Por que a 'criadora do chá de revelação' se arrepende de ter ajudado a lançar essa moda
A americana Jenna Karvunidis queria animar a família sobre sua primeira gravidez quando teve a ideia de fazer um chá para revelar o sexo do bebê para amigos e parentes. Hoje, esse tipo de festa tornou-se popular em vários países e seguiu por caminhos que sua 'inventora' desaprova.
Jenna Karvunidis ainda tem na parede de casa a reportagem de uma revista sobre o chá de revelação que ela fez em 2008.
Por causa disso, a americana é apontada como a criadora desse tipo de festa, em que casais descobrem junto com amigos e familiares o sexo de seu bebê. Mas Jenna diz hoje que gostaria que alguém apontasse não ter sido ela quem "inventou" esta moda.
"Não sou eu que digo que criei, é algo que dizem sobre mim, e adoraria que provassem que não fui eu. Já me arrependi e me senti culpada e responsável por isso", afirma Jenna.
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Ela explica que esse sentimento se deve em parte à dimensão e os caminhos que o chá de revelação tomou. "Hoje, as pessoas explodem coisas para revelar o sexo do bebê, tem gente morrendo por causa disso, há incêndios em florestas, estão usando animais", diz.
Mas Jenna também acredita que esse ritual atribui uma importância excessiva ao sexo biológico de uma criança. "Há uma visão por trás do chá de revelação que reforça uma dicotomia perigosa entre masculino e feminino e envolve uma tentativa de colocar a mulher de volta no seu lugar."
Como tudo começou
Jenna teve a ideia de fazer um chá de revelação quando ficou grávida, há 11 anos. Ela buscava uma forma de animar sua família sobre a chegada de seu bebê, porque seus parentes não pareciam estar dando muita atenção à novidade, já que seu irmão havia tido um filho pouco tempo antes.
Foi quando ela decidiu preparar dois bolos, um com recheio azul e outro com recheio rosa, entregar o resultado de seu exame para uma cunhada e pedir para que ela levasse à festa o bolo correspondente ao sexo indicado pelo teste.
Ao cortar uma fatia, todos descobriram juntos que seria uma menina. Jenna diz que seu plano deu certo, e a família ficou bastante empolgada com tudo aquilo. "Parecia que o bebê tinha nascido naquele momento", diz ela.
Ela escreveu sobre o assunto em seu blog e um fórum online, e uma jornalista da revista The Bump viu seu relato e decidiu fazer uma reportagem sobre sua gravidez. Boa parte do texto foi dedicada ao chá de revelação.
"Aquela revista foi parar nas salas de espera de muitos médicos e parteiras, em uma época em que não era comum ter um smartphone, e as pessoas liam o que havia ali para passar o tempo até sua consulta", diz Jenna.
"As mulheres começaram as descobrir sobre esse tipo de festa quando estavam esperando pelo resultado do seu próprio exame."
Explosões, incêndios e mortes
Desde então, muitos casais incluíram o chá de revelação no calendário de uma gravidez. Após o exame feito com 20 semanas de gestação, quando geralmente é possível identificar o sexo do bebê, alguns pais pedem que o resultado seja colocado em um envelope, que é dado a algum amigo ou parente de confiança encarrgado de organizar o chá de revelação.
Esse tipo de festa tornou-se especialmente popular nos Estados Unidos, e os vídeos de alguns destes eventos viralizaram nas redes sociais. Não demorou para que se tornasse uma tendência também em outros países, entre eles o Brasil.
A princípio, os chás de revelação eram festas mais simples: as revelações tradicionais incluem um bolo com recheio ou doces azuis ou rosa escondidos dentro. Mais recentemente, alguns destes chás se tornaram mais grandiosos e dramáticos ? e até mesmo perigosos.
Em outubro deste ano, uma mulher morreu em uma festa deste tipo nos Estados Unidos após ser atingida por um estilhaço de um explosivo caseiro, que deveria liberar um pó rosa ou azul para indicar o sexo do bebê.
No ano passado, um homem disparou contra um alvo que explodiria para revelar o sexo de seu filho e causou um enorme incêndio no Estado do Arizona. O fogo durou mais de uma semana e fez com que centenas de pessoas tivessem de ser evacuadas de suas casas.
E o vídeo de um homem no Estado da Louisiana que deu a seu jacaré de melancia recheada com geleia azul gerou polêmica e críticas quanto ao bem-estar do animal e a segurança de seu dono.
Isso fez Jenna repensar seu orgulho inicial de ter ajudado a criar o chá de revelação. "Virou algo tão agressivo. Não é mais só um bolo para compartilhar uma boa notícia. Deveriam ter me avisado que se tornaria essa coisa toda", diz Jenna.
'O que importa o que um bebê tem entre as pernas?'
Ela também diz que os chás de revelação foram "cooptados por pessoas mais conservadoras que têm um jeito específico de pensar sobre gênero".
"Hoje, abordamos esse assunto de uma forma diferente do que há uma década. O sexo do bebê é uma apenas questão de anatomia. Não deve ser algo que limita nem define uma pessoa. É o mesmo que anunciar que uma criança tem cabelo loiro ou olho azul. O que importa o que um bebê tem entre as pernas?"
Jenna também acredita que estas festas também têm um impacto negativo sobre pessoas transexuais e não binárias, como são chamadas aquelas que não se identificam como homem ou mulher.
"Antes, pessoas que não se enquadram nos padrões de gênero não eram tão visíveis, mas hoje temos amigos e familiares que se identificam assim, e esse tipo de chá faz com que elas se sintam excluídas dos nossos costumes."
A ciência ainda não sabe ao certo explicar o que faz uma pessoa ser transgênero. Estudos apontam que elas são menos de 1% da população.
No ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou de considerar essa condição um distúrbio mental e passou a tratar a incongruência de gênero como uma questão de identidade que demanda, em vez de prevenção e tratamento, um apoio clínico e psicológico.
"A existência de pessoas que não se identificam com seu sexo biológico é algo que acompanha a humanidade desde sempre. Não é um fenômeno sociocultural moderno", diz Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS) do Hospital das Clínicas, em São Paulo.
Saadeh afirma que isso geralmente começa a se manifestar aos 3 ou 4 anos de idade, quando uma criança passa a se reconhecer como homem, mulher ou mesmo com algo intermediário entre esses dois polos.
No entanto, Francisco Assumpção, coordenador do departamento de infância e adolescência da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), diz que a incongruência de gênero não pode ser confirmada antes da idade adulta.
"Na maioria das vezes, a confusão de gênero desaparece até a adolescência. Se persistir, é melhor buscar um especialista", afirma Assumpção.
Uma menina que usa ternos
Hoje, Jenna Karvunidis é mãe de três meninas e diz que a maior reviravolta em toda essa história é que sua filha mais velha, Bianca, a bebê do primeiro chá de revelação, é hoje uma garota que não segue os estereótipos associados a meninas.
Aos 10 anos, Bianca gosta de ter cabelo curto e ternos usar azuis e aparece em muitas de suas fotos no Instagram com um visual que poderia ser descrito como andrógino.
"Ela não é transgênero, se identifica como menina. Apenas se expressa de uma forma que não é tradicional. Já raspou o cabelo, agora está deixando crescer. É uma criança que faz coisas de criança. Não cabe colocar um rótulo nisso", afirma Jenna.
Jenna diz que, na maioria das vezes, Bianca dá lições a seus pais sobre gênero. "É ela que fala para a gente que não há coisas de meninos ou de meninas e que existe uma série de gêneros e sexualidades. Não tinha pensado nisso antes. Nós ouvimos e assimilamos isso. Seria legal se mais pais fizessem isso", afirma.
"Não me preocupo com ela. Na verdade, fico mais preocupada com minhas duas filhas menores quando elas choram porque o Papai Noel trouxe um Lego e dizem que isso é brinquedo de menino."
Jenna também diz que deixou para trás o sentimento de culpa pelo fenômeno do chá de revelação. "Não posso me responsabilizar porque as pessoas estão explodindo coisas e morrendo por causa disso."
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