'Brasileiros às vezes toleram coisas que não deveriam ser toleradas', diz ex-embaixador britânico
Antes de chegar ao Brasil para assumir o posto de embaixador britânico, Alex Ellis havia mergulhado em leituras sobre o país, estudando desde história e economia ao endêmico complexo de vira-lata, preparando-se para suas "aventuras na terra do tropicalismo" no renomado instituto de estudos brasileiros do King's College, em Londres.
Eram altas as expectativas para um período que englobaria tanto uma Copa do Mundo quanto uma Olimpíada. Mas os grandes eventos esportivos foram ofuscados pela turbulência política no país, em uma temporada que viu uma presidente cair, a economia despencar e o maior escândalo de corrupção da história recente irromper.
Após três anos e meio, Ellis acaba de deixar o cargo. E diz que o que mais o impressionou durante o período foi a "resiliência do brasileiro".
"A capacidade de resolver problemas, de absolver dificuldades. São um povo muito tolerante. Isso tem o lado bom e o lado ruim. O lado ruim é que as pessoas às vezes toleram coisas que não deveriam ser toleradas", considera.
"Por outro lado, há espaço para uma aceitação", afirma, citando como exemplo a forma como seu filho, que está dentro do espectro autista, foi bem acolhido na escola.
Os desdobramentos da operação Lava Jato foram marcantes em seu período como embaixador, expondo o nível de corrupção na política que, conscientemente ou não, vinha sendo tolerada pelos brasileiros.
"A Lava Jato está tendo consequências profundas e é um ataque contra a impunidade no Brasil. Eu entendo isso como uma coisa boa para o país, e vejo que é algo que os brasileiros apreciam. A grande questão é como vai terminar. Porque até certo ponto é um ataque ao próprio sistema de organização política", pondera.
Como embaixador, Ellis teve que acompanhar de perto a crise política e as revelações e prisões novelescas da Lava Jato para explicar tudo ao governo britânico - e avaliar as consequências para seu país.
No percurso, cansou de ouvir o bordão de que o Brasil "não é para principiantes" e enfrentou o desafio de estabelecer acordos de cooperação em meio a frequentes quedas dos protagonistas políticos.
"O difícil não era chegar a acordos com o governo em Brasília, mas sim segui-los, por causa da mudança de ministros", conta.
Ellis se surpreendeu com diferenças culturais e institucionais - como por exemplo o peso da atuação do Supremo Tribunal Federal (STF).
"Cheguei sem entender o poder e o perfil dos ministros do STF. No Reino Unido, por exemplo, as pessoas não têm a menor ideia de quem é o presidente do STF", aponta.
Duas quedas de chefes de Estado, dois ritmos diferentes
Além disso, ele destaca o contraste entre o ritmo dos processos que levaram à queda da presidente Dilma Rousseff em agosto e do primeiro-ministro britânico David Cameron em junho.
Cameron renunciou um dia depois que os britânicos votaram em referendo pela saída do Reino Unido da União Europeia - o Brexit - voto no qual saiu derrotado. Vinte dias depois, Theresa May despontava como nova primeira-ministra. Já o processo de impeachment de Dilma parou o Brasil por cerca de nove meses.
"Como embaixador, não cabe a mim dizer se (o impeachment) é uma coisa boa ou ruim. Aconteceu. Mas o processo de turbulência que termina na mudança de um líder é muito mais extenso no Brasil", observa.
"(No Reino Unido) também foi turbulento, claro, mas foi muito mais rápido do começo ao fim do processo. Aqui no Brasil as coisas são um pouco mais legalistas, então demora mais tempo."
Ellis acaba de voltar a Londres para assumir a nova missão. Vai chefiar o departamento que vai negociar a saída do Reino Unido da União Europeia.
"Será uma tarefa grande e complexa, mas eu não posso imaginar uma melhor preparação para esse abacaxi que foram três anos e meio no Brasil", afirma.
Folião
Durante a temporada no Brasil, Ellis se esmerou na imersão cultural.
O português ele já falava bem - é casado com uma portuguesa e tinha sido embaixador em Lisboa de 2007 a 2010.
O tempo no Brasil não lhe tirou o sotaque da terrinha. Mas lhe ensinou sobre a força da cultura popular brasileira e das belezas naturais do país, aspectos que o pegaram de surpresa.
"Algo que eu não apreciava quando cheguei aqui é a beleza natural do país. É lindíssimo. Isso é algo que talvez o Brasil possa vender um pouco mais para o resto do mundo", considera, citando os parques nacionais, Foz do Iguaçu, o Pantanal, o sul de Minas Gerais. "O brasileiro valoriza muito a praia, mas não necessariamente o interior."
Ellis desfilou no Carnaval do Rio de Janeiro com a escola de samba que leva o nome do fundador da cidade, Estácio de Sá, e dançou sob uma chuva torrencial amazônica no festival de Parintins madrugada adentro, duas experiências que considera inesquecíveis.
"A cultura popular no Brasil é fascinante. As pessoas perguntavam antes da Olimpíada - 'mas será que o Rio vai estar pronto? As coisas vão funcionar?' Se você vê a complexidade do Carnaval e do Parintins, realizado no meio do nada na Amazônia, você vê que o brasileiro é capaz de qualquer coisa. Pode resolver qualquer problema."
Pátria amada, idolatrada
O diplomata manteve blogs em que escrevia sobre assuntos diversos, de parcerias bilaterais, política a experiências pessoais - como a primeira vez em que cantou o hino nacional brasileiro.
Ele diz que sempre preferira acompanhar o hino em silêncio, até ver-se no Maracanã lotado na cerimônia de abertura dos Jogos Rio 2016.
"A minha resistência, até então, havia sido profissional, não pessoal. Sou embaixador de Sua Majestade; é natural que a minha canção de preferência seja God Save The Queen", relatou em seu blog em agosto do ano passado.
Porém, com o estádio lotado e Paulinho da Viola puxando o hino no violão... "Não tive como não ceder. Era o momento de deixar a minha função profissional de lado e mergulhar de cabeça na brasilidade."
Para ele, a Olimpíada e Paralimpíada foram sediadas pelo Rio com "excelência". "Apesar de todas as preocupações e críticas antes dos Jogos, no final tudo deu certo. Os turistas e times britânicos tiveram uma experiência excelente e gostaram muito do Rio", diz.
Os jogos atraíram cerca de 35 mil britânicos.
O legado olímpico, considera, só poderá mesmo ser julgado daqui a alguns anos. Mas ele vê melhorias concretas nas instalações olímpicas, nos BRTs (corredores de ônibus expressos) e nos investimentos para revitalizar a região portuária, e lembra as multidões que circularam pela praça Mauá durante os Jogos.
"Uma coisa que me agradou muito na época foi ficar em frente ao Museu de Arte do Rio (na região portuária) e observar a grande mistura de pessoas na praça pública. Uma coisa de que sinto falta no Brasil é de espaços públicos compartilhados entre gerações, etnias, ricos e pobres. Não é algo frequente."
'Positividade' versus burocracia
Ellis conta que se despediu do Brasil com vontade de levar consigo um pouco da "positividade" e do espírito gregário quando as pessoas se reúnem.
"Como embaixadores muitas vezes nos perguntamos o que organizar para uma festa para garantir que seja alegre. No Brasil é fácil. Convide brasileiros."
"Esse lado positivo é algo que admiro. Também gostaria de levar um pouco do sol, e, bem, dos pássaros. Se eu pudesse ter um sabiá cantando cada dia de manhã quando me levanto em Londres, seria um prazer."
Por outro lado, deixará para trás de bom grado burocracias como a complexidade do sistema tributário brasileiro e "o número de horas necessárias" para pagar um imposto. "Isso talvez fosse bom mudar", diz.
Embora tenha lido bastante sobre o complexo de vira-lata cunhado por Nelson Rodrigues antes de chegar, não o identificou com o Brasil que viu.
"Vejo hoje um país muito mais sofisticado, aberto, inovador e que está se internacionalizando rapidamente. Você olha para os últimos 20 anos e vê que o país avançou muito", considera.
"Para 2017, desejo que o Brasil descubra, libere e alimente o talento que existe no país em todos os níveis sociais."
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