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Abstinência sexual: as disputas e os resultados das políticas para adolescentes nos EUA que inspiram governo Bolsonaro

Mariana Alvim - @marianaalvim - Da BBC News Brasil em São Paulo

15/01/2020 07h26

Desde a era Reagan, anos 1980, Estados Unidos alocam verbas domesticamente e em projetos no exterior especificamente para projetos que preguem a castidade como 'método mais eficaz' para prevenir gravidez na adolescência e transmissão de doenças.

Uma das agências governamentais de saúde mais importantes dos Estados Unidos, o Centers for Disease Control and Prevention, lista estratégias para prevenir a Aids no material informativo para o público em seu site. A primeira recomendação da lista é a abstinência, seguida de outras medidas como "limitar o número de parceiros sexuais, nunca compartilhar agulhas e usar camisinhas da forma correta a cada relação sexual".

Abstinência não está em primeiro lugar por acaso. Há décadas de disputas entre políticos, pesquisadores e religiosos dos EUA sobre qual deve ser a postura do governo e da ciência em relação ao não fazer sexo como uma medida de prevenção à gravidez precoce e às Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) ? especialmente na adolescência.

Nesta trajetória, há também bilhões de dólares gastos em políticas pela abstinência nos EUA e em ações de cooperação no exterior.

Agora, essa pauta chega ao Brasil com uma defesa sem precedentes pelo governo brasileiro. O Executivo, representado principalmente pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, tem defendido abertamente a abstinência entre os adolescentes como método preventivo e se aproximado de seus defensores dos EUA.

Desde 2019, a ministra já afirmou em diversas ocasiões, inclusive à BBC News Brasil, que deseja reforçar a abstinência sexual como método ensinado nas escolas. Em dezembro, o ministério organizou na Câmara dos Deputados um seminário sobre o tema.

"Estamos vendo uma campanha muito grande do sexo pelo prazer, tão somente pelo prazer, mas voltar a falar do afeto, trazer o afeto para esse debate", afirmou a titular da pasta à BBC News Brasil em maio. "O método mais eficiente é a abstinência. Por que não falar sobre isso? Por que não falar de retardar o início da relação sexual? Eu defendo essa tese."

O estudo mais amplo já publicado sobre a eficácia de programas de educação sexual nos EUA, a partir de pesquisas científicas sobre 89 programas do tipo, apontou que estratégias "abrangentes" ? incluindo abstinência e métodos contraceptivos, por exemplo ? têm os efeitos mais favoráveis sobre indicadores como índices de gravidez e transmissão de doenças (leia mais abaixo).

Discussão da abstinência durante emergência da Aids nos anos 1980

O arquivo do jornal New York Times traz, na edição de 2 abril de 1987, um argumento semelhante ao da ministra de Bolsonaro ? mas em fala de Ronald Reagan, presidente republicano dos EUA entre 1981 e 1989.

"Acho que este assunto em particular deveria ser ensinado em conexão com valores ? não simplesmente como um processo físico, mecânico", afirmou Reagan em um discurso na Filadélfia.

Era década de 1980, contexto da emergência da Aids, e o ex-presidente estava sendo cobrado por medidas de combate à epidemia ? que classificou naquele dia como "o inimigo número 1 da saúde pública".

"Vamos ser honestos. A informação sobre a Aids não pode ser o que alguns chamam de 'valor neutro'. Afinal, quando se trata de prevenir a infecção, não é que a medicina e a moralidade ensinam as mesmas lições?".

"Acho que a abstinência está ausente em boa parte da educação. Uma das coisas que tem sido equivocada de nossa educação é que nenhum tipo de valor de certo ou errado está sendo ensinado no processo educativo."

O início do mandato de Reagan coincide com a primeira política nascida no Congresso americano e executada pelo governo federal que, por tabela, financiou iniciativas pela abstinência.

Um projeto dos senadores Jeremiah Denton e Orrin Hatch logo apelidado de "Lei da Castidade" tramitou no Congresso e, com alterações, se transformou na lei Adolescent Family Life (AFL), de 1981.

Diferente do apresentado inicialmente pelos senadores, o texto final da lei não mencionava políticas de abstinência ou a palavra "castidade" ? citava sim, diretamente, a proibição do uso dessas verbas "com propósitos relacionados ao aborto". Poderiam receber repasses organizações trabalhando com educação e aconselhamento de adolescentes sobre contracepção, maternidade, planejamento familiar e adoção.

Mas, na prática, esta verba, controlada pela Departamento de Serviços Humanos e de Saúde (HHS, na sigla em inglês), financiou projetos de várias organizações religiosas, muitas cristãs, e que se orientavam pela ideia da "abstinence only" ("apenas abstinência"). Nesta abordagem, a castidade é apresentada como o comportamento esperado e padrão antes do casamento, muitas vezes omitindo informações sobre outras formas de proteção e contracepção. Há casos de campanhas que, inclusive, apresentam métodos como camisinhas e pílulas apenas para destacar sua possibilidade de falha.

Uma das iniciativas financiadas pelo AFL foi o projeto piloto do material pedagógico pela abstinência "Sex Respect" em dezenas de escolas de Illinois, desenvolvido por cinco anos pela organização Committee on The Status of Women com fundos federais desde 1985. O "Sex Respect" é autodenominado "O programa líder mundial em abstinência" e traz até hoje livros de orientação para alunos, professores e pais.

O financiamento do AFL a organizações religiosas fez entidades da sociedade civil acusarem o programa de atentar contra a laicidade do Estado e o direito dos adolescentes de receber uma educação sexual "abrangente" (orientada sobretudo por princípios científicos e menos por princípios morais, em contraposição à abordagem "abstinence only"), levando o caso à Suprema Corte. O tribunal declarou a constitucionalidade do programa em 1988, mas foram feitos ajustes visando coibir doutrinações religiosas.

Esta iniciativa governamental durou até o início dos anos 2000, com verbas variando entre US$ 1,4 milhão a US$ 30,4 milhões por ano, segundo um relatório do Congresso americano.

Mas seria em 1996, durante o governo do democrata Bill Clinton, que o Legislativo determinaria a criação do programa possivelmente mais explícito e unívoco quanto à abstinência de adolescentes até o casamento, nos moldes do conceito Abstinence Only Until Marriage (Abstinência até o Casamento, AOUM).

A lei sancionada por Clinton determinou um repasse anual de US$ 50 milhões, a partir de 1998 por cinco anos, aos Estados, que por sua vez escolheriam projetos sob a orientação de que "a abstinência da atividade sexual fora do casamento é o padrão esperado para crianças em idade escolar". Todos os projetos financiados eram obrigados a cumprir as chamadas "determinações de A-H", como "C - Ensinar que a abstinência da atividade sexual é a única maneira garantida de evitar gravidez fora do casamento, as doenças sexualmente transmissíveis e outros problemas de saúde associados".

O programa foi reformulado e rebatizado algumas vezes. Hoje, ele atende pelo nome de Sexual Risk Avoidance Education Program (Programa para Educação da Prevenção os Riscos Sexuais, em tradução livre) e não está mais atrelado diretamente às oito "determinações A-H". No site do departamento responsável, ele é definido como tendo o objetivo de ensinar a juventude a "voluntariamente abster-se da atividade sexual".

Em 2018, 37 Estados e territórios receberam verbas deste programa.

Programa no exterior de combate à Aids: ? de verbas para a abstinência

Ainda que seu governo tenha executado políticas pela abstinência, colocando-as na conta do Congresso ? o que não o blindou de críticas de grupos progressistas e pesquisadores ?, Clinton se posicionou, já como ex-presidente, contra este tipo de abordagem na educação sexual.

Em 2006, cinco anos após deixar o governo, o democrata afirmou em um encontro internacional sobre a Aids no Canadá que "as evidências apontam que programas focados unicamente na abstinência se mostram mal sucedidas". Ele criticava ações de cooperação dos EUA no exterior no combate às ISTs, outro ponto em que a agenda americana pela abstinência se impôs.

Criado em 2003 sob o governo do republicano George W. Bush, o programa President's Emergency Plan foi Aids Relief (PEPFAR) já injetou bilhões de dólares na prevenção e combate à Aids em 50 países. Entre 2006 e 2008, a legislação que orientava o programa especificava nominalmente que um terço das verbas na rúbrica da prevenção fossem para projetos de abstinência e fidelidade conjugal. Depois, essa exigência foi flexibilizada, mas investimentos nesse tipo de projeto continuaram.

Um estudo publicado em 2016 no periódico Health Affairs se dedicou a avaliar cinco indicativos de comportamento sexual em 14 países da África Subsaariana que receberam verbas do PEPFAR especificamente para a abstinência entre 1998 e 2013. Os cinco indicativos eram: número de parceiros sexuais no último ano para homens e mulheres; idade da primeira relação sexual para homens e mulheres; e gravidez na adolescência.

Na comparação com um grupo de oito países que não recebeu este tipo de financiamento, "não foram encontradas evidências de que estas verbas tenham sido associadas a qualquer redução nos cinco indicadores", afirmam os autores, da Universidade Stanford, dos EUA.

Carmen Barroso, cientista social brasileira com trajetória em instituições nacionais e internacionais voltadas à saúde reprodutiva, lembra que, com programas assistenciais sobretudo na África e Caribe, conservadores americanos conseguiram exportar um modelo mundialmente conhecido como estratégia ABC ? Abstinence, be faithful, use a condom, ou "Abstinência, seja fiel e use camisinha" (o uso desta terceira via seria desejável caso as anteriores não fossem cumpridas rigorosamente).

Os defensores da estratégia ABC costumam apresentar Uganda como um caso de sucesso, que viu a taxa de infecção por HIV reduzir de 15% no início dos anos 1990 para cerca de 5% nos anos 2000. Yoweri Museveni, presidente do país desde 1986, foi um grande entusiasta do modelo ABC.

"As organizações que recebiam verbas (americanas, em outros países) tinham que assinar um compromisso muito detalhado sobre o que seria ensinado. Era inclusive algo agressivo com a cultura local. Uma educação sexual integral baseada em valores, ajudando o jovem a formar sua própria ética, esclarecer dúvidas, discutir a questão do respeito com o parceiro, não era possível nessa programação que o governo americano estava promovendo ? impondo condições tanto com dinheiro quanto com restrições legais", aponta Barroso, destacando que apesar da pressão dos defensores da abstinência existir até hoje em fóruns internacionais, ela não conseguiu ser "legitimada" e predominar em instituições de referência no tema como a Unesco (agência da ONU dedicada à educação).

"Em princípio, a abstinência é uma opção sim, tão respeitável quanto qualquer outra. O que é um crime, uma imoralidade, é sonegar informações, ou apresentar essa opção como a única decente e moral", opina a pesquisadora brasileira.

Obama e Trump

Pesquisadores costumam apontar para o governo de Bush filho, que já deu declarações em apoio à abstinência como orientação preferencial para a educação sexual, como o período em que também programas domésticos de abstinência tiveram a maior fartura de investimentos.

"A abordagem do abstinence only foi impulsionada no mandato de Bush, e depois reduzida na gestão Obama (democrata). Agora, ela está sendo reintroduzida com Trump (republicano), quando o Senado é majoritariamente conservador, com o nome de 'redução do risco sexual', um eufemismo para a velha política do abstinence only", explicou por e-mail à BBC News Brasil Patricia Kissinger, epidemiologista especializada em ISTs e professora da Universidade Tulane, no Estado da Louisiana.

"Na verdade, o Senado tirou verbas de uma iniciativa do departamento de Saúde do Adolescente que promovia métodos de contracepção consolidados (cientificamente)".

Mas a sinalização de uma nova guinada durante do governo Trump veio não só do Congresso, mas também do próprio Executivo. Um dos principais nomes na defesa do ensino da abstinência, Valerie Huber, à frente da organização Ascend (antes conhecida como Associação Nacional pela Educação da Abstinência), foi alçada em 2017 a um cargo executivo no Departamento de Serviços Humanos e de Saúde, sob o qual estão várias políticas de educação sexual.

No governo Obama, até houve iniciativas em favor dos métodos "abrangentes" em detrimento do ensino de abstinence only, mas este ainda está presente em um dos símbolos da gestão do democrata, o Obamacare, reforma no sistema de saúde aprovada a duras penas no Congresso e sancionada em 2010.

A legislação do Obamacare foi destacada por, pela primeira vez, garantir fundos para uma educação sexual "baseada em evidências" através do programa Personal Responsibility Education Program (PREP). Mas a abstinência continua ali: "As iniciativas devem ter uma exatidão médica e colocar ênfase substancial tanto na abstinência quanto na contracepção para prevenir a gravidez e Infecções Sexualmente Transmissíveis".

O texto do Obamacare também renovou a garantia de fundos para um programa dedicado especificamente à abstinência, o State Abstinence Education Grant Program.

Fato é que, por particularidades dos EUA em sua administração territorial, Estados e escolas têm bastante autonomia para definir suas políticas e currículos.

Muitos territórios têm suas políticas próprias pela abstinência e, outros, rejeitam fundos federais para isso, como faz a Califórnia há anos com políticas de abstinence only. Juízes também já avalizaram ou derrubaram este tipo de programa em diferentes Estados e períodos.

A edição de 2015 do relatório governamental School Health Policies and Practices Study mostra que, nos EUA, em 37% das escolas (de todos os níveis) os professores eram instruídos a apresentar a abstinência como o método mais eficiente na prevenção à gravidez, Aids e outras ISTs. Na etapa do high school (nível próximo ao do ensino médio no Brasil), esse percentual chegou a 76%.

Um percentual abaixo, por exemplo, das 65,7% das escolas no nível de high school que declararam, através dos professores, instruir sobre a eficácia das camisinhas; ou como usar corretamente uma camisinha (35%).

Dados das Nações Unidas para 2017 mostram que a taxa de gravidez adolescente nos EUA é de 20 bebês para cada mil meninas com idade entre 15 e 19 anos. No Brasil, a taxa foi de 59, e a mundial, 42,4. Em todos esses recortes ? EUA, Brasil e mundo ?, as taxas diminuem ano a ano.

Ainda assim, os EUA tradicionalmente têm uma taxa de gravidez na adolescência maior do que o padrão dos países ricos.

"O declínio nas taxas de gravidez na adolescência que temos visto (nos EUA) é principalmente atribuível à disponibilização de métodos consolidados e confiáveis de contracepção", explica Kissinger. "Já em relação às ISTs, temos visto um aumento significativo no grupo dos adolescentes."

O que dizem cientistas sobre a abstinência

No papel, muitos programas federais pela abstinência exigiriam ao longo do tempo comprovação científica aos postulantes. Estes costumam apresentar resultados de projetos e experiências locais, como em determinadas escolas.

Mas grupos de especialistas, representados por associações médicas e afins, já se posicionaram formalmente a favor de abordagens abragentes ? em contraposição a políticas pela castidade, ainda mais aquelas mais absolutas, pautadas pela ideia de abstinence only.

Foi o caso da Sociedade para a Saúde e Medicina do Adolescente (SAHM, na sigla em inglês), que em 2017 publicou um posicionamento sobre isto, incluindo um resumo das evidências científicas em que se baseava.

A sociedade reconhece que "a abstinência de relações sexuais pode ser uma escolha saudável para os adolescentes", mas que estes jovens "devem decidir por eles mesmos quando estão prontos para começar a fazer sexo": "A escolha do adolescente pela abstinência sexual não deve nunca ser imposta".

A SAHM defende no documento que políticas de abstinence only têm sérias falhas científicas e éticas ? por exemplo, deixando à margem grupos como adolescentes já sexualmente ativos; que não se consideram heterossexuais; aqueles que já são pais; e vítimas de abusos sexuais. Destaca-se também que frequentemente defensores da castidade na adolescência apontam para os potenciais prejuízos emocionais com o sexo, "mas não foram encontradas evidências de que o sexo consensual entre adolescentes seja psicologicamente danoso".

O posicionamento traz também tendências demográficas mostrando que, em geral, mundialmente, o intervalo entre a primeira relação sexual e o primeiro casamento está cada vez maior ? também com "cada vez menos adolescentes esperando pelo casamento para a iniciação sexual".

"Ainda que em teoria sejam inteiramente promotoras de proteção, as intenções pela abstinência frequentemente falham, e a castidade não é mantida."

Um estudo publicado em 2012 no periódico American Journal of Preventive Medicine por 20 autores (incluindo alguns vinculados ao Centers for Disease Control and Prevention) é classificado pela sociedade como "a revisão mais abrangente da eficácia deste tipo de programa (abstinência)".

Neste trabalho, foram analisados estudos sobre 66 programas na linha "abrangente" e 23 pela abstinência nos EUA, e considerados sete indicadores, como índices de gravidez e ISTs. "Os resultados mostram efeitos favoráveis das abordagens abrangentes para a redução do risco em todos os indicadores. Para a educação pela abstinência, foi encontrado um pequeno conjunto de estudos, com resultados inconsistentes e variações de acordo com o desenho da pesquisa e o tempo de acompanhamento (...)", diz a publicação no American Journal of Preventive Medicine.

"O currículo para a educação sexual deve ser baseado em princípios científicos e evidências de pesquisas. Políticas governamentais (...) devem ser baseadas na ciência", conclui o posicionamento da Sociedade para a Saúde e Medicina do Adolescente.

A crítica das políticas de abstinência feita pela SAHM foi depois endossada por outra associação, a Sociedade Americana para Ginecologia Pediátrica e do Adolescente (Naspag), em uma nota de posicionamento conjunta sobre a gravidez na adolescência, publicada em dezembro de 2019.

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