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Tim Vickery: A queda da centro-esquerda, Trump e a conta que os pobres não pediram, mas terão de pagar

O presidente eleito dos EUA Donald Trump fala durante evento em Wisconsin - Shannon Stapleton - 13.dez.2016/Reuters
O presidente eleito dos EUA Donald Trump fala durante evento em Wisconsin Imagem: Shannon Stapleton - 13.dez.2016/Reuters

Tim Vickery, colunista da BBC Brasil*

23/12/2016 16h14

Será que alguns dos grandes choques de 2016 são realmente tão surpreendentes?

Tenho o hábito de copiar dos jornais coisas que acho interessantes. Numa visita à Inglaterra pouco mais de dois anos atrás, li o relato de um jornalista (Julian Baggini) depois de investigar as cidades do norte do país, celeiro da Revolução Industrial.

Cidades que hoje em dia ficam sem muita função. Se houver emprego, está no varejo ou num call center, com condições inferiores aos velhos postos na fábrica.

Baggini conclui que houve "um fracasso da classe política em lidar com aqueles que foram deixados para trás pela Grã-Bretanha pós-industrial. Os principais partidos políticos não têm dado atenção suficiente aos perdedores da sociedade, achando mais conveniente perseguir os votos mais volúveis (ou seja, buscar o centro) e moralmente mais fácil defender o multiculturalismo inclusivo".

"O que estamos vendo agora com a ascensão do UKIP (partido da direita populista britânica), porém, é que evitar as questões difíceis é socialmente corrosivo e eleitoralmente perigoso no longo prazo."

Isso foi escrito em agosto de 2014 e já explica a votação a favor de Brexit (a saída da Grã-Bretanha da União Europeia) e o triunfo de Donald Trump nos Estados Unidos. Então, só ficou surpreso aquele que não quis ver - embora na desigualdade crescente no mundo ocidental se torne mais fácil a elite ficar na ignorância em relação à vida e às possibilidades dos menos favorecidos.

Cada vez mais, os 30% mais pobres são tratados como caso de polícia. E perderam duas vezes.

A primeira, porque sumiram os empregos nas fábricas, que a força global da capital transferiu para praças onde se pode pagar menos.

E a segunda vem das consequências da crise financeira dos últimos anos. A ideia dominante no cenário pós-industrial era que a indústria de serviços financeiros ia salvar geral, gerando recursos suficientes para investir na rede de proteção social.

Só que essa indústria implodiu. Nenhuma surpresa. A natureza de finanças é o desejo de criar dívida, porque lucra com os juros. E fica emprestando e lucrando até extrapolar. Empresta para quem não tem possibilidade de pagar. E a casa cai.

Sem regulamentos suficientes, a indústria financeira vai criar mais dívida particular do que uma sociedade pode aguentar. Aí vem a crise. E, num truque de magia, uma crise dos bancos e da dívida particular foi apresentada como uma coisa que nunca tinha sido - uma crise de gastos públicos.

E o remédio foi um regime de austeridade, reduzindo tais gastos para reduzir a dívida. E quem sofre mais com isso? A parte da população que mais precisa de serviços públicos. Os mais pobres, que não tinham sido a causa da crise, estão agora pagando o seu preço.

O pior é que estão pagando à toa, porque fica difícil enxergar um resultado positivo da política de austeridade. E com certeza não tem êxito em reduzir a dívida - por motivos óbvios.

Cortar gastos públicos é tirar uma fatia da economia. O PIB vai encolher. A dívida pública permanece. Então essa dívida cresce como proporção do PIB. E com menos atividade econômica, a possibilidade de pagar a dívida fica reduzida.

Nenhum espanto, então, que a austeridade venha gerando uma reação nas urnas.

Na Europa, onde tem sido mais aplicada, os partidos de centro-esquerda estão despencando. Durante anos ofereciam uma redistribuição tímida baseada num crescimento dependente na indústria de serviços financeiros. Desde a crise do setor, parecem perplexos, sem propostas.

E na busca por soluções, ideais mais extremos ganham força. Brexit e Trump são somente as consequências mais evidentes.

E o Brasil nisso? A austeridade chega com a PEC 55 num momento de contração do PIB. Tira a possibilidade da ação contracíclica, e as pessoas mais vulneráveis vão sentir.

Isso deveria gerar uma reação politica. Mas, com todos os partidos agora chafurdando na Lava Jato, quem vai tirar proveito? Quais forças vão emergir para canalizar a raiva? Uma pergunta fascinante para 2017.

*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.