Como a crise nas Forças Armadas afeta soldos, fronteiras e carros blindados
Representantes do governo federal têm apontado a intervenção federal na segurança do Rio, por meio das Forças Armadas, com uma oportunidade para melhorar as polícias locais, afetadas por falta de recursos e investimentos.
No entanto, ainda que em escala distinta, a própria Defesa tem sido afetada nos últimos anos pela queda de arrecadação e cortes de gastos - uma combinação que, no contexto de crise econômica iniciada em 2014 no Brasil, tem sido a regra no setor público do país.
Foi a partir daquele ano que, segundo dados do Instituto de Pesquisa pela Paz Internacional de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês), também começou a cair o volume de gastos militares no Brasil. Em 2014, eles somaram US$ 25,2 bilhões, passando para US$ 24,6 bilhões em 2015 e US$ 22,8 bilhões em 2016 (queda de 9,5% de 2014 a 2016).
Os valores consideram a inflação no período e refletem, segundo relatório mundial divulgado pelo instituto, uma "economia mergulhada em recessão". A situação fez com que o Brasil caísse do 12º lugar no ranking de países com maiores gastos militares no mundo em 2015 para o 13º no ano seguinte.
A próxima edição do relatório, incluindo números para 2017, deve ser divulgada pelo centro de pesquisas em junho. Mas dados do SIGA Brasil, sistema do Senado que reúne informações sobre o orçamento público federal, indicam que ele poderá exibir uma leve melhora no setor.
Ainda que não adote a mesma metodologia considerada pelo Sipri, o SIGA mostra que houve um aumento no orçamento do Ministério da Defesa, responsável pela Forças Armadas, no ano passado - as despesas executadas pela pasta passaram de R$ 98,5 bilhões em 2016 para R$ 108,5 bilhões em 2017 (já considerada a inflação no período).
Ainda assim, segundo especialistas no setor militar, a crise econômica ainda tem efeitos muito evidentes na área - como o atraso no cumprimento de programas da Estratégia Nacional de Defesa, um documento de 2008 que estabelece os principais objetivos para as Forças Armadas do país.
O documento pode inclusive ser visto como uma herança da primeira década dos anos 2000, marcada por um cenário econômico favorável e investimentos militares que levariam a uma renovação substancial do armamento - com dimensão vista anteriormente apenas na década de 1970, segundo Diego Lopes da Silva, mestre em segurança internacional e colaborador do Sipri.
"Hoje, o orçamento para as Forças Armadas está bem mais baixo do que os nosso projetos demandam", aponta Silva. "Os programas de produção de armamentos têm sofrido atrasos e repasses bem inferiores ao necessário."
Programas estratégicos afetados por cortes
O Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), por exemplo, é definido pelo Exército como um de seus programas estratégicos e prevê um sistema de monitoramento de 17 mil quilômetros de fronteiras por meio da tecnologia.
Segundo um relatório de gestão do Ministério da Defesa entregue ao Tribunal de Contas da União (TCU) em 2017, o projeto "vem sendo executado com um ritmo consideravelmente menor do que o previsto" devido a fatores como restrições orçamentárias e "ineditismo do projeto". A finalização da implantação de um projeto de piloto, que deveria acontecer em 2016, deverá ficar para 2018.
Se a princípio o projeto deveria ter recebido R$ 1 bilhão por ano, por 11 anos, o valor médio anual pago pelo governo federal de 2013 a 2017 foi muito menor: R$ 220,9 milhões.
Em agosto de 2017, o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, afirmou que o contigenciamento de verbas compromete o Sisfron.
"De uma maneira geral, muitos dos causadores do problema de segurança pública nas grandes cidades passam pelas fronteiras", afirmou Villas Bôas ao jornal O Estado de S. Paulo. "É essencial mantermos as fronteiras sob vigilância."
Outro programa estratégico do Exército afetado é o Guarani, que visa renovar a frota de veículos blindados da força. Inicialmente, o ano de conclusão previsto era 2031, mas já foi adiado para 2040. Segundo o relatório entregue ao TCU, o objetivo pode ser atingido, no entanto, somente em 2105.
"O projeto vem tendo o seu cronograma reajustado anualmente em razão da carência de recursos. Além disso, o contingenciamento de recursos também tem obrigado à reprogramação das metas anuais", diz o documento.
Peso dos gastos com pessoal
"A área mais suscetível a cortes orçamentários é o setor de investimentos. Por isso, os programas de produção de armamentos têm sofrido atrasos e repasses bem inferiores ao necessário", aponta Silva, destacando que a Defesa também é afetada, por tabela, por cortes na área de ciência e tecnologia, como nas universidades.
"Os gastos com pessoal são mais difíceis de reduzir porque isso envolve aspectos políticos que o Executivo prefere evitar", opina.
De fato, dados do SIGA Brasil evidenciam a concentração de gastos do orçamento do Ministério da Defesa com pessoal, em detrimento dos investimentos. Em 2016, por exemplo, dos R$ 97 bilhões executados pela pasta, R$ 75 bilhões (77%) foram para pagamento de salários e afins e 8,1 bilhões (8,3%), aplicados em suas iniciativas.
Em 2017, de um total de R$ 107 bilhões, o gasto com pessoal consumiu R$ 82,4 bilhões (77%) e os investimentos, R$ 9,9 bilhões (9,2%).
Trata-se de um cenário comum também em outras áreas do governo. Como a BBC Brasil mostrou em 2017, a Defesa e o Meio Ambiente estão entre as pastas que mais gastam, proporcionalmente, com funcionários.
A remuneração dos militares se dá por meio dos chamados soldos, que são ainda acrescidos de gratificações e auxílios. Em 2016, após pressão da classe, os soldos foram reajustados em parcelas até 2019. Hoje, tais vencimentos vão de R$ 854 nas graduações mais baixas (como recrutas e soldados) a R$ 12,7 mil nos postos mais altos (Almirante de Esquadra, General de Exército e Tenente-Brigadeiro).
Representantes militares colocavam a mudança como um objetivo da classe - Raul Jungmann, hoje ministro da Segurança Pública, assumiu em 2016 como titular da Defesa afirmando que o aumento era uma "prioridade".
'No limite'
Os militares também já criticaram publicamente a queda de investimentos nas Forças Armadas.
Diante de contigenciamentos em 2017, Jungmann afirmou ao jornal O Estado de S. Paulo que as Forças Armadas estavam "no limite" e, caso a situação não fosse revertida, seria necessário adotar cortes de efetivo e unidades.
A BBC Brasil entrou em contato com o Ministério da Defesa para verificar se tais cortes de fato ocorreram, mas a pasta não respondeu a esse e a outros questionamentos da reportagem sobre os temas abordados nesta reportagem.
Segundo Roberto Caiafa, jornalista especializado em Defesa há mais de uma década, a redução de bases e adoção de carreiras temporárias está sendo capitaneada principalmente pela Força Aérea Brasileira (FAB).
Para além de programas estratégicos, porém, ele destaca que problemas orçamentários têm afetado até mesmo o dia a dia das tropas.
"Todo ano tem quartel fazendo meio expediente na sexta-feira para que haja economia no almoço. Que posição de liderança um país quer ter com soldado no quartel sem comida para comer?", questiona o jornalista.
"Fora toda uma estrutura de alta tecnologia quase entrando em colapso. Para cada passo que você dá para frente, você volta dois ou três."
Operações de segurança pública
Ao lado da rotina nos quartéis, cada vez mais as Forças Armadas têm atuado em ambiente novo: as ruas.
Isso é possível, por exemplo, por meio da Garantia da Lei e Ordem (GLO), um dispositivo previsto na legislação que permite o uso temporário e interno da Forças Armadas em caso da avaliação de que há riscos para a ordem pública. Desde 2010, já foram realizadas mais de 40 operações de GLO no país.
Segundo Arthur Trindade, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Universidade de Brasília, em teoria o governo federal deveria repassar verbas para as Forças Armadas para custear tais operações. Mas não é o que tem acontecido na prática.
"O que vemos é que muitas vezes as Forças Armadas são empregadas e não recebem o repasse, ou recebem parcialmente o valor", aponta Trindade. "Com isso, recursos anteriormente alocados para outras áreas precisam ser remanejados."
Por outro lado, o especialista Diego Lopes da Silva vê no alinhamento político entre o governo e as Forças Armadas, demonstrado pela intervenção no Rio, um cenário favorável para que os militares barganhem por mais recursos.
"Creio que isso dependerá do andamento da intervenção. O risco é que as Forças Armadas vejam no aumento das atividades de policiamento uma ferramenta para conseguir orçamento. Isso se tornaria um incentivo perverso à oferta de efetivo para desempenho de atividades de segurança pública", aponta o pesquisador.
"Isso impõe um dilema grande: como os gastos têm um limite definido, o que vai para área X, terá que sair de outra Y. Esse jogo de soma zero é complicado. Ou a Defesa fica com pouco orçamento e sofre cortes, ou teremos que tirar recursos de outras áreas, como educação e saúde."
Sem dar detalhes, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, já sinalizou em fevereiro que o governo federal poderá remanejar o orçamento, retirando verbas de outras áreas para destinar mais recursos às Forças Armadas pela atuação no Rio de Janeiro.
Há a expectativa de que tais manobras orçamentárias, com o objetivo de financiar a intervenção, sejam anunciadas pelo governo ainda nesta semana.
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