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Para congressistas, protestos podem sacudir todo sistema político chileno

Marcia Carmo - De Buenos Aires para a BBC Brasil

26/10/2019 15h35

Manifestação com 1 milhão de pessoas leva presidente do Chile a pedir que ministros renunciem cargos e pode acabar com toque de recolher.

A manifestação histórica que reuniu mais de um milhão de pessoas, em Santiago, na noite de sexta-feira, foi definida como o ponto culminante após uma semana de protestos no Chile e levou o presidente Sebastián Piñera a anunciar, neste sábado, o pedido de que todos os seus ministros coloquem seus cargos à disposição.

"Para que possamos enfrentar as novas demandas dos chilenos (e as responsabilidades) destes novos tempos", disse diante das câmeras de televisão. Piñera informou que poderia suspender o toque de recolher, (o que foi feito neste sábado)".

Sem bandeiras de partidos políticos e erguendo a bandeira nacional e cartazes, escritos a mão, com diferentes demandas, os chilenos se concentraram na capital e no interior do país com o lema: "Chile despertó' (Chile acordou).

Definido como 'modelo econômico', o país de cerca de 18 milhões de habitantes parece viver agora um "antes e depois" das manifestações inéditas desde o retorno da democracia em 1990, após 17 anos de ditadura de Augusto Pinochet.

Governado com a mesma constituição de 1980, da era Pinochet (1915-2006), que recebeu uma série de reformas ao longo dos governos democráticos, mas ainda mantém desafios daquela época, o Chile possui uma economia aberta com tratados de livre comércio (TLC) com vários países, como Estados Unidos e China, e blocos de países, como a União Europeia.

Mas apesar de ser uma economia estável e previsível e de possuir a maior renda per capita da América do Sul, o Chile é, porém, um dos mais desiguais do mundo, segundo especialistas. A desigualdade, os preços altos do sistema de saúde e dos transportes foram alguns dos motores dos protestos em série estimulados após o anúncio do aumento da passagem do metrô - que foi visto como o "estopim" para as manifestações.

"Estamos em guerra" x "Estamos em paz"

Num primeiro momento, logo após o inicio da revolta popular, que incluiu protestos mais violentos, com incêndios em estações de metrô, e saques a supermercados e a caixas eletrônicos, o presidente Sebastián Piñera disse: "estamos em guerra". A frase parece ter alimentado os panelaços de várias classes sociais no país e cartazes que diziam "estamos em paz". Piñera decretou toque de recolher e o Exército foi para as ruas, pela primeira vez depois da democracia.

Horas depois, ele pediu "perdão" aos chilenos por não ter percebido suas necessidades e anunciou um pacote de medidas sociais, que incluiu os preços de medicamentos e o aumento de benefícios sociais. Não foram suficientes. As manifestações continuaram e vinte pessoas morreram, segundo a imprensa local.

Neste sábado, Piñera, agora sem gravata, disse: "O Chile é diferente de uma semana atrás. Fizemos vários anúncios. Mas acho que há algo mais profundo que temos que mudar na sociedade chilena. Ainda não sabemos o que é. Mas a demanda por participação é gigantesca". Ele anunciou a criação de uma espécie de ouvidoria pública, que será liderada pelo ministro da pasta de desenvolvimento social, e ouvirá diferentes setores da sociedade para saber onde o Chile precisa mudar para passar a ser menos injusto.

Entrevistados pela BBC News Brasil, congressistas governistas e da oposição, além de analistas, disseram que as manifestações sacudiram o país. E podem sacudir também o sistema político atual, já que entre as demandas diversas estão os pedidos de igualdade social e de uma nova constituição do país. O senador governista Manuel Ossandon, do partido Renovación Nacional (Renovação Nacional) disse que o Chile é hoje "um país onde muitos ganham pouco e poucos ganham muito" e que as manifestações foram resultado de "um mal-estar genuíno chileno" que dura 30 anos.

"O Chile é um modelo econômico que deu certo, mas vai precisar mudar para que haja melhor distribuição de renda. É como se poucos tivessem acesso à festa e agora todos querem e têm o direito a ser parte dela", disse pelo telefone. Segundo ele, hoje no Chile, com sistemas privados e onde muitos estão endividados, a classe média tem medo de envelhecer e de perder sua casa. "Isso não pode mais continuar assim. É inviável e por isso os protestos surgiram", disse Ossandon, que foi candidato a presidente e perdeu para Piñera na disputa partidária.

O presidente do RN, o deputado Mario Desbordes, disse que, desde o retorno da democracia, a pobreza no Chile passou de quase 50% para menos de 10%. "Surgiu uma nova classe média no país. Mas essa construção da classe média sente que não há distribuição de riqueza e observa situações de abuso público e privado. As pessoas não estão protestando para ter um modelo socialista, não estão pedindo o regime bolivariano, não está pedindo para que acabe a iniciativa privada. Não é isso. Mas elas querem que suas vidas melhorem", disse Desbordes.

Na sua visão, os protestos mais violentos, que incluíram a destruição de setores das estações de metrô, foram "organizados" e pretenderam desestabilizar o governo Piñera. Mas foram minoria frente às manifestações pacíficas em vários pontos do país. "Não há duvidas de que o Chile está muito melhor agora do que antes de 1990. Hoje, setenta por cento da população chilena se considera classe média. Mas está claro que os chilenos pedem melhorias", afirmou Desbordes.

Para o presidente do Senado, Jaime Quintana, o Chile deverá fazer uma nova constituição para mudar o atual modelo econômico. "Mais cedo ou mais tarde, o modelo neoliberal seria fortemente rejeitado porque é um modelo desigual. Esta crise mostra que existe algo mais profundo que temos que resolver. E para isso será preciso uma nova constituição. Precisamos incluir os povos indígenas, aumentar a presença do Estado em setores chaves para melhorar a vida das pessoas, como o da saúde, porque no Chile o mercado predomina em todas as áreas", disse Quintana, do Partido pela Democracia e aliado da ex-presidente Michelle Bachelet. Como seu opositor Piñera, que agora governa o Chile pela segunda vez, ela foi presidente duas vezes (2006-2010 e 2014-2018), e agora é alta comissária da ONU para os Direitos Humanos.

Nestes últimos quase trinta anos, o Chile foi governado durante vinte anos pela frende de centro-esquerda Concertación, da qual Bachelet foi integrante, e pela direita, representada por Piñera. Neste período, como recordou Quintana, na busca por tornar o Chile menos desigual, Bachelet implementou a educação gratuita para os mais pobres. A educação tinha gerado uma série de manifestações no país. Piñera não modificou as medidas sociais de seus opositores e prometeu ampliar sua agenda social, especialmente depois das manifestações.

Para o professor de ciências políticas da Universidade de Valparaído, Guillermo Holzmann, existe no Chile "um movimento" contra o neoliberalismo. "O Chile foi o primeiro país a implementar o neoliberalismo, que ratificou com o Consenso de Washington, sendo parte da globalização. Mas aqui agora os pedidos são de que o mercado não explore mais aos cidadãos e que o Estado os proteja e sem corrupção", disse Holzmann.

Brasil, 2013

Na visão do professor de ciências políticas da Universidade do Chile, Robert Funk, o Chile viveu, durante muito tempo, "uma espécie de desconexão entre a classe política e a sociedade". Para ele, a Concertación conseguiu reduzir a pobreza e gerar uma classe média, mas "frágil" e por isso agora, com as demandas que considera legitimas, as pessoas estão protestando contra as medidas deixadas por Pinochet. "São pessoas que sentem os efeitos de um Estado pequeno e querem mudanças.

O que acontece aqui nos faz lembrar o que aconteceu no Brasil em 2013, quando o aumento das passagens acabou gerando fortes protestos no governo da ex-presidente Dilma. Mas no Brasil como aqui as passagens foram somente a gota d`água", disse Funk. Ele disse que, no Chile ninguém pede nacionalizações, por exemplo. "Mas salários dignos, saúde digna, acesso a medicamentos. Maior presença do Estado", disse, sugerindo que mudanças no sistema atual deverão ser feitas.

A professora Julieta Suárez Cao, da Universidade Católica do Chile e da Rede de Politólogas (cientistas políticas) da América Latina, disse que, pelo menos até antes dos protestos dos últimos dias, os políticos chilenos, tanto da Concertación quanto da direita, tinham uma visão "elitista" e "distante" da realidade dos chilenos.

Argentina, acostumada a cultura de protestos de seu país, ela mora há oito anos no país andino, e observou que as pessoas no Chile protestam por "mudanças estruturais" e deixam claro, afirmou, que "protestam por seus direitos" e "por maior participação social e melhoras nas suas vidas". Para ela, por isso, os anúncios de maiores benefícios sociais feitos por Piñera, durante a semana, foram vistos como "insuficientes", com mais manifestações no país.


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