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Coronavírus: 'Foco da imprensa em número de mortes e falta de proteção amplia medo geral', diz especialista

Rápida disseminação da doença levou a Itália a decretar quarentena em todo o país - Reuters via BBC
Rápida disseminação da doença levou a Itália a decretar quarentena em todo o país Imagem: Reuters via BBC

Daniel Buarque -

De São Paulo para a BBC News Brasil

11/03/2020 08h38

Avaliação é de Paul Slovic, professor da universidade de Oregon, nos EUA; para ele a imprensa deveria dar ênfase à informação de fatos como o de que 98% dos casos são brandos.

A preocupação global com a pandemia do novo coronavírus está gerando impactos nos mercados internacionais e uma onda de tomadas de decisões drásticas por governos em diferentes partes do mundo nos últimos dias.

O medo da propagação da doença em larga escala levou a Itália a determinar uma quarentena em todo o país nesta semana. Nos Estados Unidos, um navio com milhares de pessoas foi mantido longe do porto na Califórnia por transportar portadores do vírus, enquanto o festival South by Southwest foi cancelado.

No Brasil, onde há 34 casos confirmados da doença, o governo anunciou medidas para testar mais pacientes suspeitos de terem covid-19. Ao confirmar os primeiros casos do coronavírus no Brasil no fim de fevereiro, entretanto, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse não haver motivo para pânico.

Para Paul Slovic, especialista em percepção de risco, as pessoas em todo o mundo realmente têm motivo para estarem preocupadas com a doença e os governos têm razão em tomar medidas de precaução.

O grande problema, ele explica em entrevista à BBC News Brasil, é que a pandemia de coronavírus está cercada de uma forte sensação de falta de controle e há pouca informação sobre como evitar que a doença continue se propagando.

"A preocupação que as pessoas e os governos estão demonstrando não parece exagerada. As autoridades precisam realmente tomar precauções. Mas saber qual é a decisão correta a tomar não é totalmente claro dado o fato de que ainda não sabemos muito bem o quanto esta doença vai se espalhar, ou como podemos controlar a contaminação", disse.

Presidente da ONG Decision Research, especializada em estudos sobre processos de tomada de decisão e julgamento, Slovic é professor da universidade de Oregon, nos EUA, e um dos maiores pesquisadores sobre percepção de risco, saúde e política no mundo, com mais de 40 anos de experiência na área.

Ele também é autor de algumas obras fundamentais de estudos de risco, como os livros "Perceptions of Risk e The Feeling of Risk" ( "Percepções de Risco" e "O Sentimento de Risco", ambos sem edição no Brasil).

Com tom crítico, Slovic alega que a forma como a mídia global está tratando a pandemia, com foco no aumento do número de casos e na falta de uma vacina ou tratamento, aumenta essa sensação de medo.

Para o professor, a propagação de notícias falsas, que chegou a ser chamado de "infodemia" faz parte de um processo de "destruição da verdade", que torna a sensação de risco ainda mais grave.

"Se não podemos confiar mais nas fontes de informação, isso é um problema gigante", explicou.

Segundo ele, a melhor forma de "vacinar" as pessoas contra reações exageradas e medo é apostar na divulgação de informações confiáveis sobre como evitar a contaminação.

Especialista - Arquivo Pessoal via BBC - Arquivo Pessoal via BBC
Paul Slovic, professor da universidade de Oregon
Imagem: Arquivo Pessoal via BBC

"É preciso ter informação para controlar o risco. Controle é um fator central na forma como as pessoas lidam com risco."

"O fundamental é saber se é possível se proteger e proteger sua família e amigos, saber se o governo está preparado para lidar com o problema. Tudo isso depende de informações confiáveis. Se não podemos confiar nas informações, isso reduz ainda mais o senso de controle das pessoas, o que faz a percepção de risco piorar bastante, criando pânico generalizado e fazendo as pessoas agirem de forma equivocada", disse.

Leia abaixo a entrevista completa.

BBC News Brasil - O Brasil confirmou os primeiros casos de coronavírus no fim de fevereiro, em São Paulo, e já tem registro de contaminação interna. Há motivo para as pessoas no Brasil ficarem preocupadas?

Paul Slovic - Há uma preocupação generalizada. Neste momento, as pessoas em São Paulo aparentam estar em uma situação de risco muito baixo.

Acho que as pessoas têm motivo para estarem preocupadas com o problema de forma geral, porque não sabemos o quanto a doença vai se espalhar no longo prazo. Mas na sua situação, em uma cidade com tantos habitantes e poucos casos confirmados, eu diria que a probabilidade é muito pequena. Há tantas outras coisas que deveriam gerar mais preocupação no cotidiano.

BBC News Brasil - O que explica essa preocupação?

Slovic - Há muita cobertura da imprensa em todo o mundo, o que é assustador.

Tenho falado com jornalistas, e eles me perguntam por que as pessoas estão reagindo de forma exagerada. Eu explico que isso acontece porque as notícias que estamos recebendo são assustadoras. As notícias estão enfocando o aumento do número de lugares em que a doença está aparecendo, o fato de haver cada vez mais casos e mais mortes do que no dia anterior. É isso que estamos ouvindo.

O foco não está no fato de que a maioria das pessoas que está adoecendo tem casos bem mais fracos, e muitas pessoas nem têm sintomas. Mas as notícias enfocam apenas novos países, novos casos e novas mortes. O foco da cobertura está no fato de que as pessoas não podem se proteger com vacinas, e que a doença está se espalhando sem que a população possa se proteger. Tudo isso gera preocupação e é por isso que as pessoas estão com medo.

Acho que não devemos ser críticos e achar que as pessoas estão reagindo de forma exagerada, pois as notícias que elas estão recebendo são assustadoras. Dito tudo isso, eu não me preocuparia com a situação em São Paulo atualmente.

BBC News Brasil - O senhor acha que as pessoas estão reagindo de forma exagerada, como têm perguntado em entrevistas?

Slovic - É difícil julgar isso. Dizer que as pessoas estão reagindo de forma exagerada seria o mesmo que indicar qual é a reação correta. As pessoas estão preocupadas, e acho que esta é uma reação normal dado o que estamos vendo no noticiário.

Em um caso extremo, se uma pessoa decidir não sair de casa por um mês para garantir que não vai ter contato com ninguém que possa ter a doença, aí, sim, eu diria que é uma reação exagerada. Algumas coisas podem ser vistas como exagero. Mas acho que a preocupação que as pessoas e os governos estão demonstrando não parece exagerada. As autoridades precisam realmente tomar precauções.

Mas saber qual é a decisão correta a tomar não é totalmente claro dado o fato de que ainda não sabemos muito bem o quanto esta doença vai se espalhar, ou como podemos controlar a contaminação. Aparenta fazer sentido que algumas coisas sejam restritas, ou que as pessoas sejam aconselhadas a não ir a eventos públicos com muita gente, ou não viajar para alguns países, ou mesmo lavar bem as mãos. Estas são precauções gerais que são divulgadas à medida que esta doença está se espalhando e mata as pessoas.

BBC News Brasil - Você mencionou a imprensa algumas vezes. Acha que há uma reação exagerada dos jornalistas? Como a imprensa deve se comportar para evitar assustar a população?

Slovic - A imprensa precisa trabalhar muito próxima das autoridades de saúde de cada país e conhecer a mensagem que o governo pretende passar à população, a fim de ser o mais correto e exato nas informações, sem assustar demais as pessoas.

Neste momento, precisamos confiar nas autoridades. As autoridades estão deixando claro que a maior parte dos casos de coronavírus é suave, então a mídia precisa dar ênfase a isso. É preciso relatar que 98% dos casos são fracos, e dar atenção especialmente a grupos que são mais vulneráveis a esta doença, como os idosos ou pessoas que têm problemas imunológicos.

Se o governo indica que pessoas saudáveis não têm motivos para se preocupar, então a mídia precisa dizer isso.

BBC News Brasil - Em uma entrevista à American Psychological Association em 2015, o senhor falou sobre os riscos e sobre a preocupação global com o ebola. O artigo publicado na época falava em uma "epidemia de medo". Acha que o que aconteceu em termos de percepção de risco naquela época com o ebola, ou o que aconteceu com o H1N1, Sars ou outra epidemia assim pode ser comparado ao que estamos vendo atualmente com o coronavírus?

Slovic - Essa é uma boa pergunta. Seria preciso comparar as estatísticas mais detalhadamente. Mas ebola e Sars são casos bem diferentes por serem doenças em que as pessoas contaminadas tinham doenças mais graves, mas que todos tinham uma maior noção de como evitar.

O problema hoje é que se trata de uma doença mais invisível, e que não sabemos nem quando uma pessoa pode estar contaminada ou não. E isso reduz a sensação de controle.

Uma das coisas mais importantes em relação à forma como reagimos a riscos é a sensação de controle que podemos ter, ou o quanto as autoridades e governos podem ter capacidade de controlar a doença.

No nível pessoal, não temos muitas formas de controlar e evitar o contágio. Isso torna a situação atual mais preocupante. Além disso, não há uma vacina para proteger a população. Os mecanismos de controle são limitados.

Fala-se sobre reduzir contato com pessoas, não ir a eventos com multidão, evitar alguns países ou lavar as mãos. Isso não parece um mecanismo de controle muito forte, mesmo que as autoridades indiquem isso como sendo importante. Gostaríamos de ter mais formas de controlar a doença, mas não temos, então há maior preocupação.

Isso também piora porque quando vemos pessoas contaminadas sendo tratadas, os profissionais médicos usam trajes de proteção que os cobrem completamente. Isso também passa uma mensagem de maior perigo. As imagens que estamos recebendo da mídia são assustadoras.

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BBC News Brasil - Mais cedo eu perguntei sobre como a imprensa deveria agir diante de uma epidemia assim. Mas e os governos? Como as autoridades devem agir para evitar criar preocupações exageradas na população, quando elas próprias não conhecem o tamanho real do risco?

Slovic - A primeira coisa é que o governo deve estar pronto para testar a população e saber quem realmente está contaminado. Além disso, é preciso garantir que os trabalhadores médicos tenham proteção para oferecer tratamento aos contaminados.

Estes são os primeiros passos. Se o governo conseguir passar uma noção mais clara sobre o risco da doença, então parece haver uma forma mais clara de controlar a epidemia. A ideia de colocar um navio inteiro em quarentena, como está acontecendo, não parece uma boa ideia, pois talvez todo mundo ali adoeça.

Mas também é perigoso deixar que milhares de potenciais contaminados entrem no país e espalhem ainda mais a doença de forma descontrolada. O governo precisa demonstrar que está tentando controlar a epidemia.

BBC News Brasil - O senhor tem estudado questões sobre percepção de risco há 40 anos, e mencionou há pouco a importância de ter confiança no governo. Atualmente, entretanto, vivemos uma situação diferente do passado, com a divulgação crescente de notícias falsas, propagação de boatos por redes sociais - há até pessoas que evitam vacinar crianças contra outras doenças. Quanto esse clima de desconfiança faz com que o coronavírus tenha uma situação diferente dos casos do passado?

Slovic - Fica muito mais difícil lidar com o risco. A destruição da verdade é algo terrível que está acontecendo atualmente.

Não só por conta do coronavírus, mas por várias outras questões no mundo. Se não podemos confiar mais nas fontes de informação, isso é um problema gigante. As mídias modernas e a possibilidade de falsificar informações, fotografias, vídeos, é um problema gigante. Não tenho uma resposta para como lidar com isso, mas é evidente que afeta.

Atualmente acho que a maioria das pessoas está atenta às autoridades e informações oficiais, não vi muito sobre notícias falsas ligadas ao coronavírus. Acima de tudo, precisamos encontrar fontes de informações em que possamos confiar.

Nos EUA, temos o CDC, e imagino que o Brasil tenha algo semelhante, em que se possa confiar. É preciso estar alerta sobre o risco de mensagens falsas, mas é muito difícil evitar que elas se espalhem.

BBC News Brasil - Essa situação muda a noção de como lidar com a percepção de risco que as pessoas têm? As pessoas passam a achar que o risco é maior do que realmente é?

Slovic - Sim, absolutamente. É preciso ter informação para controlar o risco. Controle é um fator central na forma como as pessoas lidam com risco.

O fundamental é saber se é possível se proteger e proteger sua família e amigos, saber se o governo está preparado para lidar com o problema. Tudo isso depende de informações confiáveis. Se não podemos confiar nas informações, isso reduz ainda mais o senso de controle das pessoas, o que faz a percepção de risco piorar bastante, criando pânico generalizado e fazendo as pessoas agirem de forma equivocada.

BBC News Brasil - Em 2000, em " Perception of Risk" , o senhor escreveu um capítulo sobre a relação entre percepção de risco e democracia. Considerando a divulgação de notícias falsas e a crescente polarização em países como os Estados Unidos e o Brasil, de que forma uma epidemia como o coronavírus pode criar impactos políticos?

Slovic - Sim. Confiança e democracia estão fortemente conectadas e certamente influenciam questões de saúde. Aqui nos Estados Unidos estamos profundamente divididos.

O governo republicano atual não parece se preocupar o suficiente com o público e não trabalha de forma eficiente para proteger a população ou oferecer um bom acesso a tratamentos de saúde.

Além disso, há crescente desigualdade e pobreza, temas que são muito politizados e que afetam o tratamento de saúde da população e forma geral. Certamente um bom governo é fundamental para ter uma boa saúde no país, e as pessoas reconhecem o fato de que elas estão vulneráveis.

Ainda assim, há pessoas que acreditam no discurso do presidente Trump de que ele se preocupa com elas, pois isso passa uma sensação mínima de segurança. De forma geral, as pessoas estão muito vulneráveis.