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Documento revela que Japão pediu ao Brasil para investigar suposto passaporte brasileiro atribuído a Kim Jong-un

Reuters
Imagem: Reuters

Fernanda Odilla* - Da BBC Brasil em Londres

Da BBC Brasil em Londres

17/05/2018 08h15

Documentos revelam que a Polícia Nacional do Japão pediu ajuda ao Brasil em 1998 para investigar nove norte-coreanos suspeitos de usar passaporte brasileiro falso no início da década de 1990. Entre os documentos colocados sob suspeita estava o passaporte em nome de Josef Pwag, identidade que, supostamente, teria sido usada pelo atual líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, para viajar e pedir vistos.

Obtidos pela BBC Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação, esses documentos revelam detalhes de um procedimento interno aberto pela Polícia Federal brasileira, por solicitação dos japoneses, para averiguar a autenticidade dos documentos que foram usados pelos norte-coreanos para entrar no Japão entre 1990 e 1993.

No fim de janeiro de 1998, a Embaixada do Japão no Brasil formalizou o pedido ao Ministério das Relações Exteriores solicitando a colaboração para investigar os nove suspeitos de violarem a lei de controle de imigração japonesa. O pedido foi encaminhado à Polícia Federal.

Dois anos e meio depois, um ofício da PF com data de agosto de 2000 diz que os passaportes da série CD que teriam sido usados pelos norte-coreanos e expedidos pela PF no Rio de Janeiro deveriam ser recolhidos e cancelados porque "até hoje não se obteve uma resposta conclusiva sobre a legalidade da sua expedição, tudo levando a crer que os portadores não preenchiam os requisitos para obtenção".

Os documentos obtidos pela BBC Brasil, que fazem parte do procedimento número 3351580, vieram da PF com tarjas pretas impedindo a identificação de nomes e números de ofícios. Não foi possível, portanto, descobrir o destinatário do ofício em questão.

Nele, a PF também pede de autorização para obter informações sobre os norte-coreanos que tinham passaportes suspeitos, das séries CD e CE. E também apresenta uma lista de 15 perguntas cujas respostas foram consideradas "valiosas para instruir as investigações sobre a expedição irregular dos passaportes". Esse é o último documento que consta no processo ao qual a BBC teve acesso. Não há, no entanto, informação se a investigação avançou, nem se o Japão recebeu os dados solicitados.

O documento de Josef Pwag, natural de São Paulo e nascido em 1 de fevereiro de 1983, estava entre os passaportes colocados sob suspeita e que foram alvo da investigação. Como a BBC Brasil revelou em março, Pwag teve dois documentos brasileiros. O primeiro, com numeração CD791247, foi emitido pela PF no Rio em agosto de 1990. Conforme a BBC Brasil já havia revelado, em um dos sistemas consultados por integrantes da corporação, consta uma observação associada a esse documento - "(há) suspeita de violar imigração japonesa" -, acompanhada do número do procedimento que a PF instaurou para apurar o caso a pedido dos japoneses.

Esse primeiro documento de viagem foi substituído pelo passaporte de número CE375366, emitido pela Embaixada do Brasil em Praga em 1996.

Vistos e viagens

Segundo uma reportagem da agência Reuters publicada no início do ano, o líder norte-coreano Kim Jong-un usou o passaporte brasileiro CE 375366 em nome de Pwag para pedir vistos e viajar por países ocidentais. Ainda de acordo com a Reuters, além do líder coreano, o pai dele, Kim Jong-il, também usou um passaporte brasileiro, com o nome de Ijong Tchoi, com carimbo da Embaixada do Brasil em Praga.

Quatro fontes de segurança europeias consultadas pela Reuters confirmaram que os dois passaportes brasileiros emitidos em Praga com fotos dos Kim com os nomes de Josef Pwag e Ijong Tchoi foram utilizados para solicitar vistos em ao menos dois países ocidentais. A agência, contudo, não informa se os vistos foram obtidos.

Segundo a Reuters, os documentos podem ter sido usados pelos Kim para visitar Brasil, Hong Kong e Japão.

O jornal japonês Yomiuri Shimbun disse em 2011 que Jong-un visitou a Disneylândia em Tóquio quando criança usando um passaporte brasileiro em 1991, ano que engloba o período no qual as autoridades japonesas suspeitam que os nove norte-coreanos tenham burlado a imigração do país.

Outro lado

A PF e o Ministério das Relações Exteriores (MRE), contudo, não informam se os documentos foram usados para entrar ou sair do Brasil, nem se identificaram alguma relação entre Pwag e Itchoi com os líderes norte-coreanos.

O MRE confirma apenas que localizou os formulários em nome Pwag e Tchoi usados para renovar, em Praga, os passaportes inicialmente emitidos no Rio.

Esses formulários têm duas páginas cada e, além da foto, trazem detalhes como filiação e local data de nascimento e endereço, em Praga. À BBC Brasil, o MRE esclareceu que, naquela época, para a concessão de novo passaporte, "era dispensada a apresentação de documento de identidade, caso o interessado apresentasse passaporte anteriormente expedido".

A PF, por sua vez, se limitou a dizer que "por se tratarem de documentos antigos, está apurando as circunstâncias de emissão dos passaportes em questão e de resultados de eventuais investigações pretérias que levaram ao cancelamento de documentos de viagem".

Questionada pela BBC, a PF não esclareceu qual foi o desfecho dessa investigação aberta ainda nos anos 1990 a pedido dos japoneses, nem se os supostos coreanos que usaram passaportes brasileiros e levantaram suspeitas no Japão foram localizados e interrogados.

A Embaixada do Japão no Brasil não quis comentar o caso e a representação diplomática da Coreia do Norte em Brasília não respondeu ao pedido de informação da reportagem.

Retorno à Embaixada

No procedimento da PF ao qual a BBC teve acesso, há indicativo de que, após a expedição dos documentos de viagem em Praga, os suspeitos retornaram à Embaixada do Brasil na capital da República Tcheca.

Em uma comunicação interna, um funcionário do MRE pergunta se a Embaixada em Praga poderia autenticar cópias dos documentos de pessoas que estavam "sob investigação da Polícia Federal".

Nessa consulta, o funcionário cita um fax datado de 1999, que já mencionava as suspeitas de "que se tratavam de pessoas" com nacionalidade brasileira falsa.

De acordo com o pedido feito ao MRE, os suspeitos foram à Embaixada (em algum momento após agosto de 1999) para pedir "autenticação (de seus passaportes brasileiros) e posterior comprovação de nacionalidade junto às autoridades tchecas".

Descrição física

O Japão pediu ajuda ao Brasil, no início de 1998, através de um ofício de dez páginas e uma folha em anexo com perguntas. Trata-se de um documento com data de 4 de dezembro de 1997, traduzido para o português, que tem como base um pedido do Departamento de Polícia Metropolitana de Tóquio.

Nele, os japoneses detalham a própria investigação e listam uma série de perguntas e solicitações aos brasileiros.

Não explicam, no entanto, por que estavam solicitando, no final de 1997, informações de documentos brasileiros usados para entrar no Japão quase uma década antes, entre outubro de 1990 e agosto de 1993.

Ainda assim, pedem informações para avaliar se os documentos eram falsos e pedem ajuda para conseguir provas que permitam "identificar os suspeitos e verificar seus atos criminosos".

Os japoneses pediram, por exemplo, relatório detalhando quais documentos eram exigidos para se tirar um passaporte brasileiro e os passos do procedimento. Também queriam os registros de entrada e saída do Brasil de todos os nove suspeitos - listados entre 1 de janeiro 1990 e 31 de outubro de 1993.

Solicitaram ainda "descrição física dos suspeitos", detalhes sobre "raça, cor de pele, altura, forma do corpo, cor do cabelo, cor dos olhos, defeitos físicos, uso de óculos, tatuagem".

Num anexo, os japoneses listaram ainda dez perguntas a serem feitas aos nove titulares dos documentos, entre elas se o passaporte havia sido roubado ou perdido.

O documento foi assinado pelo diretor da Divisão de Assunto Internacionais da Agência de Polícia Nacional do Japão.

Detalhes

Há coincidências sobre os dados de Josef Pwag - que, segundo a Reuters, seria o titular do passaporte usado pelo líder norte-coreano - que chamam atenção.

Entre eles, o nome "Ricardo Pwag" - listado na documentação fornecida ao MRE como sendo o pai de Josef - e o fato de o segundo passaporte ter sido emitido em Praga, capital da República Tcheca.

Ricardo Pwag seria um dos nomes usados por Pak Yong-mu, segundo o livro publicado em 2011 North Korea under Kim Chong-il - Power, Politics and Prospects for Change (Coreia do Norte sob Kim Kong-il - Poder, Política e Perspectivas de Mudança, em tradução livre), do norte-americano Ken E. Gause, que desde 1980 pesquisa o país.

Gause, que conversou com a BBC Brasil sobre os Kim em março, disse que Pak Yong-mu era uma espécie de "faz tudo dos Kim" - no livro, Pak é descrito como "procurador" dos Kim.

Para Gause, é notório que os Kim e pessoas próximas a eles usaram nomes falsos para abrir empresas e circular por outros países, entre eles a República Tcheca. O autor acredita que a família usa empresas para transações e fugir das limitações impostas pelos embargos contra a Coreia do Norte, operando de forma legal e ilegal no exterior.

A BBC Brasil identificou uma empresa, com sede na República Tcheca, na qual aparecem, como sócios, ao lado de outras duas pessoas, Ijong Tchoi e Ricardo Pwag. Ricardo seria o "pai" do titular do passaporte supostamente usado pelo líder coreano. E Tchoi é o nome no documento que Kim Jong-il teria usado. A empresa foi aberta em 1995, um ano antes de o documento ter sido emitido.

Outro detalhe é o fato de Pwag ter trocado de passaporte em 1996, seis anos depois de o primeiro ter sido emitido pela PF no Rio e um ano antes de a polícia japonesa formalizar o pedido de investigação às autoridades brasileiras. Naquela época, os documentos de viagem brasileiros tinham validade de 10 anos - tanto que o segundo passaporte de Pwag, emitido em Praga, expirava em 25 de fevereiro de 2006.

Nos anos 1990, os sistemas de controle e emissão não eram digitalizados. O próprio governo brasileiro chegou a admitir que, até 2006, quando foram introduzidas novas medidas de segurança, o documento brasileiro era um dos mais forjados. Hoje já não é mais assim. Investigação de 2015 da empresa especializada Vocativ apontou que os passaportes brasileiros não constavam entre os mais caros - e, portanto, mais desejados - vendidos ilegalmente em mercados desse tipo na internet.

*Colaborou Mariana Schreiber, da BBC Brasil em Brasília.