Bolsonaro perdeu 'oportunidade de ouro' na ONU com discurso 'belicoso' para agradar base, dizem analistas
Fala de presidente sobre a proteção amazônica, tema mais importante perante a comunidade internacional, 'não constrói pontes', afirma brasilianista; ex-embaixador opina que pronunciamento foi mais voltado ao público interno do que ao externo.
O discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia-Geral da ONU, nesta terça-feira (24/9), não responde a anseios internacionais por mais proteção à Amazônia e pode acirrar mais as relações com outros países e investidores estrangeiros, afirmam quatro especialistas em relações internacionais brasileiras ouvidos pela BBC News Brasil.
A fala também foi vista mais como um aceno à sua base de apoio do que à comunidade internacional.
Para o diretor do Brazil Institute da Universidade King's College London, Anthony Pereira, em vez de "pacificar" a questão amazônica, Bolsonaro abriu as portas para mais críticas e possíveis retaliações ao Brasil com base no argumento de que o país abandonou compromissos com a proteção do meio ambiente.
No discurso, Bolsonaro afirmou ter "um compromisso solene com a preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável em benefício do Brasil e do mundo. (...) Contudo, os ataques sensacionalistas que sofremos por grande parte da mídia internacional devido aos focos de incêndio na Amazônia despertaram nosso sentimento patriótico. (...) Valendo-se de falácias, um ou outro país, em vez de ajudar, embarcou nas mentiras da mídia e se portou de forma desrespeitosa, com espírito colonialista".
"Acho que esse discurso não constrói pontes nem atende às preocupações levantadas por países e ativistas, como Greta Thunberg, na ONU. Talvez tenhamos mais conflitos sobre essas questões", diz Pereira. "Houve uma repetição de falas já pronunciadas pelo presidente Bolsonaro no Brasil, sem nenhuma abertura para um diálogo construtivo."
Sobre as possíveis reações à manifestação de Bolsonaro na ONU, Pereira lembra que o desmatamento na Amazônia já tem sido usado por países europeus para tentar bloquear nos parlamentos locais o acordo comercial firmado em junho entre Mercosul e União Europeia.
E, na visão do professor, esse tipo de retaliação tende a continuar diante do discurso do presidente brasileiro.
"Ele não acalmou os ânimos e sabemos que França e Irlanda já disseram que vão votar contra a ratificação do tratado entre Mercosul e União Europeia", afirma.
"Claro que não há apenas a questão ambiental. Esses países têm produtores que enxergam os agricultores brasileiros como competidores. Mas a minha interpretação sobre a fala de Bolsonaro é a de que ela não fecha essas portas [para as críticas]. É possível que tenhamos mais desse tipo de retaliação."
'Oportunidade perdida'
Rubens Ricupero, diplomata de carreira, ex-embaixador do Brasil em Washington e ex-ministro do governo FHC, concorda que a fala de Bolsonaro na ONU reforça a corrente que acredita que "acordos como o (do Mercosul) com a União Europeia podem, na prática, estar mortos, porque nenhum governo europeu vai ter coragem de submeter a ratificação do acordo a seu Parlamento em um futuro previsível".
Ricupero lembra que, na semana passada, 230 fundos estrangeiros que administram US$ 16 trilhões fizeram um comunicado conjunto pedindo ao Brasil medidas concretas de combate a queimadas e ao desmatamento amazônico.
"Depois desse tipo de advertência, se esperaria uma atitude mais conciliadora de Bolsonaro, mas pelo contrário, foi um discurso agressivo. (...) Na diplomacia, contam o tom, a maneira de falar, até mais do que o conteúdo. E o discurso foi violento, lido de forma belicosa", opina o ex-ministro.
O brasilianista Brian Winter, editor-chefe da publicação Americas Quarterly, acredita que "Bolsonaro perdeu uma oportunidade de ouro de acalmar o mundo na questão da Amazônia. Poderia ter dito 'entendemos que (o desmatamento) é um problema, estamos cuidando disso e cabe a nós resolver'. Mas acabou fazendo um discurso belicoso, que pega bem com sua base, mas incita a comunidade global, com repercussões ruins para o Brasil e sua economia."
Winter diz que, em conversas recentes com diferentes investidores, tem escutado que suas decisões relacionadas a investimentos no Brasil estão em compasso de espera.
"Mesmo os investidores que não têm elo com a questão ambiental temem três coisas: o risco a sua reputação [pela polêmica em torno da Amazônia]; o risco de a economia brasileira não crescer o bastante; o temor de que os ruídos políticos não parem nunca", diz.
Para Mark Langevin, diretor do centro de estudos BrazilWorks, em Washington, ainda que Bolsonaro tenha afirmado estar comprometido com a preservação da Amazônia, o contraste com números oficiais que apontam para aumento nas queimadas ainda desperta cautela em investidores e companhias com negócios no país.
"Qualquer pessoa que olhe os dados vai achar que o que Bolsonaro diz não muda o fato de que sua política está perdendo credibilidade", opina Langevin.
"Investidores e fundos sérios estão olhando o Brasil com atenção e avaliando o risco para sua própria reputação, e esse risco é alto no momento. (...) Não acho que vão sancionar ou sair do país, mas tampouco vão fazer grandes investimentos."
Para ele, reivindicações de soberania sobre a Amazônia, sejam ditas por Bolsonaro ou por antecessores como Luiz Inácio Lula da Silva, soam ingênuas para a comunidade internacional, "porque há tanta coisa em jogo, desde países vizinhos [que também são parte da floresta] até Estados que investem na sua preservação".
'Público interno'
Ricupero enxerga o discurso desta terça na ONU mais como uma instigação à base de apoio interna do que um pronunciamento à comunidade internacional.
Ele cita como exemplo disso o tuíte de Flávio Bolsonaro, senador pelo Rio e filho do presidente, dizendo que o pronunciamento do pai "levou ao conhecimento mundial a pauta vencedora das eleições de 2018. Por isso, os derrotados nas urnas estão criticando o discurso libertador verdadeiro e que ainda fez convite ao mundo para que venham conhecer o Brasil".
"É uma fala para o público interno, porque Bolsonaro não parece sensível à opinião que o mundo faça dele. É mais preocupado com apoiadores que esperam atitudes radicais. (...) Transformar Cuba e Venezuela em ameaças [Bolsonaro dedicou boa parte do discurso a críticas aos governos cubano e venezuelano] apenas agrada mais seus partidários."
Brian Winter vê de modo semelhante. "Foi um discurso para consumo interno, consistente com o estilo de Bolsonaro e que lhe elegeu presidente. O problema é a repercussão disso no estágio internacional e na economia, em um momento em que o Brasil tem 12 milhões de desempregados. A ironia é que o Brasil tem histórias interessantes para contar em [preservação] do meio ambiente, e não é o único país a sofrer com queimadas — na Bolívia o problema é tão grande quanto. A diferença é que lá o governo [de Evo Morales] dá sinais de que entende a necessidade de resolver o problema."
O risco, para Ricupero, é um isolamento do Brasil na comunidade internacional, em um momento em que os líderes estrangeiros de quem Bolsonaro se aproximou — Matteo Salvini, da Itália, Benjamin Netanyahu, de Israel, e o próprio Donald Trump, nos EUA — enfrentam cenários adversos internamente.
O presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), João Martins, não compartilha dessa opinião. À BBC News Brasil, ele afirmou que "o presidente Jair Bolsonaro conseguiu posicionar o Brasil na ONU. Defendeu a soberania nacional, esclareceu equívocos sobre a Amazônia e ressaltou o importante papel do Brasil na produção mundial de alimentos e na preservação do meio ambiente. Também afastou a tese de que o governo está colocando o mundo contra o agro brasileiro, defendendo não apenas o setor, mas toda a nação".
Ataque à esquerda
Bolsonaro abriu seu discurso dizendo que o Brasil "ressurge depois de estar à beira do socialismo". Segundo o presidente, esse sistema de governo trouxe "corrupção generalizada para o Brasil". O presidente ainda acusou o ex-presidente Lula — ao lado de Fidel Castro e Hugo Chávez — de criarem o "Foro de São Paulo para implementar o socialismo na América Latina".
Anthony Pereira, do King's College, no entanto, vê nisso indicativo de que Bolsonaro não reconhece a participação de partidos de esquerda no ambiente democrático, algo "problemático".
"Ele não está falando só de Venezuela e Cuba, mas também sobre o PT e outros partidos de esquerda. É um pouco semelhante ao discurso do regime militar", avalia.
"É como se, para ele, houvesse as pessoas corretas e as pessoas subversivas que não teriam legitimidade de participação democrática. E, fazendo isso, ele está excluindo muitos atores. Isso é problemático do ponto de vista democrático e de um sistema em que o presidente deve representar a todos."
O professor do King's College opina ainda que, em seu discurso na ONU, Bolsonaro aprofunda a tentativa de se descolar de todos os seus antecessores.
"Minha impressão é que Bolsonaro quer distinguir o governo dele de todos os governos que sucederam a transição para democracia, incluindo Sarney, Collor, FHC, Lula, Dilma, Temer", diz.
"Ele rejeita o consenso construído por esses governos pós-transição, apresentando-os como governos contaminados pelo esquerdismo e a corrupção."
Esse consenso, diz ele, se refere à valorização da diversidade, à postura de neutralidade internacional diante de conflitos entre potências e à atitude multipartidária na política interna — de negociar e abarcar ideologias distintas em busca de uma maioria no Legislativo para governar.
Bolsonaro não está só nesse ponto: as críticas ao socialismo, à Venezuela e a Cuba vão ao encontro das posições do presidente Donald Trump, que discursou na ONU logo depois de Bolsonaro.
"Como Trump falou depois, e houve afinidade entre o discurso dele com o de Bolsonaro, talvez um dos objetivos do presidente Bolsonaro seja mostrar alinhamento claro com governos mais nacionalistas e contrários a algumas normas do multilateralismo", avalia Pereira.
*Colaborou Mariana Sanches, da BBC News Brasil em Nova York
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