Como multinacionais de países 'linha-dura' contra a corrupção acabaram investigadas por fraudes na saúde do Brasil
Elas operam em dezenas de países e são reconhecidas pela excelência em tecnologia. Mas também estão sendo acusadas de participar de um cartel responsável por fraudar licitações na área da saúde no Rio de Janeiro, num esquema criminoso que teria movimentado R$ 1,5 bilhão.
Investigação que surgiu como desdobramento da Operação Lava Jato aponta que mais de 30 grandes empresas participariam do "Clube do Pregão Internacional", entre as quais gigantes multinacionais como a Philips e a Johnson & Johnson. Constam da lista companhias alemãs, norte-americanas e holandesas, países que estão entre as 20 nações com menor percepção de corrupção, conforme o ranking de 2016 da ONG alemã Transparência Internacional.
Já o Brasil está na em 79º lugar entre 176 países. O ranking leva em consideração a percepção que a população tem sobre a corrupção entre servidores públicos e políticos. Quanto melhor um país está situado no ranking, menor é a percepção da corrupção entre os nacionais.
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As empresas estrangeiras investigadas pelo Ministério Público teriam formado um cartel para fraudar e cobrar sobrepreço em licitações da Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro e do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia Jamil Haddad (Into), segundo os procuradores responsáveis pela Operação Fatura Exposta, deflagrada na última quarta-feira.
Esta não é a primeira vez que empresas multinacionais de países desenvolvidos são investigadas na Lava Jato - uma das primeiras linhas de investigação girou em torno de contratos da Petrobras com a holandesa SBM Offshore. A empresa foi alvo da operação Sangue Negro da Polícia Federal em 2015, e mais tarde seu representante no Brasil admitiu ter pagado propina para conseguir contratos com a Petrobras.
Mas como explicar a aparente contradição entre a atuação dessas empresas em seus países com o que vem sendo investigado no Brasil?
"Desconto de imposto para quem paga propina"
O representante no Brasil da Transparência Internacional, Bruno Brandão, destaca que, por muitos anos, os países desenvolvidos chegavam a incentivar a prática de corrupção por parte de suas empresas em países pobres e em desenvolvimento, enquanto punia com rigor irregularidades praticadas em seus territórios.
"Países europeus como a Alemanha e a França davam até incentivos fiscais para o pagamento de suborno no exterior. As empresas poderiam deduzir do imposto gastos com 'facilitação', um eufemismo para suborno. Você poderia registrar nos livros (contábeis) o pagamento de suborno em países em desenvolvimento", disse ele à BBC News Brasil.
Em inglês, este tipo de pagamento é chamado de "facilitating payment", e é considerado diferente de propina - embora a diferença entre uma coisa e outra seja nebulosa. "Havia uma cobrança de comportamento ético no território nacional, mas uma cumplicidade (com a corrupção) quanto à atividade das empresas no exterior", diz ele.
De acordo com a advogada criminalista e especialista em conformidade Sylvia Urquiza, a prática de abater dos impostos os gastos com propina continuou até recentemente, nos anos 2000. "O pensamento dos governos era: 'só vamos conseguir expandir os negócios em países dominados pela prática de corrupção se pagarmos propina também'", diz ela.
Em 1997, os países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) assinaram um acordo antipropina (OECD Anti-Bribery Convention), comprometendo-se a evitar a prática - embora não a tenham proibido totalmente, explica Urquiza. A convenção entrou em vigor em 1999, e foi complementada em 2009.
Nos EUA, diz a especialista, existe uma lei contra a corrupção no exterior (conhecida pela sigla em inglês SCPA) desde 1977. Mas só no começo dos anos 2000 o país começou a aplicar a legislação de forma mais sistemática, especialmente para empresas das áreas de tecnologia da informação e de saúde - pois estes setores estão entre os que mais fecham contratos com o poder público.
Mudanças ainda tímidas
Segundo Bruno Brandão, por mais que hoje as legislações dos países tenham evoluído, ainda há resquícios da cultura de que seria aceitável praticar irregularidades em nações com menos fiscalização e maiores índices de corrupção.
O ex-ministro da Controladoria-Geral da União e especialista em compliance Jorge Hage lembra que o período no qual, em tese, teriam ocorridos os crimes desvendados pela operação no Rio (a partir de 1996) são anteriores ao endurecimento no combate à corrupção no Brasil, e à convenção da OCDE.
"As mudanças na legislação brasileira (como a Lei Anticorrupção e a Lei das Organizações Criminosas) são muito recentes. Ambas as leis são de 2013. E a própria Lava Jato começou em 2014. Logo, não chega a surpreender que essas empresas globais, à época desses fatos, ainda atuassem nos moldes tradicionais, apostando na impunidade nos países periféricos", disse o ex-ministro à BBC Brasil.
Hage ressaltou que fala em tese, pois não teve acesso aos dados da investigação para além do que a imprensa noticiou.
Segundo o diretor do Instituto Ethos, Caio Magri, o combate à corrupção depende também de mudanças culturais nas empresas que, infelizmente, costumam ocorrer lentamente.
"A GE já teve outros casos (de conduta ilegal) mais complexos e maiores envolvendo a empresa nos Estados Unidos e na Europa, que provocaram mudanças e transformações na empresa. Mas ainda não conseguiram atingir a toda organização", nota ele.
Como funcionaria o esquema no Rio?
A nova fase da Operação Fatura Exposta foi deflagrada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público na quarta-feira. Prendeu oito executivos, entre eles Daurio Speranzini Jr, CEO da General Electric Healthcare para a América Latina. Speranzini é investigado por fatos ocorridos quando atuava como executivo da Philips.
Propinas teriam sido pagas pelas empresas a governantes e funcionários públicos do Rio de Janeiro entre 1996 e 2017.
Assim como nas investigações do Mensalão e da Lava Jato, o Ministério Público identificou a atuação de diferentes "núcleos"- político, econômico e operacional- no esquema de corrupção da área da saúde.
O núcleo operacional seria liderado pela empresa de equipamentos médicos Oscar Iskin, do empresário brasileiro Miguel Iskin, que também foi preso. Ele seria responsável por fazer a ligação entre o setor público (chamado de núcleo político, pelo MPF) e empresários integrantes do cartel (núcleo econômico), para direcionar pregões públicos de compra de equipamentos médicos.
Empresas concorrentes que não faziam parte do cartel seriam propositadamente desclassificadas das concorrências, a partir da inclusão de cláusulas na licitação que favoreciam especificamente as integrantes do grupo criminoso.
Segundo o Ministério Público, as multinacionais, que integravam o núcleo econômico do esquema, pagavam uma comissão de pelo menos 10% do valor do contrato a Iskin, para garantir as vitórias no pregão, e cobravam sobrepreço na oferta dos equipamentos para financiar a comissão e a propina paga aos agentes públicos que aderiram ao esquema.
"Esses atos de ofício eram comprados com o pagamento de vantagens indevidas milionárias, as quais eram custeadas com base na arrecadação de valores com as empresas beneficiárias das licitações, seja por meio de pagamento de 'comissões' no exterior (correspondentes a cerca de 40% dos contratos), seja por meio do recolhimento no Brasil de valores entre 10% e 13% dos contratos firmados pelas empresas do cartel", diz o Ministério Público.
O que dizem os investigados
A General Electric, cujo CEO no Brasil foi preso, afirmou à BBC News Brasil que as acusações contra Daurio Speranzini Jr referem-se a um período em que o executivo ainda não trabalhava para a empresa. "A GE atua com base nos mais altos padrões de integridade, ética e transparência. E está à disposição das autoridades para qualquer eventual esclarecimento", disse.
A Philips, citada nas investigações como integrante do cartel, informou que está "cooperando com as autoridades para prestar quaisquer esclarecimentos quanto às investigações em andamento".
"A política da Philips é realizar negócios de acordo com todas as leis, regras e regulamentos aplicáveis. Quaisquer investigações sobre possíveis violações dessas leis são tratadas muito seriamente pela empresa."
A Johnson & Johnson Medical Devices, que também seria parte do esquema, conforme o Ministério Público, afirmou que "segue rigorosamente as leis do país e está colaborando integralmente com as investigações em andamento".
O advogado de Miguel Iskin, dono da Oskar Iskin, negou que ele tenha cometido crimes.
"A Oskar Iskin está com as atividades paralisadas, desde 2016. Não houve licitação vencida pela Oskar Iskin na qual o preço não fosse o de mercado, ou seja, o correto. Não houve licitação em que a Oskar Iskin tenha vencido em que exatamente o equipamento contratado não tenha sido entregue", disse o seu advogado Alexandre Lopes.
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