer afirmou que apenas deu encaminhamento adequado ao "conflito" entre ministros e órgãos públicos, tentando direcionar o caso à Advocacia-Geral da União para uma solução.
Na carta de demissão, Geddel adotou um tom pessoal, dirigindo-se a Temer como "fraterno amigo". "Avolumaram-se as críticas sobre mim. Em Salvador, vejo o sofrimento dos meus familiares. Quem me conhece sabe ser esse o limite da dor que suporto. É hora de sair", escreveu.
Entenda o que motivou a queda de Geddel, um dos aliados mais próximos a Temer, e as irregularidades que ele e o próprio presidente podem ter cometido caso as acusações sejam comprovadas.
1) Qual a denúncia?
Calero afirmou ao jornal Folha de S.Paulo que foi procurado por Geddel várias vezes para intervir no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) com objetivo de liberar a construção de um prédio de 30 andares em área histórica de Salvador, o empreendimento La Vue.
O interesse do ministro se deve ao fato de que, segundo sua própria versão, assinou um contrato de compra e venda de um imóvel no empreendimento em 2015. Além disso, a Folha de S.Paulo revelou que parentes de Geddel atuam como representantes da obra junto ao Iphan.
Em depoimento à Polícia Federal na semana passada, Calero disse que levou o caso ao presidente e que Temer o teria "enquadrado".
"Que na quinta, 17, o depoente foi convocado pelo presidente Michel Temer a comparecer ao Palácio do Planalto; que nesta reunião o presidente disse ao depoente que a decisão do Iphan havia criado 'dificuldades operacionais' em seu gabinete, posto que o ministro Geddel encontrava-se bastante irritado", relatou o ex-ministro à PF.
"Que então o presidente disse ao depoente para que construísse uma saída para que o processo fosse encaminhado à AGU (Advocacia-Geral da União), porque a ministra Grace Mendonça teria uma solução", disse ainda Calero, segundo a transcrição do depoimento enviado ao Supremo Tribunal Federal e à Procuradoria-Geral da República.
Calero disse que o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, também o procurou para tratar da questão.
2) Quais ilegalidades podem ter sido cometidas?
Caso as acusações sejam comprovadas, Geddel terá cometido infrações civis e também criminais, explicou à BBC Brasil o ex-ministro da Controladoria-Geral da União (CGU) Jorge Hage, que comandou a pasta de 2006 a 2014, durante os governos do PT no Planalto.
A CGU é o órgão principal do Poder Executivo que cuida do combate a práticas de corrupção e outras irrgularidades.
Uma das leis que teriam sido desrespeitadas por Geddel é a de "conflito de interesses".
A legislação proíbe "atuar, ainda que informalmente, como procurador (facilitador), consultor, assessor ou intermediário de interesses privados junto aos órgãos ou entidades da administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios".
Essa lei prevê que o agente que incorrer em conflito de interesses pode ser punido por improbidade administrativa.
Entre as punições previstas está a suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, multa de até cem vezes o valor da remuneração do agente, além de demissão.
O Código Penal descreve o crime de "advocacia administrativa", que consiste em "patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário".
A pena prevista pode chegar a um ano de prisão mais multa.
"De modo que as tipificações são várias e todas elas graves. Agora, tudo isso, estou lhe falando em tese, que não estou na posição de julgar nada", ressaltou Hage.
Para o ex-ministro da CGU, não está claro se Temer teria também incorrido em "conflito de interesses". Em todo o caso, o entendimento que tem prevalecido, explica ele, é que essa lei não se aplica ao presidente.
No caso de Temer, ele está submetido a lei 1.079, que trata das hipóteses de crime de responsabilidade, puníveis por meio de impeachment ou ação penal.
Essa lei prevê como crime de responsabilidade "servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua".
O senador Lindbergh Farias (PT-RJ) já disse que um grupo de parlamentares da oposição pretende protocolar um pedido de impeachment nos próximos dias.
Para que tal denúncia caminhe, no entanto, ela teria que ser aceita pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), aliado de Temer.
Para o professor de direito constitucional da FGV-SP Rubens Glezer, a forma das conversas entre Temer e Calero é essencial para configurar se houve pressão indevida pelo presidente.
Isso poderia ser esclarecido caso existam gravações desses diálogos, o que não foi oficialmente confirmado - em nota enviada à imprensa nesta sexta, Calero negou que tenha pedido audiência com Temer com a intenção de gravar a conversa, boato que tem circulado desde que seu depoimento à PF se tornou público.
Segundo o ex-ministro, a informação sobre as supostas gravações teriam sido disseminadas "a partir do Palácio do Planalto".
"A forma como foi feita a conversa muda totalmente se há ou não crime. Por isso o acesso aos áudios daria muita pertinência (à versão). Se houve uma exigência ou mesmo uma solicitação para que o Calero agisse contra a lei, isso é crime de concussão (exigir vantagem indevida para si ou outra pessoa) ou corrupção passiva", afirma Glezer.
3) Qual a versão dos acusados?
Os ministros citados e o presidente reconhecem ter tratado com Calero sobre o Tema.
Geddel argumenta que não o pressionou e que o fato de ter o apartamento não o impediria de tratar da questão - ele afirma que pelo contrário, isso o credenciava a abordar o tema já que tinha conhecimento do assunto.
Segundo o então ministro, a obstrução da obra prejudicava muitas pessoas que, como ele, compraram apartamentos no empreendimento, que chegou a receber autorização do Iphan da Bahia.
Segundo a Folha de S.Paulo, porém, a superintendência do Iphan na Bahia autorizou em 2014 a construção do edifício com base em um estudo interno, ainda sem valor legal. A autorização depois foi derrubada pelo Iphan nacional, o que provocou as abordagens de Geddel a Calero.
Temer, por sua vez, disse por meio de seu porta-voz, que "conversou duas vezes com o então titular da Cultura para solucionar impasse na sua equipe e evitar conflitos entre seus ministros de Estado".
O presidente argumentou também que "buscou arbitrar conflitos entre os ministros e órgãos da Cultura sugerindo a avaliação jurídica da Advocacia-Geral da União, que tem competência legal para solucionar eventuais dúvidas entre órgãos da administração pública".
Para sustentar seu argumento, Temer destaca que "havia divergências entre o Iphan estadual e o Iphan federal".
4) Quais são as possíveis inconsistências na versão do governo Temer?
Para o ex-titular da CGU Jorge Hage, a versão de Temer é "no mínimo, complicada".
Ele observa que, no caso do Iphan da Bahia e do Iphan federal não há conflito entre "diferentes órgãos", porque a instância regional está hierarquicamente abaixo da federal.
"A competência da AGU não tem nada a ver com esse caso. A competência da AGU é quando há um conflito entre órgãos diferentes da administração", disse.
Segundo Hage, a AGU tem poder de intervir quando órgãos distintos, mas com competências semelhantes, estão em conflito - como, em um exemplo hipotético, se CGU e Ministério da Justiça divergissem sobre alguma questão relacionada ao combate à corrupção.
A CGU é justamente o órgão principal do Poder Executivo que cuida do combate a práticas de corrupção e outras irregularidades.
"Não há nada de conflito aí (entre órgãos, no caso do Iphan). Muito menos, por outro lado, seria conflito entre o ministro da Cultura e o ministro da Secretaria de Governo, porque o ministro da Secretaria de Governo não está no exercício de sua função, ele está como particular interessado num apartamento. Não tem nada a ver", observou.
Oscar Vilhena Vieira, diretor da Escola da Direito da FGV-SP, considera "natural" que a AGU seja acionada para dar um parecer técnico quando há conflito entre duas instituições públicas. A questão, ressalta, é se o conflito tinha motivação particular.
"É uma explicação razoável que é dada (remeter a questão à AGU). A questão é se houve ou não a defesa de um interesse privado. Isso que complica a coisa."
Na avaliação do professor de direito constitucional da FGV-SP Rubens Glezer, parece evidente que não havia conflito de natureza "institucional" a ser arbitrado.
"Não tem um questionamento (legítimo) de um ministro a outro ministro. Ele (Geddel) não teria que se meter naquilo como ministro. Não tinha espaço institucional para esse tipo de conversa", ressalta.
"O que você tem é um agente público tentando fazer com que outro não realize adequadamente sua função em prol do interesse privado."
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