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Monsenhor Romero, o novo santo que chegou a ser considerado 'perigoso' pelo Vaticano

Entre os fiéis, monsenhor Romero ficou conhecido como "o Santo da América" - José Cabezas/AFP/Getty Images
Entre os fiéis, monsenhor Romero ficou conhecido como 'o Santo da América' Imagem: José Cabezas/AFP/Getty Images

15/10/2018 11h07

Trinta e oito anos depois de seu assassinato, monsenhor Óscar Arnulfo Romero, de El Salvador - conhecido como forte defensor dos direitos humanos, da paz e dos mais pobres - foi declarado santo pela Igreja Católica.

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A cerimônia de canonização foi celebrada neste domingo pelo Papa Francisco e marca a "reconciliação" da Santa Sé com o homem que já chegou a ser considerado um "perigo" e que também era visto como figura "controversa".

"Eles viam em Romero um perigo, (um risco) de abrir a porta para uma outra forma de fazer teologia", diz a professora de História e Missão da Universidade Bíblica Latino-americana, com sede na Costa Rica, Karla Ann Koll.

Romero denunciou à Igreja assassinatos e outros crimes cometidos pelo governo militar e por guerrilhas em seu país, mas se queixou de não ter recebido apoio e de até se sentir "abandonado" pela instituição. Ele foi assassinado em 1980, enquanto celebrava uma missa.

Santo

Entre os fiéis, ele ficou conhecido como "o Santo da América".

O Vaticano o havia beatificado em 2015. Agora, o reconheceu oficialmente como santo, por atribuir a ele o "milagre" que curou, naquele mesmo ano, uma mulher salvadorenha identificada como Cecilia Flores.

A mulher teve complicações na gravidez do terceiro filho e após o parto que, segundo especialistas, "necessariamente a levariam à morte".

Após orações feitas pelo marido e por um amigo da família ao monsenhor beato, porém, ela acabou saindo do coma induzido em que estava e sua saúde teria melhorado com uma velocidade que surpreendeu os médicos.

O relato acabou chegando à igreja e, após um longo processo de verificação em que foram necessárias várias entrevistas, testemunhas e registros médicos, o milagre foi reconhecido e o levou à canonização.

Na mesma cerimônia, o Papa Paulo VI e outros cinco beatos também foram declarados santos.

Mas quem é o santo salvadorenho e por que ele foi visto como "perigoso" pela Igreja? É o que a BBC News conta a seguir:

Arnulfo Romero (esq.) e o papa Paulo VI foram canonizados neste domingo - Filippo Monteforte/AFP - Filippo Monteforte/AFP
Arnulfo Romero (esq.) e o papa Paulo VI foram canonizados neste domingo
Imagem: Filippo Monteforte/AFP

Vida e morte

Dom Óscar Romero, como é chamado pelo Vaticano, nasceu em Ciudad Barrios, município de El Salvador, em 15 de agosto de 1917. Sua família tinha origem simples e ele chegou a trabalhar em uma carpintaria aos 12 anos de idade, antes de entrar no seminário em 1930.

Anos mais tarde, em 1977, foi nomeado arcebispo de San Salvador, a capital salvadorenha.

O monsenhor sempre foi considerado uma figura controversa.

Romero foi uma "voz incômoda" para o governo militar, denunciando violações dos direitos humanos perpetradas pelo Estado e grupos paramilitares. Ele também se posicionava contra os grupos armados que compunham a guerrilha da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), um partido político socialista de El Salvador.

Com as denúncias que fez, acabou ganhando vários inimigos em um clima de forte tensão no país.

Ele foi assassinado enquanto celebrava uma missa na capital em 24 de março de 1980, alvo de um tiro disparado por um extremista de direita cuja identidade até hoje é um mistério.

Seu assassinato é considerado por muitos como o começo de uma guerra civil que durou 12 anos e deixou cerca de 100 mil mortos.

Igreja

Apesar de receber agora o mais alto reconhecimento da Igreja, seu trabalho nem sempre foi reconhecido ou apoiado pelo Vaticano.

"Quando Romero foi nomeado arcebispo, era visto como uma alternativa para manter as coisas como estavam, e não como alguém que questionaria o sistema", disse Karla Ann Koll à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Mas, depois de assassinatos promovidos pelas forças de segurança, essa percepção dos religiosos mudou radicalmente.

Os alvos desses homicídios foram camponeses e sacerdotes, entre eles o padre Rutilio Grande, amigo íntimo de Romero,

"Essa morte em particular foi um golpe muito duro para ele", diz Koll.

Foi assim que ele decidiu levantar a voz e denunciar violações aos direitos humanos que ocorriam em seu país.

Monsenhor Romero foi assassinado com um tiro enquanto celebrava uma missa - Getty Images - Getty Images
Monsenhor Romero foi assassinado com um tiro enquanto celebrava uma missa
Imagem: Getty Images

Romero se encontrou em 1978 na Santa Sé com o papa Paulo VI, que lhe ofereceu palavras de encorajamento e força - e junto ao qual foi canonizado neste domingo.

Em 1979, ele solicitou uma audiência com o Papa João Paulo II. O encontro foi negado pela cúria, mas Romero foi a Roma mesmo assim.

"Como um mendigo, tive que implorar para conseguir", contou à renomada jornalista cubana María López Vigil, radicada na Nicarágua e autora da biografia Monseñor Romero: Piezas para un retrato ("Monsenhor Romero: Peças para um retrato", em tradução literal).

Em um vídeo publicado pela Escola de Formação em Fé Adulta, em novembro de 2017, no YouTube, ela relembra que conheceu o arcebispo em maio de 1979 em Madri, onde trabalhava para o jornal espanhol El País.

Voltando da Santa Sé, Romero teve que fazer uma parada na capital espanhola antes de pegar o voo que o levaria a El Salvador. Ele fez contato com a jornalista para falar sobre o episódio.

"Eu quero que você me ajude a entender o que aconteceu comigo no Vaticano", teria dito quando se encontraram.

O arcebispo contou que levantou cedo e conseguiu ficar na primeira fila entre os membros da igreja que vão à Praça de São Pedro esperar a saudação papal.

"Eu agarrei a mão do Santo Padre e disse: 'Sou o arcebispo de San Salvador, preciso falar com o senhor'", lembra a escritora a partir do relato que ouviu dele. Foi assim que conseguiu a audiência.

Romero teria mostrado ao Papa diversos recortes de jornais e outros documentos que reuniu e que, segundo ele, indicavam que havia uma perseguição em curso em El Salvador contra ele próprio, o povo e a Igreja.

João Paulo II teria então respondido: "Monsenhor, aqui não temos tempo para ler tantas coisas. Não venha aqui com tantos papeis".

Um dos materiais que estavam nesse arquivo era a foto do cadáver do padre Octavio Ortiz, que havia morrido junto com outras quatro pessoas em uma operação militar realizada em uma casa onde faziam um retiro espiritual.

As autoridades disseram que a operação era contra uma sede da guerrilha.

A imagem que Romero mostrou ao papa havia sido publicada em uma revista sensacionalista espanhola. O rosto de Ortiz aparecia destroçado.

Ele disse a João Paulo II: 'Santo Padre: Eu o conheço desde criança, eu o ordenei, é um menino muito bom' (...)", lembra López Vigil. Romero também disse ao pontífice que Ortiz foi acusado de ser um guerrilheiro e o papa respondeu: "E ele não era, monsenhor?"

"Nesse momento, os olhos do monsenhor Romero se encheram de lágrimas, talvez isso tenha sido o que mais lhe feriu, o fato de um de seus padres ter sido assassinado de maneira tão cruel e o Santo Padre ter posto em dúvida a razão daquilo ter acontecido", diz a jornalista.

'Abandono'

De acordo com ela, no encontro o Papa João Paulo II tentou convencê-lo a "se dar bem com o governo pela paz social".

Ele então argumentava, segundo a jornalista: "Isso não é possível, porque esse governo está matando o povo, e a Igreja tem que estar com o povo, e não com o governo".

Depois da conversa com o religioso, ela diz ter saído "convencida de que o matariam, de que ele estava sozinho".

Em entrevista publicada no jornal digital El Faro, monsenhor Rafael Urrutia, que fez parte do círculo íntimo de Romero, disse que "doeu no coração do arcebispo como o papa o recebeu, e que era assim que ele próprio expressava".

"Certa vez, ele nos disse diretamente: 'Me sinto só e abandonado e às vezes respondo a vocês, que estão perto de mim, de maneira imprópria. Peço perdão'", conta Urrutia.

"Eu o vi chorar em sua solidão. Ele nos disse: 'Mostre-me que estou errado e vou pedir perdão ao povo no domingo. Se há algo que não posso fazer é enganar o povo'". O episódio se deu em suas últimas semanas de vida.

No entanto, para o padre peruano Gustavo Gutiérrez, um dos pais da Teologia da Libertação, dizer que o Vaticano o abandonou "é muito forte".

"São coisas muito complicadas", disse ele à BBC News Mundo. "A informação que tinham (dele em Roma) os neutralizou."

Isolamento

A sensação de isolamento de Monsenhor Romero vinha, porém, desde muito antes, quando Rutilio Grande foi assassinado.

"Romero mostrou que não era o arcebispo que estava ao lado da oligarquia, como acreditavam os que celebraram sua nomeação (...) Naquela época, ele começou a ser perseguido e isolado por seus próprios irmãos bispos", disse Martha  Zechmeister, diretora do mestrado em Teologia Latino-Americana na Universidade Centro-Americana José Simeón  Cañas.

Para a teóloga Koll, era evidente que não havia uma disposição por parte do Vaticano de ouvir a perspectiva de Romero sobre o que estava acontecendo em El Salvador.

"Havia uma rejeição, um temor, por parte do Vaticano, dos movimentos teológicos na América Latina que estavam repensando a estrutura da igreja e o compromisso pastoral e teológico", diz a especialista.

A isto, observa ela, devemos acrescentar o pano de fundo de "João Paulo II ter experimentado o comunismo na Polônia. Isso foi como um bloqueio que não lhes permitiu analisar com outras lentes o que estava acontecendo em El Salvador, em um contexto puro da Guerra Fria".

E havia grupos, dentro e fora de El Salvador, que acreditavam que o governo militar estava realmente salvando o país, impedindo que caísse no comunismo.

Estar com os pobres, defender os mais vulneráveis, para construir a igreja a partir da perspectiva dos pobres no contexto da Guerra Fria, "era sempre objeto de suspeita de marxismo ou comunismo", segundo a especialista.

"Essa suspeita sempre foi uma nuvem negra sobre todas as tentativas (de fomentar essa visão da Igreja)", diz a professora.

"E foi uma suspeita que custou muitas vidas, porque, nesse contexto, os aliados dos Estados Unidos foram os governos militares, que os ajudaram a rejeitar o comunismo e a não permitir que houvesse outra Cuba ou outra Nicarágua."

"Muitos dos mártires das igrejas foram frutos da política anticomunista em El Salvador."

Foi nesse contexto, observa Zechmeister, que ocorreu o encontro entre Romero e João Paulo II em 1979.

"Apesar de todos os seus méritos, este papa não foi capaz de entender a problemática da América Latina."

A incompreensão

"Houve uma incompreensão por parte do Vaticano e do papa João Paulo II da missão de monsenhor Romero?", perguntou a BBC Mundo à teóloga Koll.

"Estavam lendo a situação em El Salvador através das lentes da Guerra Fria, da rejeição ao comunismo, de qualquer movimento que eles associavam ao marxismo", diz ela.

"Eles viam em Romero um perigo, (um risco) de abrir a porta para uma outra forma de fazer teologia."

"Romero era um pastor tentando caminhar ao lado de um povo sofrido. O Vaticano, mais do que não ter a capacidade ou disposição para ouvi-lo, não estava ouvindo os gritos daqueles que estavam sendo massacrados pelo exército salvadorenho", analisa Koll.

Alguns acreditam que monsenhor Romero foi injustamente rotulado como marxista ou comunista. Koll está entre eles.

"Se você ler seus sermões, se você ler suas cartas, verá o coração de um pastor que está se abrindo cada vez mais à dor de seu povo, e ele não faz isso através de uma análise sociopolítica em particular, mas de uma releitura bíblica no contexto (...) de um povo que sofre."

De acordo com o monsenhor Dom Urrutia, "João Paulo II não entendia a relação de Romero com organizações políticas populares do país, uma vez que as palavras que dirigia aos pobres coincidia às vezes com as da esquerda."

Para Zechmeister era claro que "Romero não conhecia a filosofia marxista, que foi um homem profundamente ligado ao evangelho."