Governo Bolsonaro: como o destaque da imprensa às polêmicas ampliou a fama (e o eleitorado) do presidente
Logo depois do primeiro turno das eleições, em 11 de outubro, o deputado e então candidato à Presidência Jair Bolsonaro reuniu-se com deputados federais eleitos de seu partido, o PSL. "Tomem muito cuidado com a mídia. Ela quer ganhar uma escorregada para me atacar. Recomendo nem falar (com repórteres), que parte da mídia quer nos desgastar", disse ele aos correligionários, muitos deles marinheiros de primeira viagem no Congresso.
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Mas o próprio candidato do PSL nunca seguiu esse conselho: ao longo de sua carreira, Bolsonaro aprendeu rapidamente quais tipos de declaração podiam ser usados para ganhar espaço na cobertura política e tornar-se mais conhecido de seus eleitores.
Ao pesquisar as reportagens sobre Bolsonaro nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo publicadas nos últimos 30 anos, pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) descobriram que falas do deputado contra os direitos humanos e em defesa da ditadura militar (1964-1985) repercutiram mais que todos os outros temas, somados.
"Há uma relação estreita entre Bolsonaro, ao longo das eleições que ele disputou, e a presença da mídia. Em dado momento, houve retroalimentação entre as falas de Bolsonaro e a presença dele na mídia. O fato de ele ser noticiado cada vez mais o torna mais visível para eleitores e possíveis eleitores", diz o professor da UFBA Leonardo Nascimento, que coordenou o estudo.
Além disso, os pesquisadores constataram que o espaço de Bolsonaro na imprensa deu um salto importante a partir de 2011, no começo do primeiro governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
O estudo dos pesquisadores da UFBA foi publicado sob a forma de artigo na Plural, a revista científica de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
De 1987 a 2017, falas de Bolsonaro contra os direitos humanos apareceram 191 vezes nos dois jornais. É a categoria mais numerosa, seguida de 141 menções a falas a favor da ditadura militar (1964-1985).
Temas corporativos dos militares (defesa de reajustes salariais, pensões etc.) só apareceram 73 vezes nos textos sobre Bolsonaro - apesar de este ser o tema principal do deputado no começo de sua carreira política, como mostrou reportagem da BBC News Brasil.
O estudo descobriu ainda que algumas pautas hoje associadas a Bolsonaro receberam pouca atenção da imprensa. As que menos apareceram foram as falas em defesa da pena de morte (14 vezes); e contra povos tradicionais (quilombolas, indígenas etc): apenas 15 menções.
Em alguns assuntos, o próprio Bolsonaro voltou atrás: em 2016, disse ter deixado de lado a pena de morte. "A Constituição não permite", disse ele. Ao longo da última semana, a reportagem da BBC procurou o então candidato do PSL para comentários, mas não houve resposta.
Como Bolsonaro 'estourou' no governo Dilma
Em janeiro de 2011, Dilma Rousseff (PT) tornou-se a primeira mulher a ocupar a Presidência da República. Mas aquele ano não foi importante só para Dilma: em 2011, Bolsonaro firmou-se como uma das vozes mais estridentes na oposição ao governo, ampliando e muito sua presença na imprensa, conforme os dados da pesquisa coordenada por Nascimento, que é doutor em sociologia e coordenador do Laboratório de Humanidades Digitais da UFBA.
Bolsonaro colheu os frutos na eleição seguinte: em 2014, foi eleito deputado federal no Rio, multiplicando por quatro os votos de 2010.
É do começo de 2011, por exemplo, a polêmica do chamado "kit gay" - na verdade, um material pedagógico elaborado pelo Ministério da Educação, então chefiado por Fernando Haddad (PT), para combater a homofobia nas escolas. A distribuição foi cancelada por ordem de Dilma Rousseff. O tal "kit" na verdade era um material voltado para a formação de professores, com o objetivo de treiná-los para discutir a homofobia nas escolas.
A primeira vez que Bolsonaro mencionou o tema foi durante sua campanha para a presidência da Câmara, em fevereiro daquele ano - ele acabou a disputa em último lugar, com apenas nove votos de seus colegas deputados.
Outro fato de forte repercussão em relação a Bolsonaro em 2011 foi uma declaração do deputado durante um quadro do programa CQC, da Band (2008-2015).
"Bolsonaro está sentado na cadeira quente de O Povo Quer Saber. As pessoas podem fazer qualquer pergunta para ele, e o cara é esquentadão", anuncia o apresentador Marcelo Tas na abertura.
Numa das perguntas, o deputado diz que "Isso (ter filhos gays) nem passa pela minha cabeça, eles tiveram uma boa educação. Tiveram um pai presente, então não corro esse risco". Pouco depois vem uma pergunta da cantora Preta Gil, sobre o que ele faria se um de seus filhos namorasse uma mulher negra. "Preta, não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco, e meus filhos foram muito bem educados. E não viveram em ambiente como lamentavelmente é o teu", disse.
O caso resultou num inquérito no STF, aberto em 2013 e arquivado pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso em 2015. Deu origem também a um processo no Conselho de Ética da Câmara, que terminou arquivado - tanto o inquérito quanto o processo por quebra de decoro foram noticiados e ajudaram a aumentar a contagem de reportagens a respeito do deputado, conforme observaram os pesquisadores.
O presidente eleito alega que suas declarações foram editadas e tiradas de contexto - a resposta sobre "libertinagem" na verdade dizia respeito a uma pergunta sobre a possibilidade de ter filhos gays, sustenta ele.
No ano de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, por unanimidade, a validade jurídica das uniões homoafetivas - e Bolsonaro voltou a figurar nos jornais criticando a decisão.
"Em outros termos, quanto maior o avanço da agenda política dos direitos humanos, mais notícias surgem com as repercussões das declarações contrárias a essa mesma agenda. Desse modo, parece haver um elo curioso e perverso entre determinadas agendas políticas, declarações polêmicas e a visibilidade midiática do deputado", escreveram os autores do estudo.
Reeleito em 2010 para seu sexto mandato na Câmara, com 120.646 votos, o deputado já tinha fama de "polêmico" - nos anos 1990, defendeu a morte do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por exemplo. Mas nunca tinha experimentado tanta publicidade em função de suas declarações.
"Bolsonaro identificou e ocupou uma 'cadeira vazia' que existia no conservadorismo brasileiro, pautado pelo Congresso mais conservador pós-1964, eleito em 2014. Outros nomes apareceram ocasionalmente nessa época, como o deputado Marco Feliciano (PSC-SP), mas foi Bolsonaro quem conseguiu trabalhar sua imagem alinhada a essa parcela da população que busca um representante mais à direita", diz a jornalista e cientista política Deysi Cioccari, que estuda a trajetória midiática do deputado.
Decodificando o 'mito'
O primeiro passo dos pesquisadores foi construir um "robô" - na verdade um programa de computador - capaz de coletar todas as reportagens sobre Bolsonaro nos acervos online dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.
Foram coletados 978 textos da Folha e outros 692 do Estado. Em seguida, foram excluídos os textos nos quais o nome de Bolsonaro era só mencionado de passagem, "sem apresentar qualquer pauta política ou de relevância histórica acerca do político". O resultado foram 536 reportagens nas quais o deputado fluminense era o foco ou externava opiniões. O artigo pode ser lido aqui.
"O artigo não está interessado em demonizar e nem em defender a figura do Bolsonaro. Estamos interessados em descrever o fenômeno, para as pessoas entenderem como foi possível o surgimento da figura pública", diz Leonardo Nascimento.
Depois de selecionado, o material foi tratado manualmente pelos pesquisadores, conta Leonardo. "Foi uma análise quantitativa (o número de reportagens, as datas) e qualitativa (o conteúdo), que não é automatizada. Foi preciso ler todas para fazer a categorização", diz ele.
A divisão em categorias foi revisada entre os pesquisadores, para evitar que textos acabassem nas "caixinhas" erradas, usando um software próprio.
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