Para juristas, amizade entre Temer e Gilmar levanta dúvidas sobre imparcialidade de ministro no TSE
Os amigos Michel Temer, presidente da República, e Gilmar Mendes, presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), tomaram posses de seus respectivos cargos coincidentemente no mesmo dia: 12 de maio de 2016.
Por estar à frente da corte, Mendes é quem vai presidir o julgamento que pode levar à cassação de Temer. A partir desta terça-feira, o TSE começa a decidir se a chapa vitoriosa da eleição presidencial de 2014 - formada por Dilma Rousseff (derrubada por impeachment) e Michel Temer (eleito vice) - deve ser cassada.
Temer e Mendes reconhecem publicamente a amizade e mantêm inclusive convivência privada - foram ao menos oito as ocasiões em que eles se encontraram sem registros em suas agendas oficiais desde maio passado.
Para juristas ouvidos pela BBC Brasil, essa relação é inadequada e levanta dúvidas sobre a imparcialidade de Mendes para conduzir o processo e julgar Temer. O Código de Processo Civil prevê que juízes não podem julgar "amigo íntimo" nem "aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa (que está em julgamento)". Nessas situações, é preciso se declarar "suspeito".
"Me parece inadequado que o presidente do TSE tenha encontros não oficiais com pessoas que eventualmente serão seus jurisdicionados (julgados por ele). Todos sabemos que há um processo extremamente delicado, com enormes consequências políticas. Tem que se preservar um certo cerimonial para resguardar a imparcialidade do julgamento", afirma Oscar Vilhena Vieira, diretor da FGV-Direito SP.
"Quanto à suspeição, evidente que, dependendo do grau dessa amizade, em que medida ela possa gerar uma perda de imparcialidade, o ministro deveria se declarar suspeito. Não sei qual o grau dessa amizade. É uma situação delicada", diz ainda.
O advogado Adilson Dallari, professor da PUC-SP, destaca que relações de amizade no meio jurídico são comuns. Ele mesmo diz ter amigos contemporâneos de faculdade que são desembargadores, e nem por isso se tornam automaticamente suspeitos para julgar suas causas.
"O que a lei qualifica como suficiente para gerar suspeição é a amizade íntima, é uma convivência muito mais intensa", afirma.
Mesmo com esta ressalva, Dallari também vê problemas na conduta do presidente do TSE.
"Ele é um juiz sério, competente, tem uma boa formação jurídica, sem dúvida. Eu não gosto é do comportamento dele. Ele poderia ser mais discreto ou mais contido, porque esse comportamento errático dele acaba gerando mesmo alguma cogitação de suspeição."
'Incoerente'
O levantamento dos encontros não oficiais entre Temer e Mendes foi feito pela BBC Brasil a partir de notícias veiculadas em jornais e portais brasileiros (veja lista ao final da reportagem). Ao menos quatro deles ocorreram no Palácio do Jaburu, residência oficial de Temer (não está claro onde ocorreu o quinto encontro).
Dois foram confraternizações com outras autoridades na casa de Mendes, enquanto o oitavo tratou-se de um jantar na residência de um ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Solicitada a confirmar os encontros e a explicar a falta de registro oficial, a Secretaria de Imprensa do Palácio do Planalto respondeu que "não divulga informações sobre a agenda privada do presidente Michel Temer".
A assessoria do tribunal, por sua vez, encaminhou a seguinte resposta:
"Desde que assumiu o TSE, em maio de 2016, o ministro Gilmar Mendes tem ressaltado a necessidade de realização de uma mudança do sistema eleitoral brasileiro. Como chefe da corte eleitoral é fundamental que mantenha contato com integrantes dos outros Poderes e tais reuniões sempre ocorrerem com total transparência e publicidade."
Para o professor de Direito Público da UnB Marcelo Neves, que já chegou a apresentar um pedido de impeachment contra Mendes, há incoerência nas explicações do ministro e do presidente.
"Se essas reuniões são fundadas em amizade, haveria suspeição. Se não é por amizade, se trata-se de assunto público, o princípio da impessoalidade, da moralidade administrativa e, principalmente, o princípio da publicidade, previstos na Constituição, exigem que os encontros sejam formalizados na agenda", afirma.
"É incoerente", concorda a professora de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Estefânia Barboza. "Se eles admitem no Palácio do Planalto que esses encontros não são institucionais, nesse caso, ele teria que se dar por suspeito", afirma ela.
Ela ressalta que a polêmica não é totalmente nova.
Em setembro 2015, em meio à forte crise política, Dilma se reuniu com o então presidente do STF, Ricardo Lewandowski, em Portugal, num encontro que não foi divulgado à imprensa, nem constou em sua agenda oficial. Ele estava no país para um evento e ela estava de passagem, devido a uma escala do voo de volta da Rússia.
Após críticas, o ministro disse que solicitou o encontro para falar sobre o aumento dos salários do Judiciário.
"Serve para todo mundo. Não dá para ter encontro fora da agenda porque a gente tem que saber do que eles estão tratando", afirma a jurista.
Barbosa, no entanto, considera que Mendes "está exagerando" ao se reunir não só com Temer, mas com outras autoridades, principalmente do PSDB e do PMDB. Ela acredita que o "corporativismo" do Judiciário acaba poupando o ministro de críticas abertas de instituições como OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e associações de juízes.
Para o especialista em transparência e integridade Fabiano Angélico, consultor da Transparência Internacional, "é inaceitável que sejam nada transparentes os encontros entre uma pessoa que será julgada e o magistrado que terá papel fundamental nesse julgamento".
Embora não haja leis explícitas sobre quais encontros deveriam ser divulgados nas agendas oficiais, Angélico considera que essa exigência fica clara na Constituição.
"É incompreensível que um ministro da Suprema Corte e um constitucionalista (Temer) não sigam essa orientação geral, independente de normas infralegais ou leis que obriguem à publicação de agenda", diz ainda.
Amizade
Em entrevista no início de março à BBC Brasil, Mendes reconheceu mais uma vez a amizade com o presidente, mas refutou que seja suspeito para julgá-lo. Segundo ele, a garantia que a sociedade tem de que o julgamento do TSE será bem conduzido é "a institucionalidade do próprio tribunal".
Na ocasião, o ministro destacou que foi graças ao seu voto divergente que a ação que será julgada agora não foi arquivada em 2015.
Na ocasião, porém, a presidente ainda era Dilma Rousseff, de modo que ela e o PT seriam os principais afetados por eventual cassação da chapa presidencial. Mendes é constantemente acusado de ser anti-PT, o que ele nega.
"Eu sempre fui amigo do presidente Temer, antes de atividade política, por atividades acadêmicas, vivências nos seminários de direito constitucional", afirmou.
"Relações políticas, todos nós as temos, no sentido da convivência. As pessoas não acreditam, mas eu tenho amigos no PT."
Encontros privados x interesse público
Embora o Palácio do Planalto classifique as reuniões entre Temer e Mendes como assunto particular, reportagens indicam que os dois costumam tratar de questões de interesse público.
Há quase três semanas, por exemplo, quando o TSE colhia depoimentos de executivos da Odebrecht sobre supostas ilegalidades na campanha de 2014, ambos se reuniram em um domingo (12 de março), no Palácio do Jaburu.
Ao jornal O Estado de S. Paulo, o ministro negou que tenha tratado dessa questão com o presidente, mas disse que conversou com Temer sobre reforma política.
Na mesma semana, após um encontro oficial que contou também com a participação dos presidentes da Câmara (Rodrigo Maia) e do Senado (Eunício Oliveira), Mendes defendeu mudanças na eleição de deputados federais, com a adoção de listas fechadas formuladas pelos partidos.
Já no início de fevereiro, também em um domingo, Mendes e Temer se reuniram privadamente no Jaburu, desta vez, segundo reportagens, para discutir a nomeação do sucessor do falecido ministro Teori Zavascki. Dois dias depois, Alexandre de Moraes foi indicado para vaga.
Em outubro passado, após um encontro com Temer no Jaburu, que contou com a participação do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do ex-ministro da Secretaria de Governo Geddel Vieira Lima, Mendes disse ao jornal Folha de S.Paulo que havia sido uma reunião entre amigos.
"Foi uma conversa de velhos amigos. Foi uma conversa geral, uma avaliação de momento. O pessoal está otimista com o bom resultado da eleição (municipal), da aprovação da PEC (que limita gastos públicos) para refazer a situação muito difícil do país", disse o ministro.
Além desses encontros, Mendes também viajou no avião presidencial para Portugal em janeiro, na comitiva que participaria do funeral do ex-presidente Português Mário Soares. O ministro, porém, faltou ao evento devido a uma crise de labirintite.
Ele permaneceu no país de férias por cerca de mais dez dias, gerando críticas de que teria pegado uma "carona" injustificada no avião de Temer. Ao jornal Folha de S.Paulo, o ministro disse não ter havido nenhum conflito de interesse.
As oito ocasiões em que Temer e Mendes se encontraram sem registro nas agendas oficiais:
- 28/05/16 (sábado) - Visita de Gilmar Mendes ao presidente no Palácio do Jaburu. Assessoria de Temer informou à Folha de S.Paulo que Mendes solicitou o encontro para discutir o orçamento do TSE.
- 28/06/16 (terça-feira) - Jantar de confraternização na residência do ministro do STJ João Otávio de Noronha com presença de outras autoridades.
- 01/08/16 (segunda-feira) - Temer, ainda presidente interino, participa de jantar na casa de Gilmar Mendes com outras autoridades e pecuaristas; na ocasião teriam discutido a antecipação da votação final do impeachment de Dilma.
- 12/10/16 (quarta-feira, feriado) - Temer, Mendes, Geddel e FHC almoçam no Palácio do Jaburu.
- 22/01/17 (domingo) - Jantar no Palácio do Jaburu para "conversa de rotina", segundo disse a assessoria de Mendes ao jornal Estado de S.Paulo.
- 05/02/17 (domingo) - Encontro em que teria se discutido nomeação de Alexandre de Moraes para o STF, possivelmente no Palácio do Jaburu.
- 12/03/17 (domingo) - Encontro no Palácio do Jaburu em que teria sido discutida a reforma política.
- 15/03/17 (quarta-feira) - Temer vai à residência de Gilmar Mendes para comemoração do aniversário do senador José Serra.
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