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Como a morte de Matthew Shepard, um jovem gay que foi torturado e amarrado a uma cerca, mudou os EUA

Jude Sheerin - Da BBC em Laramie, nos EUA

26/10/2018 18h47

AVISO: Essa reportagem contém descrições de situações que podem ser consideradas perturbadoras.

O aparelho de dente. Foi assim que Judy e Dannis Shepard reconheceram o filho, Matthew Shepard, em uma cama de hospital.

"Ele tinha pontos e bandagens no rosto todo", diz Judy. "E bandagens na cabeça, onde um golpe final havia esmagado seu tronco cerebral."

"Os dedos dos pés e das mãos estavam tortos, em posição de comatose. Tubos em todos os lugares permitindo que seu corpo continuasse vivo."

"Um de seus olhos estava parcialmente aberto, então era possível ver seus olhos azuis e os tubos em sua boca. Você conseguia ver seu aparelho, então claro que era o Matt."

Duas noites antes, em 6 de outubro de 1998, Matthew Shepard havia ido sozinho a um bar local na cidade de Laramie, nos estado de Wyoming, nos EUA.

Calouro da Universidade do Wyoming e abertamente homossexual, Matthew tinha acabado de se reunir com amigos para planejar uma semana sobre consciência LGBT no campus.

Mas eles não quiseram se juntar a ele para um cerveja após o encontro.

No bar, chamado Fireside Lounge, o jovem de 21 anos acabou conversando com dois pedreiros, Russell Henderson e Aaron McKinney, que tinham a mesma idade que ele.

O par viu um alvo fácil no estudante de 1,58 m e constituição física delicada.

"Em seu depoimento, o próprio McKinney disse que ele e Russel foram para o banheiro do bar e planejaram fingir que eram gays para ganhar a confiança de Matthew", diz Dave O'Malley, o xerife que foi o principal investigador do caso.

"Então a questão da orientação sexual começou logo no início do contato."

Os assassinos disseram à polícia que planejaram atrair Shepard para a picape de McKinney para que eles o roubassem.

Dentro do carro, McKinney puxou uma arma, bateu em Shepard e roubou sua carteira, que tinha US$ 20.

Eles digiram para fora da cidade, cerca de 1,5 km, e acabaram em um prado rochoso cheio de arbustos e grama alta.

Henderson usou uma corda de varal para amarrar Shepard a uma cerca de madeira. Então McKinney começou a bater no jovem ferozmente com o cano da arma.

O xerife O'Malley disse que o estudante foi "golpeado na cabeça e no rosto cerca de 20 vezes com o cabo de um grande revolver da marca Smith & Wesson."

"Só vi machucados tão destrutivos assim em acidente de carro a alta velocidade, onde havia fraturas no crânio devido à compressão extremamente violenta."

McKinney e Henderson roubaram os sapatos de couro de sua vítima e o deixaram para morrer.

Ele ficou amarrado à cerca por aproximadamente 18 horas no frio cortante.

Na tarde seguinte, um adolescente caiu da bicicleta perto da cerca e notou o que ele pensou ser um espantalho caído - ou uma fantasia de Halloween.

Quando percebeu que se tratava de uma pessoa, ligou para a polícia.

A agente Reggie Fluty respondeu ao chamado. Hoje, revisitando o local do crime, a policial se recorda: "Matt estava caido de costas com os braço para trás. Sua respiração era pouca e entrecortada."

"Eu achei que ele era bem mais jovem do que realmente era, porque sua estatura era tão pequena."

Fluty - que hoje tem 57 anos e está aposentada - tentou abrir a boca de Shepard para facilitar sua respiração, mas ela estava fechada com força.

Ela se lembra de tentar revivê-lo, dizendo: "Garoto, estou aqui querido, você vai ficar bem, aguenta aí, não desiste, vamos lá, você consegue."

Hoje, a cerca em que Shepard foi amarrado e espancado foi há muito derrubada.

A antiga cena do crime ainda é um campo ventoso, cheio de cactus e rastros de antílopes.

Mas não há nada no local que indique que foi a cena de um crime fatal que mudou o país.

Assim como um tronco cerebral esmagado, Shepard sofreu também quatro fraturas cranianas.

Seus pais estavam na Arábia Saudita, onde Dennis era inspetor de plataforma petrolíferas, e voltaram correndo para encontrar o filho no hospital Colorado.

Seu filho nunca recobrou a consciência. Ele morreu cinco dias depois do ataque.

As circunstâncias do seu assassinato detonaram uma revolta nacional - o jornal The New York Times o relacionou ao costume do Velho Oeste de pregar um coiote à cerca para alertar intrusos.

Dois dias depois da morte de Shepard, políticos e celebridades emocionados se reuniram nos degraus do Capitólio, sede legislativa em Washington, para se dirigir a uma vigília com milhares de pessoas.

O presidente Bill Clinton condenou os criminosos, dizendo que eram "cheios de ódio ou cheios de medo, ou os dois".

Vigílias e velas foram acessas no país todo.

Matthew Shepard morreu ao mesmo tempo em que a "era da inocência" chegava ao fim para uma geração americana.

A internet estava começando a chegar nas casas ao redor do país. O presidente havia, dois meses antes, admitido um caso com uma estagiária da Casa Branca. O autoproclamado "superstar anticristo" Marilyn Manson tinha acabado de chegar ao topo dos rankings musicais. Em sete meses, os Estados Unidos conheceriam o horror do massacre de Columbine.

Poucas pessoas na época - e muito menos os pais de Shepard - poderiam imaginar que as pessoas ainda estariam falando sobre o jovem hoje.

Uma coleção de seus itens pessoais, doada por sua família, acabou de ser exibida no Museu Nacional de História Americana do Instituto Smithsonian, na capital do país.

Seus deveres escolares, roteiros de teatro, fotos e chinelos estão entre os itens exibidos.

Na sexta-feira, suas cinzas foram sepultadas na Catedral Nacional de Washington, considerada o coração espiritual da nação.

Ali também foram enterrados o ex-presidente Woodrow Wilson, a pesquisadora Helen Keller e George Dewey, o oficial naval do século 19 para quem o cargo de almirante foi criado.

É uma homenagem que não foi dada nem ao famoso político e ativista gay Harvey Milk, assassinado em 1978.

No escritório de Denver onde fica a fundação pelos direitos LGBT nomeada em homenagem ao filho, Judy Shepard, de 66 anos, luta contra as lágrimas.

Ela já imaginava que a cerimônia provavelmente seria mais emotiva para ela do que o funeral porque ela se sentiu muito "amortecida" imediatamente após a morte do filho.

O velório, em 16 de outubro de 1998, foi na igreja Episcopal da cidade de Casper, em Wyoming, e foi perturbado por um pastor homofóbico do Kansas.

O reverendo Fred Phelps, da Igreja Batista de Westboro, e seu rebanho, que incluía crianças, levou cartazes com ofensas e gritava que o estudante morto estava queimando no inferno.

Dannie Shepard, de 69 anos, recorda que a polícia o fez usar coletes à prova de bala para ir à igreja, que antes tinha sido revistada por cães farejadores de bombas.

Uma equipe da Swat (divisão tática especial da polícia) foi posicionada ao redor do edifício, com atiradores de elite nos telhados dos prédios vizinhos.

Antes da cerimônia na Catedral Nacional de Washington, o casal manteve as cinzas do filho em casa por anos, em parte pela preocupação com a possibilidade de depredação de um memorial.

"É um grande alívio para nós saber que ele estará seguro e protegido para sempre", diz Judy.

Ela relembra que, quando era pequeno, Matt sempre perguntava: "Você acha que eu serei famoso algum dia?"

"Acho que ele chegou lá", diz ela.

O casal se lembra que "deu de ombros" quando o filho saiu do armário quando era adolescente - eles já haviam adivinhado isto.

À época da morte do filho, diz Judy, o jovem estava tentando voltar a uma vida normal depois de ter sido estuprado em uma viagem do colégio ao Marrocos. Shepard sofreu um estupro coletivo por moradores do país.

"Nós sentíamos que ele estava finalmente conseguindo ser ele mesmo de novo. E daí isso aconteceu", diz sua mãe.

Shepard estudava ciência política e sonhava em trabalhar como diplomata para o Departamento de Estado.

Sua família tem sentimentos contraditórios sobre seu status de "santo".

Eles acreditam que o filho ficaria desconfortável com essa consagração como uma espécie de "ícone perfeito".

Judy afirma que ele não foi encontrado crucificado na cerca, como foi erroneamente reportado na época.

Nação conservadora

O Wyoming é um Estado rural e conservador.

O assassinato de Shepard gerou a percepção que o interior "cowboy" do país e os estados entre a costa leste e a oeste são uma "zona de perigo" para pessoas LGBT.

No entanto, em seu escritório na cidade de Cheyenne, o advogado Dion Custis, que defendeu McKinney em seu julgamento, mantém a versão de que trata-se de um roubo que terminou mal, mesmo reconhecendo que a orientação sexual da vítima tenha sido um fator.

"Eles [McKinney e Henderson] eram basicamente dois garotos perdidos, que usaram drogas diariamente por um longo período de tempo."

"Pessoas que usam metanfetamina, usuários crônicos, perdem a habilidade de racionalizar, têm todo tipo de problemas mentais."

No entanto, na visão de muitos, a retórica homofóbica do próprio McKinney o condena.

Em sua confissão à polícia, ele disse que começou a atacar Shepard porque o estudante tinha posto a mão em sua perna dentro do carro.

McKinney disse que respondeu: "Quer saber? Não somos gays e vamos te bater."

No entanto, em outro depoimento para a polícia, ele disse que Shepard só parecia que iria dar em cima de McKinney.

Há relatos de que, depois de sua prisão, ele escreveu uma carta para a esposa de outro condenado: "Sendo um homofóbic (sic) muinto (sic) bêbado, eu surtei e comecei a cacetar o viado com minha arma."

No julgamento, os advogados de McKinney argumentaram que Shepard tinha induzido seu cliente a um ataque de raiva por tocar em sua perna.

Mas o juiz desconsiderou essa linha de argumentação de "pânico gay".

Essa estratégia legal - quando réus de ataques violentos argumentam que foram provocados por avanços sexuais indesejados de pessoas do mesmo sexo - ainda é admissível em quase todos os Estados americanos, com três exceções, segundo o Instituito Williams, da faculdade de direito da UCLA (Universidade da Califórnia).

O xerique O'Malley rejeita qualquer tentativa de diminuir o caráter homofóbico do homicídio.

"Nunca desconsideramos que a motivação inicial era roubá-lo", diz ele, "mas o motivo mudou muito no começo do contato."

"Na minha opinião, foi um crime de ódio."

Ambos criminosos estão cumprindo penas de prisão perpétua por sequestro e assassinato.

Nenhum dos dois aceita pedidos de entrevistas, segundo o departamento penitenciário do Wyoming.

Em defesa da Matthew

Quando o reverendo da Igreja Batista de Westboro voltou a aparecer no julgamento de Henderson em 1999, os amigos de Shepard estavam preparados para não deixá-lo roubar a cena novamente.

"Tivemos essa ideia de grandes asas de anjos para bloquear os cartazes", diz Jim Osborn, que era o presidente da associação LGBT na época da morte do estudante.

O momento em defesa do amigo foi reencenado no filme da HBO The Laramie Project, de 2002.

Apelidado de "ação dos anjos", o ato foi replicado dois anos atrás em Orlando, na Flórida, quando membros da igreja de Westboro tentaram perturbar os funerais de pessoas gays mortas em um tiroteio em massa.

A morte de Shepard inspirou peças, poemas e um musical. Elton John escreveu uma música, American Triangle.

A família do estudante assassinado criou a fundação Matthew Shepard, que ajudou a ampliar a lei federal sobre crimes de ódio para incluir crimes motivados por orientação sexual, gênero e deficiências.

Seus pais, Judy e Dennis, estiveram na Casa Branca quando o então presidente Barack Obama assinou o Ato Matthew Shepard James Byrd Jr, de Prevenção a Crimes de Ódio, em 2009.

James Byrd Jr foi um homem negro assassinado no Texas em 1998 por três supremacistas brancos que o arrastaram com sua caminhonete.

Os pais de Matthew viajaram pelos Estados Unidos e por mais uma dúzia de países em defesa dos direitos LGBT.

A causa viu avanços nas últimas duas décadas nos Estados Unidos.

Quando o filho do casal morreu, o casamento entre pessoas do mesmo sexo era banido em todos os Estados americanos. Hoje, ele é permitido no país todo.

Mas ativistas dizem que a batalha por equidade não acabou.

Wyoming é um dos cinco Estados americanos que não têm leis de combate a crimes de ódio.

Em outros 15 Estados, leis contra crimes de ódio não cobrem expressamente os casos motivados pela orientação sexual da vítima, da acordo com a ONG Human Rights Campaign.

A entidade também afirma que pessoas LGBT podem ser demitidas por sua sexualidade em 29 Estados.

Para Judy, os direitos dos gays retrocederam durante o governo do presidente Donald Trump.

"Todos eles estão nesse círculo de familiaridade com atitudes extremas de religiosos de direita", diz ela sobre o gabinete do presidente. "Em particular (atitudes contra) a comunidade gay, contra qualquer um que não seja branco, hétero e cristão."