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Coreia do Norte: As mulheres que fugiram do país, mas acabaram nas garras da indústria do sexo na China

Su-Min Hwang - Da BBC News

27/01/2019 15h54

Traficadas e levadas a fazer vídeos sexuais ao vivo na internet após fugirem da Coreia do Norte, duas jovens contam como conseguiram escapar do apartamento onde viveram presas por anos.

Do terceiro andar de um prédio residencial na cidade chinesa de Yanji, duas jovens lançam da janela uma corda improvisada com lençóis da cama.

Elas saem pela janela e começam a descida. "Rápido, não temos muito tempo", alerta a pessoa que as ajuda a fugir.

Ao chegar em baixo, elas correm na direção de uma van.

Mas ainda não estão a salvo.

Mira e Jiyun são "desertoras" da Coreia do Norte e, em anos diferentes, foram enganadas por traficantes.

Após cruzar a fronteira da China, as mesmas pessoas que as ajudaram a fugir da Coreia do Norte as entregaram para uma quadrilha que produz vídeos sexuais ao vivo.

Durante oito anos, Jiyun ficou confinada num apartamento e foi forçada a trabalhar transmitindo ao vivo poses e atos pornográficos pela internet. Mira viveu o mesmo pesadelo pelos últimos cinco anos.

Deixar a Coreia do Norte sem permissão do regime é ilegal. E muitas pessoas arriscam a vida durante a fuga.

A Coreia do Sul é um refúgio seguro, mas a estreita fronteira com a Coreia do Norte é fortemente militarizada e repleta de minas, o que torna quase impossível uma fuga por lá.

Por isso, muitos desertores seguem para o norte e tentam entrar na China.

Mas, na China, quem foge da Coreia do Norte é considerado "imigrante ilegal" e enviado de volta, se descoberto pelas autoridades. Uma vez de volta ao país natal, os desertores são submetidos a tortura e interrogatórios em punição por "traírem a pátria".

Muitos desertores fugiram em meados da década de 90, quando uma grande escassez de alimentos conhecida como "A Árdua Caminhada" levou cerca de 1 milhão de pessoas à morte.

Mas desde que Kim Jong-un assumiu o poder na Coreia do Norte, em 2011, o número de pessoas que fogem do país a cada ano caiu para menos da metade. O declínio tem sido atribuído a reforços nos mecanismos de controle na fronteira e aos altos preços cobrados pelas quadrilhas que ajudam na fuga.

Mira desertou quando tinha 22 anos.

Nascida poucos anos após a crise de fome, ela faz parte de uma nova geração de norte-coreanos. Graças à crescente rede de mercados negros, conhecidos localmente como Jangmadang, estes jovens têm acesso a DVDs, cosméticos e roupas falsificadas de estilistas famosos, assim como pen drives com filmes ilegais.

Esse fluxo de materiais estrangeiros influencia alguns deles a desertar. Para eles, os filmes que entram no país via China são uma janela para o mundo e uma motivação para deixarem a Coreia do Norte.

"Eu gostava muito dos filmes chineses e pensava que todos os homens chineses eram daquele jeito. Eu queria me casar com um homem chinês e pesquisei formas de deixar a Coreia do Norte por vários anos", diz Mira.

O pai dela, um ex-soldado e integrante do partido que governa a Coreia do Norte, era muito severo. Às vezes até batia em Mira.

A jovem queria estudar medicina, mas foi impedida pelo pai. Cada vez mais frustrada, sonhava com uma vida nova na China.

"Meu pai era um membro do partido e era sufocante. Ele não me deixava ver filmes estrangeiros. Eu tinha que acordar e dormir nos mesmos horários. Eu não queria aquela vida."

Por muitos anos, Mira tentou achar um "coiote" para ajudá-la a cruzar o rio Tumen e deixar o seu país. Mas as quadrilhas tinham medo de auxiliar a jovem na fuga por causa dos laços estreitos entre a família dela e o governo.

Finalmente, após anos de tentativas, Mira encontrou alguém que topou auxiliá-la. Como muitos desertores, a jovem não tinha dinheiro suficiente para pagar os coiotes diretamente. Por isso, concordou em ser "vendida" e trabalhar para pagar a dívida.

Ela achou que trabalharia num restaurante, mas acabou nas mãos de uma quadrilha que recruta mulheres da Coreia do Norte para abastecer a indústria sexual.

Após cruzar o rio Tumen e entrar na China, Mira foi levada à cidade de Yanji, onde foi entregue a um homem que lhe foi apresentado como "o diretor".

Yanji fica no coração da região de Yanbian, que mantém um certo nível de independência do governo central de Pequim.

Uma grande população de pessoas de origem coreana vive lá, e o território se tornou área de trocas comerciais com a Coreia do Norte e um dos principais refúgios para fugitivos norte-coreanos.

A grande maioria dos desertores são mulheres. Mas, sem conseguir se legalizar na China, são particularmente vulneráveis à exploração. Algumas são vendidas como esposas, frequentemente em áreas rurais. Outras são forçadas a se prostituir ou, como Mira, a entrar na indústria de sexo via webcam ao vivo.

Ao chegarem ao apartamento em Yanji, "o diretor" finalmente revelou a Mira qual seria o novo trabalho dela.

O homem a apresentou a uma "mentora", com quem dividiria o quarto. Mira teria que assistir, aprender e praticar.

"Eu não conseguia acreditar. Era tão humilhante como mulher tirar a roupa assim na frente de outras pessoas. Quando caí em prantos, eles me perguntaram se estava chorando porque sentia saudades de casa."

O site de sexo por webcam, e a maioria de seus usuários são sul-coreanos. Eles pagam por minuto, então as mulheres são incentivadas a manter a atenção do homem pelo maior tempo possível.

Sempre que Mira titubeava ou demonstrava medo, o diretor ameaçava mandá-la de volta à Coreia do Norte.

"Todos os meus parentes trabalham para o governo e eu levaria vergonha à minha família se retornasse. Prefiro desaparecer como fumaça ou morrer."

Havia cerca de nove mulheres morando no apartamento. Quando a primeira colega de quarto de Mira fugiu com outra jovem, ela foi levada para ficar com outro grupo de mulheres. Foi assim que conheceu Jiyun.

Ela chegava a dormir só quatro horas por noite para bater a meta diária de US$ 177 (cerca de R$ 664). Estava desesperada para ganhar dinheiro para ajudar a família.

Às vezes, Jiyun consolava Mira, dizendo a ela para não se rebelar, mas sim negociar com o diretor.

"Primeiro, trabalhe duro", dizia Mira. "E se o diretor não te liberar, aí negocie com ele."

Jiyun diz que, durante os anos em que ganhava mais dinheiro que as outras jovens, o diretor a tratava melhor que às demais.

"Eu achava que ele genuinamente se importava comigo. Mas nos dias em que meu lucro caia, a expressão do rosto dele mudava."

O apartamento era vigiado de perto pela família do diretor. Os pais dele dormiam na sala de estar e mantinham a porta de entrada trancada.

O diretor dava comida para as jovens e para o irmão dele, que morava por perto, e ia ao apartamento todos os dias para retirar o lixo.

"Era um confinamento completo. Pior até que uma prisão", diz Jiyun.

As jovens norte-coreanas saíam do apartamento uma vez a cada seis meses, em geral, ou uma vez por mês se lucrassem muito. Nesses momentos raros, faziam compras ou cortavam o cabelo. Mas não eram autorizadas a falar com ninguém.

"O diretor andava muito perto de nós, porque tinha medo que a gente fugisse", diz Mira. "Eu queria andar livremente, mas não podia. Não podíamos falar com ninguém nem na hora de comprar uma garrafa d'água. Eu me sentia uma estúpida."

O diretor nomeou uma das mulheres do apartamento como "gerente", e ela vigiava as demais quando ele não estava presente.

O diretor prometeu a Mira que a casaria com um homem bom se ela trabalhasse duro. A Jiun, prometeu que permitiria que ela entrasse em contato com a família.

Quando Jiyun pediu que a liberasse, ele falou que ela precisava ganhar US$ 53.200 para pagar sua "dívida" pela viagem. Depois, falou que não poderia libertá-la porque não conseguia encontrar coiotes para ajudar no retorno dela para casa.

Mira e Jiyun nunca viram o dinheiro que ganharam com os vídeos. O diretor inicialmente disse, quando fossem liberadas, daria a elas 30% do que tivessem faturado. Mas Mira e Jiyun foram ficando mais e mais ansiosas à medida que percebiam que possivelmente nunca ganhariam a liberdade.

"Suicídio não é algo que eu normalmente pensaria em cometer, mas eu tentei tomar uma overdose de remédios e pular da janela", diz Jiyun.

Os anos se passaram - cinco para Mira e oito para Jiyun.

Até que um cliente da webcam ao vivo de Mira, que ela já conhecia havia três anos, se compadeceu da situação e decidiu ajudá-la. Ele a pôs em contato com o pastor Chun Kiwon, que há 20 anos ajuda norte-coreanos a fugir do país.

O cliente também instalou, remotamente, um aplicativo de mensagens no computador de Mira, para que ela pudesse se comunicar com o pastor.

O pastor Chun Kiwon é bem conhecido entre desertores norte-coreanos. A TV estatal da Coreia do Norte frequentemente o ataca, chamando-o de "sequestrador". Desde que fundou a sua ONG cristã Durihana, em 1999, estima que tenha ajudado 1.200 pessoas a deixarem a Coreia do Norte em segurança.

Ele recebe dois a três pedidos de resgate por mês, mas achou os casos de Mira e Jiyun particularmente perturbadores.

"Eu vi meninas que foram mantidas prisioneiras por até três anos. Mas nunca vi um caso de aprisionamento por todo esse tempo. Realmente é de partir o coração."

Chun afirma que o tráfico de mulheres desertoras se tornou mais organizado e que alguns guardas de fronteira norte-coreanos estão envolvidos.

O preço das mulheres pode variar de centenas a milhares de dólares. Embora estatísticas oficiais sejam difíceis de obter, as Nações Unidas manifestaram preocupação com altas taxas de tráfico de mulheres norte-coreanas.

Por 16 anos consecutivos, o relatório de tráfico do Departamento de Estado dos Estados Unidos vem consistentemente classificando a Coreia do Norte entre os países com maior número de casos de tráfico humano no mundo.

Por um mês, Chun manteve contato com Mira e Jiyun através do site de sexo pela webcam, fazendo-se passar por cliente. Dessa forma, as duas jovens podiam fingir que estavam trabalhando enquanto planejavam a fuga.

"Normalmente, desertores prisioneiros não têm noção da sua localização porque são levados ao cativeiro de olhos vendados ou durante a noite. Felizmente, Mira e Jiyun sabiam onde estavam em Yanji e podiam enxergar o letreiro de um hotel do lado de fora da janela", disse Chun.

Ao identificar a localização exata no Google Maps, o pastor conseguiu enviar um voluntário da sua organização até Durihana para preparar a fuga.

Sair da China é perigoso para qualquer pessoa que tenha fugido da Coreia do Norte.

A maioria quer chegar a um terceiro país ou a uma embaixada sul-coreana, onde recebem asilo e passagens para a Coreia do Sul.

Mas viajar pela China sem documento de identidade é perigoso.

"No passado, desertores conseguiam dar um jeito de viajar com um documento falso. Mas hoje em dia, autoridades carregam aparelhos eletrônicos que podem verificar se uma identidade é verdadeira ou falsa", explica Chun.

Depois de fugir do apartamento, Jiyun e Mira começaram a jornada para cruzar a China com a ajuda de voluntários da ONG Durihana.

Sem identidade, seria arriscado se registrar em hotéis ou albergues. Por isso, dormiam em trens ou passavam noites em claro sentadas em restaurantes.

No último dia da viagem, após subirem uma montanha por cinco horas, finalmente cruzaram a fronteira e entraram num país vizinho à China. A rota e o país por onde deixaram a China não podem ser revelados.

Doze dias depois de fugir do apartamento, Mira e Jiyun conheceram Chun pessoalmente pela primeira vez.

"Eu acho que só estarei totalmente à salva quando receber a cidadania sul-coreana. Mas só conhecer o pastor Chun já me fez sentir segura. Eu chorei diante da ideia de ter encontrado a liberdade", diz Jiyun.

Juntos, eles viajaram de carro por mais 27 horas para a cidade sul-coreana mais próxima.

Chun diz que alguns norte-coreanos consideram a última parte da jornada particularmente difícil, já que eles não estão acostumados a viajar de carro.

"Eles frequentemente ficam enjoados e às vezes desmaiam depois de tanto vomitar. É uma estrada terrível, percorrida por aqueles que tentam escapar."

Pouco antes de chegar à embaixada, Jiyun sorri, nervosa, e diz que sente vontade de chorar.

"Eu sinto como se tivesse saído do inferno", diz Jiyun. "São muitos sentimentos que vêm e vão. Talvez, eu nunca mais veja a minha família se eu for para a Coreia do Sul, e me sinto culpada. Essa não era a minha intenção ao ir embora."

Juntos, o pastor e as jovens cruzam o portão da embaixada sul-coreana. Alguns segundos depois, só Chun retorna. A missão dele foi concluída.

Mira e Jiyun vão pegar um voo direto para a Coreia do Sul, onde passarão por um rigoroso processo de investigação por parte dos serviço nacional de inteligência. O objetivo é verificar se não são espiãs.

As duas, então, passarão três meses num assentamento para norte-coreanos na cidade de Hanawon, onde aprenderão a se ajustar à nova vida na Coreia do Sul.

Refugiados da Coreia do Sul aprendem a fazer compras no supermercado, a usar smartphones, além de princípios da economia de livre comércio e são treinados para conseguir emprego. Também recebem aconselhamento.

Depois disso, tornam-se oficialmente cidadãos sul-coreanos.

"Eu quero aprender inglês ou chinês para trabalhar como guia turística", diz Mira sobre seus planos na Coreia do Sul.

"Eu quero viver uma vida normal, tomando café num restaurante e conversando com amigos", diz Jiyun. "Alguém uma vez me disse que um dia vai parar de chover, mas a época das chuvas foi tão longa que me esqueci que o sol existia."

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