Trans em banheiros, doação de sangue por gays e bullying: as questões LGBTs que podem ser julgadas no STF
Criminalização da homofobia e da transfobia não foi a 1ª vez em que a Corte debateu sobre direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais - e, provavelmente, não será a última.
A criminalização da homofobia e da transfobia não foi a primeira vez em que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu sobre direitos de LGBTs - e não deve ser a última.
A Corte já reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, determinou a retirada na menção a "pederastia" do Código Penal Militar, disse que transexuais podem mudar de nome e sexo no registro civil sem passar por cirurgia e reinstaurou o veto à terapia de conversão sexual, conhecida como "cura gay".
Agora, reconheceu haver uma demora inconstitucional do Legislativo em punir o preconceito por orientação sexual e identidade de gênero e disse que, enquanto não houver lei específica, isso seja considerado um tipo de racismo.
Os ministros do STF deverão ainda debater ainda outras questões relativas a LGBTs nos próximos anos.
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Ações na Corte reivindicam que transexuais usem banheiros públicos de acordo com sua identidade de gênero, o fim da proibição de que homens gays doem sangue, que o combate ao bullying de alunos LGBTs seja dever das escolas, uma regulamentação da lei anti-homofobia do Distrito Federal (DF) e o direito de mulheres transexuais e travestis ficarem em presídios femininos.
No sentido contrário, uma ação pede que seja revogada a decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que obriga cartórios a celebrarem o casamento homoafetivo.
Estes processos têm chegado ao STF porque tratam de assuntos polêmicos que são obstruídos no Congresso Nacional, diz Elival da Silva Ramos, professor de Direto Constitucional da Universidade de São Paulo (USP) e ex-procurador-geral do Estado de São Paulo.
"Quem não quer que o assunto vá para frente impede que seja votado. Quem perde leva a questão ao Supremo quando há direitos fundamentais envolvidos", diz Ramos.
Thiago Amparo, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz que há uma "resistência histórica de grupos políticos conservadores" em tratar destes temas e, por isso, muitas demandas são levadas ao Judiciário.
"O Legislativo é omisso, porque os projetos de lei não são apreciados e caducam ao extrapolar o prazo de tramitação ou simplesmente não são aprovados", diz Amparo.
'Perdidos de vista'
Mas chegar ao STF não é garantia de que as ações serão debatidas no plenário - cabe ao presidente da Corte incluir processos na pauta - e, se forem, que haverá uma decisão.
Algumas ações foram apresentadas há anos e até hoje não foram pautadas. Outras chegaram a ser votadas, mas o julgamento foi interrompido por pedido de vista de um ministro, ou seja, foi solicitado mais tempo para se analisar o processo.
O regimento do STF estabelece o prazo de duas sessões para que os casos sejam devolvidos. Mas não há qualquer sanção se o prazo for descumprido.
O presidente Jair Bolsonaro (PSL) falou sobre o assunto em encontro com jornalistas em 14 de junho. De acordo com o UOL, ele defendeu um ministro evangélico no STF, que poderia se contrapor a temas como a criminalização da homofobia e, se sua posição fosse minoritária, pedir vista para "sentar em cima do processo".
"Esse é um problema no STF", diz Paulo Iotti, doutor em Direito Constitucional e advogado em algumas das ações na Corte. "É um direito do ministro para melhor estudar um caso. Mas o prazo não é respeitado, e isso impede o tribunal de deliberar."
Iotti recorda que o próprio ministro Marco Aurélio Mello já disse que, em alguns casos, isso equivale a um "perdido de vista". "No caso sobre uso de banheiros por transexuais, o pedido de vista do ministro Luiz Fux já dura três anos e meio. Não dá para entender."
Ramos concorda que isso é usado para impedir uma decisão. "Algumas vezes, para ganhar tempo para que o Congresso legisle. Em outras, para que haja uma mudança na composição da Corte. Isso não é bom para a imagem do STF."
Críticas de ativismo judicial
Quando julga, o STF também é criticado e acusado de fazer ativismo em nome de certas causas, como no caso da criminalização da homofobia e no reconhecimento da união homoafetiva.
Ramos diz que isso deve ser ponderado caso a caso. Ele avalia que o STF apenas interpretou a Constituição em relação à união homoafetiva, mas, ao criminalizar a homotransfobia, criou um novo tipo de crime e foi além de sua competência constitucional.
A ação sobre o uso de banheiros por transexuais, afirma Ramos, é um "típico caso" que caberia ao Legislativo. "Os transexuais não podem ser constrangidos, mas há quem diga que sua presença no banheiro constrange outras pessoas. É papel do legislador promover o debate e verificar até que ponto a sociedade está amadurecida."
O debate deve se intensificar nos próximos anos, diz Amparo, da FGV, porque têm sido apresentados no Congresso projetos como o Estatuto da Família, que define "família" como a união apenas entre homem e mulher e é considerado discriminatório por alguns.
Se aprovadas, leis assim deverão ser questionadas no STF, diz o professor. "O Legislativo passou da omissão para a proposição de leis que retiram direitos LGBTs. Temos que ver até que ponto o Supremo conseguirá dar conta destas diferentes pautas, pela lentidão com que os casos tramitam."
A seguir, saiba mais sobre as ações sobre questões relativas a LGBTs que já chegaram ao Supremo e em que estágio estão estes processos.
1. Uso de banheiro público por transexuais de acordo com o gênero com que se identificam
Em 2008, a transexual Ama Santos Fialho foi retirada à força de um banheiro feminino por seguranças do Beiramar Shopping, em Florianópolis, e defecou nas próprias roupas.
A princípio, a empresa, que afirma que "o fato de a segurança ter solicitado ao autor que utilizasse o banheiro masculino não se afigura motivo de humilhação", foi condenada a pagar uma indenização, mas o Tribunal de Justiça de Santa Catarina derrubou a decisão porque o episódio foi um "mero dissabor".
A defesa de Fialho recorreu em 2014 ao STF ao alegar desrespeito aos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade humana.
Em 2015, o ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação (RE 845779), se posicionou a favor de que transexuais usem banheiro públicos de acordo com sua identidade de gênero. Edson Fachin concordou. Mas Fux pediu vista em seguida, e o julgamento está paralisado desde então.
O caso terá repercussão geral, ou seja, a decisão será aplicada a causas semelhantes no país. Até então, havia 778 processos do tipo no Judiciário.
2. Permissão para que homens que fazem sexo com homens possam doar sangue
A ação (ADI 5543) de 2017 movida pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) pede a suspensão da proibição prevista na portaria 158/2016 do Ministério da Saúde e na resolução 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de que homens que fazem sexo com homens doem sangue, a fim de reduzir o risco de contaminação por HIV em transfusões.
O ministério e a Anvisa dizem que a regra se baseia em estudos científicos, enquanto o PSB afirma ser discriminação.
Fachin, relator da ação, votou a favor, assim como Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux, enquanto Alexandre de Moraes abriu divergência e propôs uma adaptação das regras para que o sangue coletado seja armazenado até que se constate não haver risco de contaminação. Gilmar Mendes pediu vista, e o julgamento está suspenso.
3. Estabelecer como dever de escolas combater o bullying contra estudantes LGBT
A ação (ADI 5668) do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) pede que um trecho do Plano Nacional de Educação - "erradicação de todas as formas de discriminação" - seja interpretado de forma a obrigar escolas a coibirem a discriminação por gênero, identidade de gênero e orientação sexual.
Na prática, isso colocaria como dever destas instituições o combate ao bullying contra alunos LGBTs. Segundo o PSOL, parlamentares nas esferas federal, estadual e municipal retiraram dos seus respectivos planos de educação menções a isso.
Para a Advocacia-Geral da União, o pedido do PSOL é desnecessário porque "o ordenamento jurídico já confere proteção adequada" no Plano Nacional de Educação.
A ação, relatada por Fachin, ainda não foi levada ao plenário.
4. Regulamentação de lei anti-homofobia do DF
O PSOL pede na ação (ADI 5740) de 2017 uma liminar contra o decreto 2146/17, da Câmara Legislativa do DF, que suspendeu a regulamentação da lei 2615/00, conhecida como lei anti-homofobia.
À época da aprovação do texto no DF, os parlamentares distritais classificaram a medida como "proteção da família". "Não podemos permitir que a influência da família na sociedade seja desvalorizada, ela é quem define nossos princípios, o que entendemos por certo e errado e, principalmente, como nos relacionamos com os integrantes de outras famílias", diz o decreto legislativo.
Para o PSOL, o ato contraria a Constituição, segundo a qual a Câmara só poderia derrubar a regulamentação, feita pelo governo distrital por decreto, se esta ultrapassasse os limites do poder do Executivo ou da delegação de poderes feita pelo Legislativo. Neste caso, diz o PSOL, a própria lei determina que o governo a regulamente.
Em setembro do ano passado, a ministra Cármem Lúcia substituiu Dias Toffoli como relatora da ação, que ainda não foi julgada.
5. Cumprimento de pena em presídios femininos por mulheres transexuais e travestis
A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) argumenta na ação (ADPF 527) movida em 2018 que pedidos judiciais e administrativos de transferência de mulheres transexuais e travestis para prisões femininas têm sido negados. Isso viola os princípios da dignidade da pessoa humana, da proibição ao tratamento degradante ou desumano e da garantia à saúde, diz a ABGLT.
A associação pede que o STF interprete a Resolução Conjunta Presidência da República e Conselho Nacional de Combate à Discriminação 1/2014, que determina a oferta de "espaços de convivência específicos" a detentos LGBTs em prisões masculinas, para que seja concedida uma liminar para permitir que mulheres transexuais e travestis que se identificam como mulheres possam ficar em presídios femininos.
Para a Advocacia-Geral da União, a concessão da liminar poderia "agravar a situação de grande instabilidade já verificada no sistema prisional brasileiro", já que a transferência de presos demandaria "a criação de mais vagas" em presídios femininos e "o emprego de significativos recursos materiais e humanos".
"Além disso, a própria resolução impugnada assegura aos travestis a opção pelo recolhimento em espaços específicos de vivência nas unidades prisionais masculinas, de forma a garantir sua segurança e o respeito aos seus direitos fundamentais", escreve a AGU.
O ministro Barroso é relator do processo no STF, que ainda não foi a plenário.
6. Extinção da resolução do CNJ que reconheceu o casamento homoafetivo
A Partido Social Cristão (PSC) questiona na ação (ADI 4966) movida em 2013 a constitucionalidade da resolução do CNJ que obriga cartórios a celebrar o casamento homoafetivo ou converter união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento.
O PSC argumenta que o órgão invadiu a competência do Legislativo de discutir e votar a matéria.
Para a Procuradoria-Geral da República, o pedido do partido é improcedente porque o CNJ estava apenas regulando uma decisão do STF de 2011, que reconheceu a união homoafetiva. "A decisão do Supremo Tribunal Federal é cristalina no sentido de conceder interpretação ampla e inclusiva ao conceito de família ditado pela Constituição Brasileira."
O processo é relatado por Gilmar Mendes e ainda não foi julgado.
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