Cerco a Moraes coincidiu com discussão de minuta por Bolsonaro e militares
As provas colhidas por investigadores da PF indicam que, enquanto as discussões da minuta para dar um golpe de Estado evoluíam entre Jair Bolsonaro e seu entorno, entre novembro e dezembro de 2022, o cerco ao ministro Alexandre de Moraes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, foi posto em curso por militares das forças especiais, os kids pretos.
Essa minuta de decreto presidencial que estava nas mãos de Bolsonaro determinava, dentre outros pontos, a prisão de Moraes.
Segundo a PF, essa captura ou até mesmo o assassinato de Moraes, já em fase de preparação com militares das Forças Especiais monitorando fisicamente os movimentos do ministro em dezembro, não ocorreu porque havia um racha na cúpula das Forças Armadas: o comandante do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, recusou-se a aderir à quartelada.
O UOL cruzou dados capturados nos telefones dos investigados, depoimentos e documentos que integram os autos das operações Tempus Veritatis, deflagrada em fevereiro deste ano, e Contragolpe, desta semana.
O ex-presidente Jair Bolsonaro, seu candidato a vice na chapa derrotada em 2022, Walter Braga Netto e mais 35 pessoas foram indiciadas nesta quinta (21) pela PF como suspeitos dos crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa.
O relatório será enviado ao procurador-geral da República, Paulo Gonet, que vai decidir sobre a apresentação de denúncia contra os alvos. Com isso, o STF (Supremo Tribunal Federal) deve julgar a abertura de ação penal e torná-los réus no caso. Ao final desse processo, o tribunal decidirá sobre uma absolvição ou eventual condenação de cada um e definirá as penas.
BOLSONARO E O NASCIMENTO DA TRAMA
O marco zero das apurações é um áudio recuperado pela PF, enviado pelo então ajudante de ordens do presidente, tenente-coronel Mauro Cid, ao comandante do Exército Freire Gomes, informando que Bolsonaro estava recebendo visitas de pessoas para pressioná-lo a agir, após ter perdido a disputa presidencial para o petista Luiz Inácio Lula da Silva.
O áudio foi enviado no dia 8 de novembro de 2022, nove dias após o segundo turno, e seu conteúdo se tornou público em fevereiro
No dia seguinte, dia 9, conforme a PF, o general Mário Fernandes imprime o documento "Punhal Verde e Amarelo" no Palácio do Planalto e, posteriormente, leva o documento para o Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro se encontrava desde a derrota eleitoral, evitando aparições públicas. Para a PF, este teria sido o momento em que Bolsonaro teria tomado conhecimento do plano para mantê-lo no poder.
Fernandes, general da reserva, foi levado ao Planalto como número dois da Secretaria Geral da Presidência, uma das pastas palacianas encarregadas da articulação política. O "Punhal Verde e Amarelo", encontrado em um dispositivo eletrônico pertencente ao general Mário Fernandes, era plano para impedir a posse de Lula e manter Bolsonaro no poder.
Ele tinha um componente, chamado entre os conspiradores, segundo a PF, de "Copa 2022", as ações clandestinas com uso de kids pretos, militares com formação em operações especiais, para sequestrar ou assassinar Alexandre de Moraes, além do presidente Lula e do vice-presidente Geraldo Alckmin.
Mas o que era apenas um pedaço de papel levado por Fernandes a Bolsonaro em 9 de novembro começa a ganhar peso no dia 12 de novembro, quando Braga Netto, derrotado na chapa de Bolsonaro, teria se reunido com o próprio Mauro Cid, e dois oficiais das forças especiais, o major Rafael de Oliveira e o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima. Nessa reunião teria sido discutido o plano de golpe com a atuação de militares com formação em forças especiais ("kids pretos").
Rafael de Oliveira envia a Mauro Cid o documento "Copa 2022" contendo o orçamento das ações. Dois dias depois, conhecido pelo codinome "Joe" no plano, cobra Cid um repasse de R$ 100 mil para o plano. Cid desconversa. Joe ironiza: "Vibração máxima! Recurso zero!!"
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Quero receberFoi nessa reunião de 12 de novembro que, de acordo com a PF, Braga Netto bateu o martelo para a operação clandestina rascunhada por Mário Fernandes ir em frente.
Faltava, contudo, o "verniz jurídico" para a quebra da ordem constitucional.
Este apareceu diante de Bolsonaro em 19 de novembro, no Palácio da Alvorada: quando o então assessor Filipe Martins, o advogado Amauri Feres Saad e o padre José Eduardo de Oliveira e Silva apresentaram a Bolsonaro uma minuta de decreto que visava a prisão de autoridades como os ministros do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, além do presidente do Senado Rodrigo Pacheco, e a realização de novas eleições sob a alegação de fraude no pleito de 2022.
REUNIÕES DE BOLSONARO EM DEZEMBRO DE 2022
Em dezembro de 2022, a participação de Bolsonaro se intensificou, segundo a PF.
Segundo a PF, ajustes na minuta foram feitos posteriormente por Martins e pelo advogado Feres Saad a pedido de Bolsonaro. A nova versão manteve apenas a prisão de Moraes e foi apresentada a Bolsonaro em uma reunião no Palácio da Alvorada em 7 de dezembro de 2022. Participaram dessa reunião o comandante do Exército, general Freire Gomes, o comandante da Marinha, almirante Almir Garnier Santos, e o então Ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.
O momento viria a se tornar crítico, conforme o relato de Mauro Cid em sua delação premiada, porque o chefe da Marinha aderiu à trama, mas o comandante do Exército recusou-se a participar. A oposição de Freire Gomes não foi o suficiente para, pelo menos naquele momento, deter o plano já em andamento com os kids pretos.
Em 9 de dezembro, segundo a PF, Bolsonaro realizou mais ajustes na minuta e se reuniu com o Comandante do Comando de Operações Terrestres (Coter), general Estevam Theophilo, no Palácio da Alvorada, para discutir o documento. Neste encontro, de acordo com a PF, Teophilo disse que agiria assim que Bolsonaro assinasse o decreto.
Não foi um dia qualquer no planejamento do golpe. No mesmo dia, Mário Fernandes enviou áudio a Mauro Cid gabando-se do fato de Bolsonaro ter aceitado o "nosso assessoramento". Na véspera, Mário Fernandes esteve com Jair Bolsonaro e defendeu a necessidade de ação breve para evitar a frustração do golpe.
No dia 8 de dezembro, foram ativadas as linhas telefônicas da TIM que seriam utilizadas pelos kids pretos que começaram a seguir Moraes. Posteriormente a PF conseguiu saber onde estavam os militares a partir das posições ERB, ou Estações Rádio Base.
As ERBs são antenas de telefonia celular responsáveis pela comunicação entre os aparelhos celulares e a rede de telefonia. Cada ERB possui uma área de cobertura específica, e os aparelhos celulares se conectam à antena que oferece o sinal mais forte em sua localização.
Foi isso que permitiu a comprovação de que Moraes estava, de fato, sendo monitorado pelos kids pretos.
COMO O PLANO FALHOU
O plano gorou na semana seguinte. Segundo a PF, não houve avanço em convencer o comandante do Exército a aderir.
Em mensagens trocadas com Ailton Gonçalves Moraes Barros, um ex-militar envolvido na conspiração, no dia 14 de dezembro de 2022, Braga Netto chama o general Freire Gomes de "cagão". Essa mensagem foi enviada logo após Barros sugerir que "oferecessem a cabeça" de Freire Gomes "aos leões" caso ele não aderisse ao golpe.
Em 15 de dezembro, os militares estavam mobilizados em Brasília com o objetivo de prender ou executar o ministro Alexandre de Moraes. A ação foi abortada.
Segundo uma fonte da PF consultada pelo UOL, a falta de adesão de Freire Gomes teve o maior peso na desmobilização. Sem trazer o comandante do Exército para a conspiração, o decreto para a ruptura não foi assinado por Bolsonaro. Sem a senha exigida por Theophilo para os kids pretos agirem, o plano não foi para a frente.
Foi a concomitância das ações entre os integrantes dos núcleos que discutiam a minuta no mais alto escalão com as evidências de ações dos kids pretos na rua que que fez a investigação fechar em Jair Bolsonaro e nos outros 36 militares e civis que foram indiciados nesta quinta.
No dia 19 de dezembro, com a conspiração já morta, Ailton Gonçalves Moraes Barros escreveu no X (antigo Twitter): "É chegada a hora da onça beber água, separarmos os homens das criancinhas e conhecermos os omissos, os covardes e os fracos, a fim de responsabilizá-los e enterrá-los com a história que será escrita". Ele marcou Freire Gomes.
Conforme os dados da investigação, nenhuma onça bebeu água. A quartelada terminara em lamento de rede social.
O QUE DIZEM OS CITADOS
O ex-presidente Jair Bolsonaro publicou, em uma rede social, uma entrevista sua sobre o indiciamento. Nas declarações, Bolsonaro disse que iria esperar sua defesa ter acesso para comentar o teor do indiciamento, mas criticou a condução do caso por Moraes. "O ministro Alexandre de Moraes conduz todo o inquérito, ajusta depoimentos, prende sem denúncia, faz pesca probatória e tem uma assessoria bastante criativa", disse o ex-presidente.
A defesa de Braga Netto disse repudiar a "indevida difusão" dos inquéritos à imprensa em detrimento do "devido acesso às partes". "A defesa aguardará o recebimento oficial dos elementos informativos para adotar um posicionamento formal e fundamentado", afirmaram, em nota, os advogados Luís Henrique César Prata, Gabriella Leonel de S. Venâncio e Francisco Eslei de Lima.
As defesas de Almir Garnier e Filipe Martins negaram a existência de crimes e disseram que seus clientes são inocentes. Em depoimento e em petições à PF, o general Theophilo negou ter discutido qualquer ruptura institucional com Bolsonaro.
A defesa do general Mário Fernandes não foi localizada para se manifestar. As defesas dos militares Rafael Oliveira e Hélio Ferreira Lima não responderam aos contatos. Os três foram presos em operação deflagrada na terça-feira.
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