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"Mãe nunca deixa pra lá": onde está Davi Fiuza?

Relatório da ONU aponta que jovens negros, como Davi, têm 3,5 mais chances de serem vítimas de violência na Bahia - ARQUIVO PESSOAL/BBC
Relatório da ONU aponta que jovens negros, como Davi, têm 3,5 mais chances de serem vítimas de violência na Bahia Imagem: ARQUIVO PESSOAL/BBC

10/04/2017 13h51Atualizada em 10/04/2017 15h51

Desde que Davi Fiuza desapareceu, em 24 de outubro de 2014, Rute Silva Santos luta para que seu filho não seja apenas mais um número perdido nas estatísticas de violência social na Bahia.

Ela se alterna entre o trabalho, num supermercado na região central de Salvador, e a militância pelo caso do filho de 16 anos, levado da frente da casa onde morava, no bairro periférico de São Cristóvão. Ela nunca mais teve notícias dele.

O caso de Davi parece ilustrar as estatísticas: de acordo com o Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ), publicado em 2015 pela ONU em parceria com o governo federal, jovens negros, como ele, têm 3,5 mais chances de serem vítimas de violência na Bahia do que brancos.

A Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP-BA), mesmo dizendo desconhecer essa estatística, apresenta dados compatíveis: de todas as vítimas de crimes violentos letais intencionais em 2014, 76,3% são pretas e pardas.

Existe ainda a suspeita do envolvimento de policiais no sumiço de Davi, o que reforça o padrão de violência: segundo a Comissão de Direitos Humanos da OAB-Bahia, cerca de 65% dos casos acompanhados pela instituição têm ligação com violência policial.

Mas Rute briga para impedir que seu filho entre em outra estatística: o de casos não resolvidos. Segundo a própria SSP-BA, apenas 6,5% dos casos investigados são denunciados pelo Ministério Público. Destes, 1,3% levou a condenações.

A conclusão do inquérito sobre Davi está prevista para o final de abril, dois anos e meio após o desaparecimento do jovem. O Ministério Público da Bahia ainda não divulgou a data, mas confirmou que o prazo de prorrogação de 90 dias, pedido pela Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) em janeiro, termina nesse período.

Rute, que faz parte de movimentos e instituições de direitos humanos, como a Anistia Internacional e Justiça Global, afirmou que está organizando uma manifestação para lembrar o caso de Davi em maio, época que coincide com a conclusão do inquérito.

"É quando estou de férias do trabalho", explicou. "Além do mais, independentemente de se esse inquérito for concluído ou não, quero que as pessoas saibam que vou continuar lutando por meu filho."

'Meu filho está morto'

O maior medo de Rute é que o prazo seja novamente adiado.

A primeira vez que isso ocorreu foi em abril do ano passado, quando o inquérito estava prestes a ser concluído e repercutiu bastante na imprensa local.

À época, policiais civis acusaram 23 policiais militares do sequestro e morte do garoto, além de ocultação de cadáver e formação de quadrilha - os crimes fariam parte de uma espécie de "teste" da formatura de 19 PMs da 49ª Companhia Independente de Polícia Militar.

Mas o processo não foi finalizado, e a investigação continua - a Polícia Civil disse que só comentará o caso quando o inquérito for concluído.

"Eu só quero que isso acabe", diz a mãe de Davi. "Perder um filho é uma coisa horrível, mas o pior é não ter o corpo dele, não ter um desfecho."

Mesmo sem provas concretas, Rute tem certeza de que não encontrará Davi com vida.

"Meu filho está morto. Eu sei disso. Ele jamais ficaria dois dias sem me ligar, sem me procurar para dar notícias, jamais. Eu só não sei exatamente como aconteceu porque ninguém achou o corpo."

Segundo o Ministério Público da Bahia, as investigações continuam por causa do "surgimento de novos elementos". O órgão defende que a análise dos dados demanda tempo, e por isso o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), onde o caso está sendo investigado, pediu a prorrogação do prazo.

A promotora Isabel Andrade diz que, apesar de ter sido amplamente noticiado que o menino teria sido levado por policiais, isso não está provado.

"Temos que trabalhar com a realidade. Entendemos a repercussão, mas temos uma média de 17 a 20 homicídios por dia. Inicialmente imaginavam que fosse um desaparecimento comandado por policiais militares. Isso não foi descartado, mas ninguém viu. Quem o levou não estava fardado, poderiam ser policiais civis, militares, seguranças privados", disse.

Segundo a representante da Promotoria, há informações que não estão provadas e outras que merecem atenção.

"O caráter da investigação é meramente técnico, por isso demora tanto. Além disso, temos informação que Davi teria cometido reiterados hábitos infracionais. Seria um motivo (para seu desaparecimento)? Seria dominante? Ele namorava com alguma namorada de traficante? Isso precisa ser levado em consideração", ponderou a promotora.

Ela confirma, porém, que o Ministério Público trabalha com a possibilidade de homicídio.

Rute refuta a ideia que Davi teria ligações com crime. "Quem conheceu meu filho sabia que ele era um menino bom, que estudava. Nunca me deu trabalho nenhum", diz.

Para ela, o caso permanece aberto porque as evidências iniciais apontavam para violência do Estado. "Eu sei quem matou meu filho. Quem acompanha o caso sabe também."

A Anistia Internacional e a Justiça Global são algumas das instituições que acompanham o caso de Davi.

Renata Neder, assessora de direitos humanos da Anistia, também questiona a demora na resolução do processo.

"A lentidão na conclusão das investigações sobre o desaparecimento do Davi são uma segunda forma de violência contra a família e um obstáculo para que a justiça seja feita. Davi desapareceu há mais de dois anos e a Polícia Civil e o Ministério Público não parecem estar comprometidos com a celeridade das investigações", afirma.

"No Brasil, deixar as investigações 'em aberto' sem que o caso seja levado à Justiça é uma das formas de garantir a impunidade nos casos de homicídios e desaparecimentos cometidos por policiais. Não podemos aceitar que isso aconteça no caso do Davi. A Anistia Internacional vem se mobilizando ao lado da família para garantir que o caso seja investigado e responsabilizado", diz.

Arquivamento?

Mesmo com a demora na resolução do caso, o defensor público Raul Palmeira diz acreditar que o Ministério Público não optará pelo arquivamento.

Ao argumentar que a Bahia não tem bom histórico de preservação de direitos humanos, cita o caso da chacina do Cabula - o assassinato de 12 jovens negros com 88 tiros por policiais militares em fevereiro de 2015, que acabaram sendo absolvidos por uma juíza.

Na ocasião, o governador da Bahia, Rui Costa, disse que os policiais agiram em legítima defesa e os comparou a "artilheiros de futebol", dizendo que seu trabalho necessita "ter a frieza e a calma necessárias para tomar a decisão certa".

Palmeira diz que, apesar da demora, que "é ruim para a família, que fica sem uma conclusão", ele acredita que "o Estado não vai querer ser reincidente, como no caso do Cabula, que gerou uma repercussão negativa na comunidade internacional".

"Acredito que haverá um desfecho, que o caso não será arquivado."

Palmeira diz, porém, que não é incomum que o Ministério Público resolva reabrir casos, especialmente quando surgem novas evidências. Ele também não acredita que as investigações estejam sendo estendidas por causa da possibilidade de envolvimento da polícia - ou como uma forma de "garantir a impunidade de policiais", como sugeriu a representante da Anistia Internacional.

"O Ministério Público pode não concordar com a conclusão da polícia e pedir novas investigações, porque está acima da polícia. Existe o aparato legal para isso. Também não é incomum pedir a dilação do prazo do inquérito, especialmente quando surgem novas evidências ou algumas provas precisam de uma análise mais detalhada", afirmou.

"Não existe um cuidado especial quando se trata da possibilidade do envolvimento de policiais num crime. O que existe é a necessidade de uma investigação completa e minuciosa."

Já o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB Bahia, Eduardo Rodrigues, entende que casos como o de Davi ajudam a expor a brutalidade com a qual a polícia se relaciona com a população.

"De uma forma genérica, temos um problema sistêmico na polícia desde o tratamento ao agente policial, que não é democrático. Isso dentro da estrutura da polícia, que é militarizada e usa procedimentos arcaicos", disse.

"Os policiais muitas vezes não têm treinamento específico para determinadas ações ou respaldo posterior da própria instituição. Isso significa dizer que o agente é brutalizado pela formação nada democrática e, se ele se envolve em uma ação com resultado violento, não tem a estrutura da polícia para cuidar dele", explicou.

"Mais de 65% da nossa atuação tem relação direta ou indireta com violência policial. É até difícil falar isso no Estado da Bahia, até por causa do número de pardos e negros, mas a ação da polícia em desrespeito aos direitos humanos é, majoritariamente, a jovens, negros e da periferia", resumiu.

Apuração com rigor

A BBC Brasil procurou o governo da Bahia para comentar o caso.

"É de interesse da SSP-BA e da determinação do secretário Maurício Barbosa que o caso de Davi Fiuza seja apurado com o maior rigor. Se ficar provado que houve envolvimento de policiais, eles serão indiciados", afirmou a secretaria, via assessoria de imprensa.

Hoje, a família de Davi não mora mais junta. Rute mora com duas das quatro filhas e luta contra a síndrome do pânico, que enfrenta desde que o filho desapareceu. Ela diz que é doloroso transformar seu filho em um símbolo de luta, mas garante que não se arrepende.

"O pai de Davi acha melhor não brigar porque não vai trazer ele de volta. Mas eu quero justiça. Quero ajudar os pais de outros Davis quando isso acabar. Mostrar a eles como fazer, quem procurar", conta.

"Acho que depois disso tudo, quando alguém for sequestrar algum menino ou menina, vão procurar saber se tem mãe antes. Porque mãe nunca deixa para lá."