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Em meio a crise de moradia, cidades dos EUA incentivam proprietários a abrigar sem-teto no quintal de casa

"São vizinhos", diz um dos idealizadores de projeto sobre a importância de não rotular os residentes como "sem-teto" - DIVULGAÇÃO/BLOCK PROJECT
'São vizinhos', diz um dos idealizadores de projeto sobre a importância de não rotular os residentes como 'sem-teto' Imagem: DIVULGAÇÃO/BLOCK PROJECT

Alessandra Corrêa - De Winston-Salem (EUA) para a BBC News Brasil

De Winston-Salem (EUA) para a BBC News Brasil

09/11/2018 08h24

Diante de uma crise de moradia que já levou milhares de pessoas a viverem em carros, abrigos ou nas ruas e vários governos locais e estaduais a declararem estado de emergência, algumas cidades americanas estão testando uma abordagem inusitada para enfrentar o problema: oferecer incentivos para que proprietários abriguem sem-teto no quintal de casa.

Pelo menos quatro projetos pilotos, em Portland (no Estado de Oregon), Seattle (no Estado de Washington), no condado e na cidade de Los Angeles, estão recrutando pessoas interessadas em instalar uma "microcasa" nos fundos de sua propriedade, onde indivíduos ou famílias sem-teto possam morar.

As regras variam. Em Seattle, a iniciativa pioneira, as casas são construídas pelo Block Project (Projeto do Quarteirão, em tradução livre), administrado pela organização sem fins lucrativos Facing Homelessness (Encarando a Falta de Moradia), com doações da comunidade e ajuda de voluntários.

Os proprietários não recebem nada em troca, e os residentes não pagam aluguel nem têm prazo para deixar o local. Caso um participante desista do projeto, a casa é retirada de seu quintal e instalada em outra propriedade.

Em Portland, todo o custo e trabalho de construção ficam a cargo do governo do condado de Multnomah, que entrega as casas prontas aos participantes, com a condição de que, por um mínimo de cinco anos, abriguem famílias selecionadas pelo programa, chamado A Place for You (Um Lugar para Você, em tradução livre).

O aluguel pago pelas famílias durante esse período, com ajuda de vouchers do governo, não vai para o proprietário, e sim para cobrir serviços como luz, água e manutenção. Depois de cinco anos, o proprietário assume o controle da microcasa e pode alugar para quem quiser e receber renda da locação. Se quebrar o contrato antes desse prazo, tem de pagar pelo custo de construção.

Em Los Angeles, há dois projetos separados, ambos em fase inicial. Na semana passada, a cidade anunciou que recebeu US$ 1 milhão (cerca de R$ 3,7 milhões) da Bloomberg Philanthropies, organização filantrópica de Michael Bloomberg, para financiar um programa, cujos detalhes ainda estão em discussão.

No condado (que engloba também municípios nos arredores de Los Angeles), a ideia é oferecer financiamento para ajudar proprietários a construir ou renovar casas no quintal. O governo paga por parte dos custos, mas o participante fica responsável pela obra, com a assistência de consultores.

Quando prontas, as unidades devem ser alugadas para sem-teto selecionados por meio de programas de assistência, mas ainda não há definição sobre prazos ou outros detalhes.

Interesse

Todos esses programas ainda estão em estágios iniciais, e os idealizadores reconhecem que, sozinhos, não vão solucionar a crise de moradia, relacionada também à pobreza, e não apenas à falta de casas. Mas o objetivo é descobrir se iniciativas do tipo poderiam complementar as medidas já adotadas no combate ao problema.

"Dez anos atrás, eu jamais imaginaria que estaríamos falando de unidades no quintal no contexto de soluções para a crise de moradia. Isso mostra como as cidades chegaram a um ponto em que estão tentando de tudo para enfrentar esse problema", disse à BBC News Brasil Connie Chung, uma das responsáveis pelo projeto no Departamento de Planejamento Regional do Condado de Los Angeles.

Apesar de incomum, a ideia foi bem recebida até agora. Quando o projeto piloto de Portland foi anunciado, em 2016, mais de mil proprietários manifestaram interesse. A cidade é uma das que declararam estado de emergência por conta da crise de moradia. No condado inteiro, calcula-se que sejam necessárias pelo menos 25 mil unidades adicionais.

"O interesse realmente nos surpreendeu. Achávamos que teríamos sorte se 20 proprietários considerassem participar", disse à BBC News Brasil Mary Li, diretora do Multnomah County Idea Lab, o laboratório de inovação do condado, responsável pelo projeto.

"Quando você tem mil pessoas dispostas a potencialmente arriscar seu maior bem material, a sua casa, para ajudar alguém que não tem uma, é algo muito especial. Mostra que, quando as pessoas têm a oportunidade, elas ajudam", salienta Li.

Ao final, quatro foram selecionados, e as microcasas, com cerca de 18 m², ficaram prontas para receber os primeiros moradores na metade deste ano. Agências do governo selecionaram as famílias, que também recebem serviços já existentes do governo local, como ajuda para conseguir emprego e resolução de eventuais disputas com os proprietários.

Uma das primeiras contempladas foi Sherry Mesa, que desde julho vive com a sobrinha, Sobeyda, em uma microcasa no quintal de Martha Chambers. "Eu não posso contribuir com altas quantias em dinheiro, mas esta é a oportunidade perfeita para ajudar uma família, em meu quintal. Todo mundo sai ganhando, o proprietário e a família que antes era sem-teto", disse Martha em depoimento logo após receber Sherry e Sobeyda.

Envolvimento da comunidade

Em Seattle, que também está em estado de emergência devido à crise de moradia, com mais de 12 mil sem-teto, o Block Project tem mais de cem proprietários interessados em lista de espera.

Como o próprio nome sugere, a ideia do projeto é envolver a comunidade inteira e, no futuro, instalar em cada quarteirão da cidade uma microcasa para abrigar alguém que vivia como sem-teto.

"Se alguém na vizinhança tiver alguma objeção, por qualquer motivo, não vamos instalar a casa naquele quarteirão", disse à BBC News Brasil o arquiteto Rex Hohlbein, que fundou a organização Facing Homelessness e criou o Block Project ao lado da filha, a também arquiteta Jenn LaFreniere.

O processo para conectar proprietários e futuros residentes fica a cargo de serviços de assistência social e envolve questões sobre gostos pessoais e estilo de vida. Essas agências também acompanham os participantes e ajudam a solucionar eventuais problemas. Os residentes assinam um contrato que estabelece regras e proibições, como o uso de drogas e substâncias ilegais nas casas.

Até agora, apenas uma casa está pronta, no quintal de Kim Sherman e Dan Tenenbaum, que desde o ano passado abriga Bobby Desjarlais, de 76 anos. Membro do povo indígena Cree, Bobby viveu como sem-teto por mais de uma década.

Residente de Seattle a vida inteira, Kim conta que acompanhou o crescimento da população sem-teto. "Quase não existia quando eu era criança, agora vejo pessoas sem-teto todos os dias, parte meu coração", diz ela em depoimento gravado pelo Block Project. "Esse projeto me dá a oportunidade de fazer algo concreto, que vai fazer diferença na nossa comunidade, e mudar a vida de uma pessoa."

Três outras microcasas estão em construção. Segundo Hohlbein, cada uma custaria em torno de US$ 85 mil (cerca de R$ 317 mil), mas como boa parte do material é doada e a obra tem a participação de voluntários, o custo cai para aproximadamente US$ 35 mil (cerca de R$ 130 mil). Com cerca de 11 m², elas têm energia solar e sistema de captação de água da chuva. No futuro, o plano é cobrar aluguel dos residentes, pago com ajuda de vouchers do governo, e usar o dinheiro para construir mais casas.

Hohlbein diz acreditar que o primeiro passo para enfrentar a crise de falta de moradia é reduzir a distância física e emocional entre os que têm e os que não têm uma casa para morar.

"Resolvendo apenas a falta de casas, não vamos chegar à raiz do problema. Ao criar conexões, relacionamentos, é possível acabar com o problema por meio do envolvimento da comunidade", ressalta.

Ele lembra que os participantes do Block Project não recebem dinheiro e são motivados pela vontade de ajudar e fazer parte da solução, e que o objetivo não é criar uma relação entre proprietário e inquilino, e sim entre vizinhos. "O tipo de pessoa que está disposta a participar e está disposta a viver com alguém que tem um trauma, seja por algo que o levou a tornar-se sem-teto ou simplesmente porque viver sem-teto é traumático. Para essa pessoa a renda não é a motivação."

Futuro

Em outros projetos, porém, além da solidariedade, a motivação também é a possibilidade de ganhar renda extra. "Todo mundo sai ganhando. O proprietário se beneficia porque ganha dinheiro para ajudar a construir ou renovar uma casa no quintal, o que agrega valor a sua propriedade. Pode receber aluguel, o que representa uma fonte adicional de renda. E pode ser parte da solução para a crise", observa Chung.

Mais de 500 proprietários se inscreveram para participar do projeto no condado de Los Angeles, que tem mais de 55 mil sem-teto. Nesta fase inicial, com investimento de cerca de US$ 500 mil (cerca de R$ 1,8 milhão), cinco ou seis serão selecionados. As casas deverão ter no mínimo 14 m² e, no máximo, 111 m², e devem estar prontas para receber os primeiros residentes até o fim de 2019.

Li, de Portland, destaca que é importante não rotular os residentes como "sem-teto".

"Depois de se mudarem para uma casa, deixam de ser 'sem-teto'. O que estamos tentando dizer é que estes são vizinhos. Por uma série de eventos, poderia ser você ou eu."

Hohlbein acredita que, no futuro, a ideia de abrigar alguém no seu quintal será encarada como outras iniciativas de economia colaborativa, como Airbnb ou Uber.

"É parecido, estão pedindo que você reconsidere seu espaço pessoal. Antes do surgimento do Airbnb, a ideia de ter um estranho passando a noite em sua casa, enquanto você dorme, era impensável. Hoje em dia, minha mãe, que tem 80 anos de idade, é adepta do Airbnb. Esse paradigma mudou", destaca.

"Acredito que, assim como ocorreu com casas e carros, isso vai mudar também em relação ao quintal. As pessoas não vão mais ver esse espaço como um santuário pessoal, mas sim como um local onde você pode fazer o bem social."

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