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Por dentro dos campos de 'reeducação' para onde são mandados muçulmanos na China

John Sudworth

Da BBC News

27/10/2018 10h53

Em 12 de julho de 2015, um satélite que capturava imagens da China mostrava entre os desertos e cidades do oeste do país uma área de areia vazia, intocada e cinzenta.

Três anos depois, em 22 de abril de 2018, outra foto do mesmo ponto apresentava algo novo: um prédio com estrutura de segurança reforçada havia se materializado. Ele estava rodeado por uma cerca de dois quilômetros de extensão --eram 16 torres de guarda.

É nesse local que o governo mantém milhares de muçulmanos em "centros de reeducação". A província autônoma de Xinjiang abriga cerca de 10 milhões de islâmicos da etnia uigur, minoria que há anos vive uma escalada de tensão com o Estado chinês.

O governo tem refutado acusações de que as pessoas estejam sendo mantidas em campos de internação e sendo forçadas a jurar lealdade ao presidente chinês, mas admite que "extremistas religiosos" estão sendo mantidos em "centros de educação" na região, que está próxima à fronteira com o Tibet.

A BBC tentou chegar perto da construção. Para tentar evitar o rigoroso escrutínio policial a qualquer jornalista que se aproxime, nós pousamos no aeroporto de Urumqi, nas proximidades, nas primeiras horas da manhã.

Mas depois de chegarmos em Dabancheng, distrito no norte de Xinjiang, fomos seguidos por ao menos cinco carros com policiais uniformizados e também à paisana, além de funcionários do governo.

Já estava claro que nosso plano de visitar uma dúzia de campos de internação nos dias seguintes não seria nada fácil. À medida em que avançamos pela estrada, descobrimos que mais cedo ou mais tarde o comboio de policiais iria tentar nos impedir.

Centenas de metros à frente, vimos algo inesperado: a ampla extensão de terra empoeirada não está mais vazia. Em seu lugar, um enorme projeto está tomando forma: uma minicidade surgindo no meio do deserto, cheia de guindastes, além de filas e filas de prédios cinzentos --todos com mais de quatro andares.

Tentamos obter imagens para mostrar o tamanho da construção, mas fomos interrompidos por um dos carros. Nosso veículo foi parado --os policiais pediram que as câmeras fossem desligadas e que nós deixássemos o local.

Mesmo assim, conseguimos descobrir algo significativo: uma enorme quantidade de atividades extras que até agora eram desconhecidas fora da China.

Reportagem da BBC foi seguida por policiais uniformizados e à paisana na China - BBC - BBC
Reportagem da BBC foi seguida por policiais uniformizados e à paisana na China
Imagem: BBC

Imagens de satélite mostram construção de prisões

O aplicativo do Google Earth pode levar meses ou até anos para atualizar as imagens de áreas remotas do planeta.

Entretanto, outros serviços de satélites públicos, como um sistema europeu de dados sobre o espaço, fornecem muito mais imagens atualizadas, embora a resolução seja menor.

Em outubro de 2018, imagens do serviço europeu mostram como os prédios cresceram. Não é apenas uma "grande" prisão, mas um enorme campo de internação. E ele é apenas uma das várias estruturas prisionais que foram erguidas em Xinjiang nos últimos anos.

Xinjiang é uma região autônoma da China. A maior parte de sua população é uigur, uma etnia muçulmana.

Antes de nossa tentativa de visitar o campo, nós paramos no centro de Dabancheng. Foi impossível falar abertamente com qualquer pessoa --nossos seguidores tratavam com agressividade qualquer pessoa que trocasse conosco um aceno.

Então decidimos telefonar para números aleatórios da cidade. Alguém sabe dizer o que são essas 16 torres que as autoridades estavam tão desesperadas para nos impedir de filmar?

"É uma escola de reeducação", diz um hoteleiro. Um lojista concorda: "Há dezenas de milhares de pessoas lá agora. Eles têm alguns problemas com seus pensamentos."

Essa gigante instalação, porém, não se encaixaria em nenhuma definição objetiva de escola. Em Xinjiang, "ir à escola" ganhou um significado próprio.

A China tem constantemente negado que esteja prendendo muçulmanos sem julgamento ou qualquer processo. Nesse contexto, um eufemismo para as prisões tem ganhado terreno --educação.

Como resposta às críticas internacionais, as autoridades passaram a usar essa descrição, inclusive em campanhas de publicidade. O canal de TV estatal tem mostrado peças de propaganda com salas de aulas limpas e cheias de estudantes agradecidos, aparentemente dispostos a se submeter ao curso.

Não há menção aos motivos pelos quais os estudantes foram escolhidos ou quanto tempo esses cursos duram. Mas há pistas. Algumas entrevistas soam mais como confissões.

"Hoje tenho uma profunda compreensão sobre meus próprios erros", diz um homem para a câmera. "Serei um ótimo cidadão quando eu voltar para casa."

O objetivo desses campos, segundo nos contaram, seria combater os extremismos, por meio de uma mistura de teoria jurídica, desenvolvimento de habilidades para o trabalho e aulas de chinês.

Sejam escolas ou campos, o objetivo é o mesmo. As instalações são exclusivas para a minoria muçulmana de Xinjiang --boa parte dessas pessoas não tem o chinês como língua materna.

O vídeo também sinaliza que as escolas criaram regras de vestimenta --nenhuma das mulheres está usando lenços na cabeça, como normalmente é costume entre muçulmanos.

Por que a China criou os campos de internação?

Em Xinjiang, há cerca de 10 milhões de uigures. Eles falam turco e se assemelham a pessoas da Ásia Central. Já a maioria da população da China pertence à etnia Han.

A cidade de Kashgar, no sul do país, é muitas vezes apontada como geograficamente mais próxima de Bagdá do que de Pequim --culturalmente, a população também sente essa proximidade maior com o Iraque.

E com uma história de rebeliões e resistência ao governo centralizador, a relação entre os uigures e os chefes modernos do Estado da China tem se mostrado tão preocupante quanto distante.

Depois do comunismo se instalar no país, Xinjiang ocasionalmente se desgarrou do governo com breves períodos de independência. Desde então, não são raros os protestos e momentos de violência.

A riqueza mineral, em particular de óleo e gás, é quase cinco vezes maior que a da Alemanha, por exemplo. Ela também trouxe uma enorme quantidade de investimentos, rápido crescimento econômico e uma onda de migração de colonos chineses da etnia Han.

Os uigures, entretanto, têm constantemente reclamado que a distribuição dos lucros desse crescimento é desigual. Em resposta a essas críticas, as autoridades chinesas alegam que houve melhorias nas condições de vida dos moradores da região.

Nas últimas décadas, centenas de pessoas morreram em levantes violentos, ataques entre comunidades e repressão policial.

Em 2013, um ataque contra pedestres na praça Tiananmen, em Pequim, matou duas pessoas, além dos três ocupantes uigures de um carro. Foi um momento marcante na história da região e, embora tenha sido um ato pequeno, abalou as fundações do Estado chinês.

No ano seguinte, 31 pessoas foram mortas em um ataque a faca perpetrado por membros da comunidade uigur em uma estação de trem na cidade de Kunming, a mais de 2.000 km de Xinjiang.

Ao longo dos últimos quatro anos, Xinjiang tem sido alvo de algumas das medidas de segurança mais restritivas e abrangentes já implantadas por um governo contra seu próprio povo.

Isso inclui uso de tecnologia em larga escala: reconhecimento facial por câmeras, dispositivos capazes de monitorar e ler conteúdos de celulares e coleta em massa de dados biométricos.

Novas e severas punições foram implantadas para restringir a identidade e práticas islâmicas - foram proibidos, entre outras coisas, o uso de longas barbas e lenços na cabeça, além de instrução religiosa a crianças e nomes que soem como islâmicos.

Essas políticas parecem marcar uma mudança fundamental no pensamento oficial: o separatismo da região não é apenas um problema isolado e individual, mas sim algo inerente à cultura uigur e ao islã em geral.

Essa mudança coincide com um aperto proposto pelo atual presidente do país, Xi Jinping, no qual a lealdade à família e à fé, pilares da cultura uigur, deve ser subordinada ao Partido Comunista.

A identidade única dos uigures desperta suspeitas no governo chinês. Esse ponto de vista foi reforçado por relatórios que mostraram que centenas deles viajaram à Síria para lutar em vários grupos rebeldes.

Em outubro de 2013, um ataque na praça Tiananmen matou duas pessoas - Reuters - Reuters
Em outubro de 2013, um ataque na praça Tiananmen matou duas pessoas
Imagem: Reuters

Nos últimos anos, os uigures passaram a conviver com "verificações étnicas" em diversos pontos de checagem de pedestres e veículos, enquanto os residentes chineses da etnia han são frequentemente liberados sem qualquer questionamento.

Eles também enfrentam severas restrições de viagem, tanto dentro quanto fora de Xinjiang --um decreto força os residentes a entregarem todos os passaportes à polícia.

Autoridades do governo uigur também estão proibidas pelo Estado chinês de praticar o islã, frequentar mesquitas ou fazer jejum durante o Ramadã, período em que a maioria dos muçulmanos pratica um jejum ritual.

Diante de tudo isso, talvez não seja tão surpreendente que a China tenha introduzido outra solução mais antiga e mais direta para a "deslealdade" que enxerga em muitos de seus cidadãos uigures.

Apesar das negativas do governo, a evidência mais convincente da existência dos campos de internação vem de informações das próprias autoridades.

Páginas de licitações do governo local, descobertas pelo acadêmico alemão Adrian Zens, convidam potenciais contratantes e fornecedores a concorrer em projetos de construção das instalações. Os documentos mostram detalhes dos novos prédios e também da reforma de estruturas que já existiam em Xinjiang.

Em muitos casos, as propostas exigem a instalação de recursos abrangentes de segurança, como torres de vigia, arame farpado, sistemas de vigilância e salas de guarda.

Cruzando essas informações com outras fontes da mídia, o pesquisador Adrian Zenz diz que várias centenas de milhares e possivelmente mais de um milhão de uigures e outras minorias muçulmanas podem ter sido internadas para "reeducação".

Os documentos, entretanto, nunca se referem às instalações como campos de internação, mas como centros de educação ou "reeducação".

Uma das licitações provavelmente se refere à área que visitamos - um concurso de julho de 2017 oferece a instalação de um sistema de aquecimento em "um local de transformação por meio da escola de educação" em algum lugar no distrito de Dabancheng.

Os eufemismos para descrever as obras e as quantidades de material descritas apontam para uma rede de confinamento em massa em rápida expansão.

'Nunca mais falei com minha mãe'

Em 2002, Reyila Abulaiti viajou de Xinjiang para o Reino Unido para estudar. Ela conheceu e casou com um britânico, ganhando cidadania britânica e iniciando uma família.

No ano passado, sua mãe a visitou como faz todos os verões, passando um tempo com a filha e o neto e fazendo um pouco de turismo em Londres.

Xiamuxinuer Pida, de 66 anos, é uma engenheira aposentada com longos anos de serviços prestados a uma companhia estatal chinesa. Ela voltou para Xinjiang em 2 de junho.

Sem notícias da mãe, Reyila ligou para verificar se ela tinha chegado em casa. A conversa foi curta e aterrorizante.

"Ela me disse que a polícia estava revistando a casa", lembra. E era Reyila o alvo da investigação. Ela precisava enviar cópias de seus documentos, prova do endereço no Reino Unido, uma cópia do passaporte britânico, os números de telefone e informações sobre os cursos que fez.

E então, depois de pedir a ela para enviá-los através de um serviço de bate-papo chinês, Xiamuxinuer disse algo que causou um arrepio na espinha de Reyila.

"Não me ligue de novo", pediu sua mãe. "Não me ligue nunca mais." Foi a última vez que a filha ouviu a voz de sua mãe. Ela acredita que ex-engenheira esteja em algum campo de internação.

"Minha mãe foi detida sem motivo", diz ela. "Até onde sei, o governo chinês quer excluir a identidade uigur do mundo."

A BBC realizou longas entrevistas com oito uigures que vivem no exterior. Seus depoimentos são consistentes, fornecendo evidências das condições e rotinas dentro dos campos e da ampla base na qual as pessoas são detidas.

A atividade religiosa, qualquer dissidência, mesmo que branda, ou vínculos com os uigures que vivem em países estrangeiros parecem ser suficientes para levar as pessoas ao sistema de "reeducação".

'Se você não cantasse da maneira correta, apanhava'

Todas as manhãs, antes do nascer do sol, Ablet Tursun Tohti, de 29 anos, era acordado com seus companheiros detidos. Eles tinham um minuto para chegar ao pátio de exercícios, conta. Depois de se alinharem, eram obrigados a correr.

"Havia uma sala de punição para quem não corresse rápido o suficiente", diz. "Na sala havia dois homens, um para te bater com um cinto, e outro para te chutar", conta.

O pátio de exercícios do campo onde ele diz ter ficado detido, na cidade de Hotan, ao sul de Xinjiang, pode ser claramente visto por fotos de satélite.

"Nós tínhamos de cantar uma música chamada 'Sem o Partido Comunista não pode haver uma nova China'. Também aprendemos sobre legislação. Se você não as recitasse da forma correta, você podia apanhar."

Ablet Tursun Tohti conta que apanhou dentro dos centros de internação na China - BBC - BBC
Ablet Tursun Tohti conta que apanhou dentro dos centros de internação na China
Imagem: BBC

Ablet ficou no campo por um mês ao final de 2015 e, de qualquer forma, ele é uma das pessoas que tiveram sorte. Naquela época, os cursos de "reeducação" foram mais curtos. Nos últimos dois anos, há poucos relatos de pessoas libertadas.

Ablet foi um dos últimos uigures que conseguiram deixar a China antes da apreensão em massa de passaportes. Ele conseguiu se refugiar na Turquia, um país com grande quantidade de uigures, por causa da proximidade cultural e linguística.

Ablet conta que seu pai de 74 anos e seus oito irmãos estão internados nos campos de reeducação. "Não há ninguém da família do lado de fora", diz.

'Disseram que eu precisava ser educado'

Abdusalam Muhemet, de 41 anos, também está vivendo na Turquia. Ele foi detido pela polícia em Xinjiang em 2014 por ter recitado um verso islâmico em um funeral.

A polícia lhe disse que ele não seria punido, conta, mas que tampouco estava livre. "Me disseram que eu precisava ser educado", diz Muhemet. A instalação para onde ele foi levado não se parecia com uma escola.

Na foto de satélite, é possível ver as torres de guarda e a cercaem volta do perímetro do Centro de Treinamento em Educação Legal Han'airike, local para onde Muhemet foi levado. Também é possível enxergar as sombras de arames farpados projetadas sobre o solo arenoso.

Ele descreve a mesma rotina de exercícios, bullying e "lavagem cerebral".

Outro sobrevivente é Ali (nome fictício), que tem 25 anos. Ele conta que em 2015 foi levado a um campo de internação depois de a polícia encontrar em seu celular fotos de uma mulher usando um niqab, um véu que cobre o rosto.

"No campo havia uma velha senhora, que foi levada lá por ter feito uma peregrinação a Meca", ele conta. "Também tinha um idoso que não pagou sua conta de água a tempo."

Durante uma sessão de exercícios forçados, um carro oficial entrou no campo e o portão ficou aberto por alguns momentos.

"De repente, uma criancinha correu na direção da mãe, que estava se exercitando com a gente. Ela abraçou o filho e começou a chorar. Então um policial agarrou a mulher pelo cabelo e outro arrastou a criança pelo campo."

No lugar das limpas salas mostradas pelos comerciais da TV estatal, emerge dos relatos uma imagem bastante diferente.

"As portas dos dormitórios ficavam trancadas à noite", lembra Ablet. "E não havia banheiros nos quartos, eles davam apenas um tigela."

Não há uma forma de verificar se os relatos de tortura e as péssimas condições dos campos de internação são verdadeiros. A BBC questionou o governo chinês sobre essas denúncias, mas não obteve resposta.

Para os uigures que vivem fora de Xinjiang, as notícias da região praticamente desapareceram. O medo gera silêncio. Há diversos relatos de pessoas excluídas de grupos familiares de bate-papo ou que nunca mais fizeram ou receberam ligações.

Como resultado das prisões e separação entre parentes, dois valores centrais na cultura uigur - fé e família - estão sistematicamente sendo eliminados. Há casos de crianças deixadas em orfanatos depois que seus pais foram presos.

'Não sei onde minha filha está'

Bilkiz Hibibullah chegou à Turquia em 2016 com cinco de seus filhos. Sua filha mais nova, Sekine Hasan, que agora teria três anos e meio, ficou em Xinjiang com o pai - marido de Bilkiz.

O plano da família era fazer um passaporte para a menina e juntá-la ao restante dos parentes em Istambul, mas os pais nunca conseguiram o documento para a filha.

Bilkiz acredita que seu marido foi preso em março do ano passado. Desde então ela perdeu contato com a família que ainda vive na China e não faz ideia do paradeiro de sua filha menor.

"No meio da noite, depois de meus filhos dormirem, eu choro muito", conta. "Não há nada mais triste do que não saber onde sua filha está, se está viva ou morta. Se ela pudesse me ouvir agora, eu não diria nada além de pedir desculpas."

Construção de campos aumentou nos últimos anos

É possível lançar luz sobre o segredo obscuro de Xinjiang usando apenas dados de satélite de código aberto disponíveis publicamente.

A GMV é uma multinacional aeroespacial com experiência em monitorar infraestruturas do espaço para organizações como a Agência Espacial Europeia e a Comissão Europeia.

Suas análises passaram por uma lista de 101 instalações localizadas em Xinjiang. O relatório foi desenvolvido a partir de informações da imprensa e pesquisas acadêmicas sobre os campos de "reeducação".

A companhia mediu as estruturas já existentes e aquelas que passam por expansão. Foram identificadas características comuns, como torres de vigia e cercas de segurança - equipamentos necessários para monitorar e controlar o movimento de pessoas.

A empresa categorizou a probabilidade de cada área ser realmente uma instalação de segurança, colocando 44 delas como "alta" e "muito alta".

Então, eles fixaram a captação de imagens por satélite dessas localidades ao longo do tempo. As imagens mostram a construção do campo onde Abdusalem Muhemet ficou preso, por exemplo.

A GMV não é capaz de dizer como as estruturas estão sendo usadas, mas está claro que, nos últimos anos, a China tem construído muitas novas instalações de segurança, a uma velocidade notável e crescente. Também há indícios de que o governo tem construído instalações cada vez maiores.

Embora o número de construções tenha diminuído em relação a 2017, neste ano as instalações apresentam perímetros maiores. Estima-se que, desde 2003, os campos de internação de muçulmanos em Xinjiang tenham crescido em 440 hectares.

O número não parece grande, mas o potencial de pessoas presas pode surpreender. Em Los Angeles, por exemplo, um complexo prisional de 14 hectares abriga 7 mil presos.

Pegamos uma das descobertas da GMV - o aumento do tamanho dos edifícios nas instalações em Dabancheng - e a mostramos para uma equipe da empresa australiana Guymer Bailey Architects, que tem longa experiência em design de prisões.

Usando as medições das imagens de satélite, eles calcularam que, no mínimo, a instalação poderia abrigar cerca de 11 mil pessoas.

A maior prisão dos Estados Unidos, por exemplo, tem 10 mil prisioneiros - ela fica em Nova York. A maior da Europa, nos arredores de Istambul, tem 11 mil.

Segundo a companhia australiana, a construção de Dabancheng deve manter os prisioneiros em salas individuais. Se os dormitórios fossem usados por mais pessoas, a capacidade subiria para 130 mil detentos.

Nós mostramos as imagens para o arquiteto Raphael Sperry, presidente da organização Arquitetos/Designers/Urbanistas para Responsabilidade Social. Ele concordou que as instalações são prisões. "Essa é uma detenção realmente sombria. "Ela parece um local projetado para abrigar o maior número possível de pessoas em uma área tão pequena quanto possível, com o menor custo de construção", disse.

"Acho que 11 mil pessoas é uma estimativa subestimada... Pelas informações que temos, não podemos dizer como o interior dos prédios é usado. Por isso, quando alguém fala em 130 mil me parece, infelizmente, bastante possível."

Algumas das prisões não foram construídas do zero. São adaptações de escolas e fábricas. Essas são mais próximas de áreas urbanas.

As autoridades de Xinjiang não responderam às perguntas da BBC sobre os campos de "reeducação" da região.

Um checkpoint da polícia na cidade em Kashgar, em março de 2017 - Reuters - Reuters
Um checkpoint da polícia na cidade em Kashgar, em março de 2017
Imagem: Reuters

No condado de Yining, no norte do país, também tentamos visitar alguns campos. Antes, tivemos acesso a projetos de construção de cinco "centros de treinamento e educação de habilidades vocacionais" com o objetivo de "salvaguardar a estabilidade".

No centro da cidade, paramos ao lado de um grande número de prédios que costumavam ser uma escola de ensino médio. Agora, há uma grade de ferro protegendo o local e seguranças no portão da frente. Também há torres de vigia no antigo parquinho e no campo de futebol.

Do lado de fora, familiares formavam uma fila para passar pela revista da equipe de segurança. Mais uma vez, dois ou três carros nos seguiram. Quando nós tentamos gravar os campos, os policiais colocaram as mãos sobre as lentes. Disseram que havia um treinamento militar naquele momento e, por isso, deveríamos nos retirar.

Próximo havia uma família, uma mãe e duas crianças, esperando ao lado da cerca. Um dos seguranças tentou impedir que eles falassem com a reportagem. Outro oficial pediu que a família se pronunciasse. Questionado sobre quem eles estavam visitando, um dos filhos respondeu: "Meu pai".

Na sequência, os policiais tentaram cobrir a lente das câmeras novamente.

Na cidade de Kashgar, outrora um centro pulsante da cultura uigur, as ruas estreitas estão estranhamente vazias. Muitas das portas estão fechadas com cadeado.

Em uma delas, podemos ver um cartaz instruindo as pessoas a como responder perguntas sobre sobre o paradeiros de seus familiares. "Diga que eles estão sendo cuidados pelo bem da sociedade", diz o aviso.

A principal mesquita da cidade mais parece um museu. Tentamos descobrir quando será a próxima oração, mas ninguém parece saber. "Estou aqui apenas para lidar com turistas. Não sei nada sobre orações", diz um funcionário.

Na praça, há alguns homens velhos sem barba. Perguntamos onde as outras pessoas foram. Um deles murmura que não pode falar com jornalistas. Outro homem responde: "Ninguém mais vem aqui."

Um policial de capacete está limpando os degraus da mesquita. Turistas chineses tiram fotos.

Deixamos Kashgar por uma rodovia, rumo ao sudoeste, uma área pontilhada de vilarejos e fazendas uigur, além de muitos campos suspeitos. Como sempre, fomos seguidos, mas logo fomos surpreendidos: a estrada foi fechada.

Os policiais disseram que o solo havia derretido pelo sol quente. "Não é seguro prosseguir", afirmaram. Percebemos que outros carros estavam sendo direcionados para o estacionamento de um shopping center. No rádio da polícia, ouvimos instruções para que a estrada continuasse fechada "por enquanto".

Depois, eles disseram que a espera poderia demorar de quatro a cinco horas. Nos aconselharam a retornar.

Procuramos rotas alternativas, mas outros obstáculos sempre se materializam, mas com explicações diferentes. Outra estrada foi fechada por "treinamento militar". Tentamos por quatro vias diferentes, todas fechadas inesperadamente. Desistimos.

Alguns quilômetros à frente havia outros acampamentos para cerca de 10 mil pessoas.

Alguns uigures colaboram com o sistema?

Há uigures em posição de autoridade em Xinjiang. Muitos dos policiais e oficiais que nos pararam eram dessa etnia. Nunca saberemos se eles sentiram algum conflito.

Embora alguns digam que o sistema de prisões e controle seja semelhante ao apartheid da África do Sul, isso não é inteiramente verdade.

Muitos uigures têm interesse em manter esse sistema.

Na realidade, um paralelo melhor pode ser encontrado dentro do próprio passado totalitário da China. Como na Revolução Cultural, uma sociedade está sendo informada de que precisa ser desmontada para ser salva.

Shohrat Zakir, um uigur e, em teoria, o segundo político mais poderoso da região de Xinjiang, sugere que a batalha já está quase ganha. "Nos últimos 21 meses, nenhum ataque terrorista violento ocorreu e o número de casos criminais, incluindo aqueles que põem em risco a segurança pública, caiu significativamente", disse ele à mídia estatal.

"Xinjiang não é apenas um lugar bonito, mas seguro e estável."

O mundo ainda não ouviu ninguém que ficou preso em Dabancheng, a gigantesca instalação secreta.

Nossa reportagem mostra evidências de que há um programa de internação em massa de muçulmanos sem julgamento, acusação ou qualquer processo legal. Para o governo, o programa se chama "reeducação".

A China diz que o projeto é um sucesso. Mas a História tem muitos precedentes preocupantes sobre onde esse processo pode acabar.