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'Fazia faxinas para poder estudar': a história da ex-empregada doméstica que se tornou doutora

Vinícius Lemos - Da BBC News Brasil em São Paulo

17/01/2020 07h43

Simone Marasco trabalhou por quase oito anos como empregada doméstica e faxineira para que pudesse estudar.

Dois meses atrás, Simone Marasco, 34 anos, comemorou a conclusão do doutorado.

O fato fez com que ela relembrasse as dificuldades que enfrentou desde a infância para que pudesse estudar. Por cerca de oito anos, trabalhou como empregada doméstica e faxineira e se dividiu entre os livros e itens de limpeza. Hoje, se orgulha da sua história de vida. Em relato à BBC News Brasil, ela conta as dificuldades e humilhações que enfrentou até se tornar doutora.

Abaixo, leia o relato da história de Simone:

Durante a minha infância e adolescência, eu só pensava em estudar para mudar de vida. Sou filha de uma costureira e de um pedreiro, que sequer completaram o ensino fundamental. Morávamos na periferia de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Para ter dinheiro para comprar itens como materiais escolares, comecei a fazer diversos bicos desde cedo. Fui babá, entreguei salgadinhos e fui servente de pedreiro para o meu pai.

Quando terminei o ensino fundamental, deixei a minha escola na periferia para estudar em um colégio público na região central de Juiz de Fora. Mas havia um problema: eu não tinha dinheiro para pagar as passagens de ônibus para que pudesse me locomover diariamente ao novo colégio.

Os meus pais não tinham condições para me ajudar no transporte escolar. Por isso, procurei um trabalho fixo. Assim, me tornei empregada doméstica aos 14 anos, em uma casa próxima à região em que eu morava com a minha família.

Passei a me dividir entre o trabalho com serviços domésticos e os estudos. Para fazer atividades escolares, restavam somente as madrugadas.

Fiz o primeiro e o segundo ano do ensino médio em uma escola pública, na região central de Juiz de Fora. Eu trabalhava no período da manhã e da tarde. Saía do serviço e logo pegava o ônibus em direção à escola. No terceiro ano, estudei em uma escola particular, porque o colégio público onde eu estudava entrava muito em greve e eu queria ter uma boa preparação para o vestibular daquele ano.

Grande parte do meu salário como empregada doméstica passou a ser destinada à mensalidade da escola. Apesar de ser a caçula entre os meus irmãos, fui a primeira a concluir o ensino médio. Para me preparar para o vestibular, usava quase todo o meu tempo livre, em meio ao trabalho e escola. No meu quarto, cortava folhas com fórmulas importantes para que eu pudesse memorizar.

Depois de tanta dedicação, fui aprovada no curso de Letras na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com habilitação em português e latim.

Acesso ao ensino superior

Nas últimas décadas, o Brasil adotou políticas públicas de inclusão no ensino superior - como as cotas para pessoas de baixa renda familiar, oriundos de escola pública ou pardos e negros. Houve também as criações de financiamento estudantil, como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), e as concessões de bolsas parciais ou integrais na rede privada, por meio do Programa Universidade para Todos (ProUni).

Apesar das medidas, especialistas afirmam que o acesso à educação superior ainda é para uma minoria no país. De acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população de baixa renda tem atraso escolar quatro vezes maior que as pessoas com rendimentos maiores.

"Houve aumento no acesso ao ensino superior nas últimas décadas, com as políticas de expansão da educação superior e de ação afirmativa. Mas o percentual de alunos matriculados não é distribuído de maneira uniforme em termos de renda, cor e região do país", pontua a pesquisadora Rosana Heringer, doutora em Sociologia e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Os mais pobres são os que menos chegam ao ensino superior. Segundo Heringer, as razões para isso incluem desde a trajetória escolar, que muitas vezes tem um ensino fundamental e médio da pior qualidade, à entrada precoce - ainda no início da adolescência - no mercado de trabalho.

A universidade

Quando ingressei na universidade, ainda não haviam entrado em vigor políticas públicas de acesso ao ensino superior como as cotas para pessoas de baixa renda. Mesmo não tendo a oportunidade de recorrer à cota na minha época, sei que é uma medida muito necessária. É como se fosse um paliativo até que a educação básica seja equiparada (entre escolas públicas e privadas).

Na universidade, me encantei pela literatura latina, principalmente pela mitologia greco-romana. Por isso, decidi que queria trabalhar, principalmente, com o latim.

Durante a graduação, minha rotina de aprendizado continuou a mesma do ensino médio: estudar durante a madrugada. Enquanto as pessoas liam os textos para as aulas durante o dia ou no trabalho, eu não poderia deixar o banheiro cheio de água ou parar outra atividade para ler. Então, minha vida sempre foi estudar na madrugada. Dormia de quatro a seis horas por dia. Virar a noite sempre foi comum para mim.

No começo da graduação, mudei de casa e passei a trabalhar com uma nova família. Nesse novo trabalho, sofri muita humilhação. A avó do meu patrão guardava toda a comida do almoço na geladeira, pegava um pote com o almoço do dia anterior e dizia que eu deveria comer aquilo. Mesmo sobrando, ela não deixava que eu comesse a mesma comida que haviam almoçado naquele dia.

O meu prato, copo e talheres eram separados. Diziam que eu não poderia usar os mesmos itens da família. Me sentia como uma peça da casa. Esse era um dos principais motivos para que eu quisesse deixar de ser empregada doméstica o quanto antes. Passei pouco mais de um ano nessa casa.

Pouco após entrar na universidade, abandonei o serviço fixo como doméstica e me tornei diarista. Foi até mesmo uma forma para conciliar com a universidade, porque comecei a fazer algumas disciplinas durante a tarde.

Eu fazia as diárias nas casas de estudantes e de servidores da universidade. Um ia contanto para o outro sobre o meu trabalho e acabavam surgindo novos serviços. Eu estipulava os dias e horários em que poderia trabalhar, conforme as aulas de cada semestre.

Os meus principais clientes eram universitários, que me pagavam para fazer faxinas em repúblicas. Era uma função, muitas vezes, complicada, porque alguns jovens não me respeitavam, eu recebia cantadas e chegaram a tentar me agarrar.

Mesmo com dificuldades, nunca pensei em parar de fazer faxinas. Era a única forma que eu tinha para comprar os materiais necessários para a universidade e pagar o meu próprio almoço. Nem sempre eu tinha dinheiro para comer e, por isso, uma professora costumava me ajudar. Ela sabia das minhas dificuldades, então me chamava para fazer faxinas e também me levava para almoçar em sua casa. Um dos pontos positivos em ter sido diarista é que conheci pessoas incríveis nesse período.

Aos 21 anos, concluí a graduação. Ainda continuei trabalhando como diarista, pois estava desempregada. Na época, fiz um processo seletivo e fui aprovada no mestrado em estudos literários, com foco na literatura latina, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte.

Juntei dinheiro e me mudei para Belo Horizonte. Fiz o mestrado na UFMG por um ano. Na época, não consegui nenhum tipo de bolsa para me ajudar financeiramente. Por isso, precisei me dividir entre os estudos e algumas faxinas. Mas consegui poucos trabalhos como diarista naquela região, pois conhecia poucas pessoas.

Quando estava na metade desse mestrado, o pouco dinheiro que eu tinha foi levado durante um assalto. Não tive condições financeiras para me manter em Belo Horizonte e voltei para Juiz de Fora. Eu ainda planejava concluir o mestrado na capital, mas a minha orientadora da época me desestimulou. Ela me disse que eu deveria escolher entre trabalhar ou estudar, porque eu deveria me dedicar totalmente aos estudos. Eu expliquei que não tinha bolsa na universidade, então precisava trabalhar, porque senão poderia até ficar sem comer. Mas ela não entendeu. Por fim, desisti desse primeiro mestrado.

Nesse mesmo ano, me tornei professora substituta na UFJF. O contrato era de dois anos. A partir de então, abandonei a função de diarista.

O salário como professora era quatro vezes maior do que o que eu ganhava com faxinas. Com o primeiro salário, reformei o telhado da casa dos meus pais (hoje já falecidos). Chovia muito dentro de casa e ajudá-los. Para mim, isso foi a minha independência. Apesar de ter começado a trabalhar cedo, aquele momento foi a primeira vez em que vi que poderia fazer algo para ajudar meus pais.

Comecei a namorar. Meu companheiro, que hoje é meu marido, cursava física na UFJF. Ele passou em um concurso público para lecionar em Volta Redonda (RJ). Eu disse que me mudaria com ele somente se eu fosse aprovada e conseguisse bolsa em um mestrado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Fiz a prova e fui selecionada para o mestrado na UFRJ, com bolsa. Me mudei para Volta Redonda com o meu companheiro. Em uma motocicleta, percorria quase diariamente os cerca de 130 quilômetros que separam Volta Redonda, onde morávamos, e a capital do Rio de Janeiro.

Quando concluí o mestrado, logo comecei o doutorado em letras clássicas, onde também consegui bolsa para me manter.

Pós-graduação

De acordo com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no Brasil havia, até o fim do ano passado, 131,6 mil pessoas matriculadas em mestrados e 114,8 mil matriculados em doutorados - os dados correspondem a diferentes áreas de estudos.

Em 2019, segundo a Capes, foram destinadas 95 mil bolsas divididas entre mestrado (R$ 1,5 mil cada bolsa), doutorado (R$ 2,2 mil) e pós-doutorado (R$ 4,1 mil) no Brasil.

A Capes afirma que concede bolsas de estudo para estimular a "formação de recursos humanos de alto nível, consolidando assim os padrões de excelência imprescindíveis ao desenvolvimento do Brasil." Em 2019, a entidade anunciou contingenciamento de despesas e cortou mais de 11 mil bolsas de diferentes áreas. O fato causou revolta e especialistas disseram que traria graves prejuízos à pesquisa no país.

Posteriormente, a Capes anunciou gradativamente, ao longo do ano passado, a retomada das bolsas. No fim do ano, segundo a entidade, todas haviam sido retomadas, após liberação total dos R$ 3, 98 bilhões que eram aguardados para 2019.

Diretora de avaliação da Capes, Sônia Báo ressalta que as bolsas são fundamentais para que muitos pesquisadores e estudantes consigam continuar com suas atividades. Apesar de não haver dados específicos sobre o tema, ela afirma que nos últimos anos houve aumento no número de pessoas com menor renda na pós-graduação.

"As políticas, atualmente, iniciam-se no acesso ao ensino superior uma vez que 50% das vagas da Universidades Públicas são destinadas aos estudantes provenientes de escolas públicas (cotas sociais). Este é um início para que a carreira acadêmica possa ser seguida. No entanto, seguir a carreira acadêmica envolve outros aspectos, onde destaco a paixão pelo ensinar e fazer pesquisa", afirma Sônia.

Para as pessoas de baixa renda que não conseguem bolsas, muitas vezes torna-se impossível concluir uma pós-graduação, segundo estudiosos. Um dos principais motivos é que essas áreas costumam exigir dedicação quase exclusiva do acadêmico e podem impedi-lo de ter um emprego fixo. "Tive estudantes de pós-graduação em com rendas menores que tiveram dificuldades de acompanhar e concluir o curso, principalmente em função das dificuldades econômicas", declara Rosana Heringer.

Depois de formados, um dos dilemas enfrentados por muitos que concluem o mestrado ou doutorado é a busca por um emprego na área. "Hoje existe um maior acesso aos cursos de pós-graduação e, por consequência, um número maior de concluintes. Não é possível generalizar, pois em muitas áreas os recém mestres e recém doutores são demandados e há mais oportunidades. Mas, em outras áreas, onde há menor demanda por profissionais com esta qualificação, é mais difícil para mestres e doutores conseguirem se inserir no mercado de trabalho em ocupações correspondentes ao seu nível de formação", explica Rosana Heringer.

"Temos visto muitos doutores que terminam por trabalhar em atividades que exigem menor qualificação, situação relacionada também à crise do mercado de trabalho brasileiro. Dada esta precariedade no mercado de trabalho acredito que para muitos profissionais a situação é mais difícil hoje", acrescenta Heringer.

'As bolsas foram fundamentais'

Em novembro passado, concluí o doutorado. Somente terminei o mestrado e o doutorado porque tive bolsas. Não conseguiria essa formação se não fossem esses auxílios. Não considero que minha história seja exemplo de meritocracia, pois sei que sou o que sou porque tive acesso a políticas públicas voltadas para a educação. Existiria meritocracia se todas as pessoas tivessem as mesmas oportunidades e o mesmo modo de vida.

Entre as pessoas que tinham mesmo estilo de vida que o meu, poucas conseguiram concluir a graduação.

Agora que concluí o doutorado, estou em busca de um emprego como professora de latim. A grande dificuldade é que não se dá aula de latim em qualquer lugar. Mas seguirei tentando. Porém, não descarto, daqui a algum tempo, se nada aparecer, atuar em outras áreas, talvez como professora de português. Por enquanto, tenho administrado uma loja de produtos geeks em Volta Redonda, que é do meu marido e um sócio dele.

Hoje me divido entre o trabalho na loja e os cuidados com a minha filha, de três anos. Quero que ela entenda a importância do estudo e tenha uma infância mais tranquila que a minha. Porque quando eu era criança e adolescente, nunca tive tempo para grandes aspirações. Só imaginava que o estudo era a única forma de mudar a minha realidade.

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