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Bolsonaro e Trump radicalizam: as semelhanças entre os líderes na pandemia de coronavírus

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e o presidente dos EUA, Donald Trump, durante jantar na Flórida - Jim Watson/AFP
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e o presidente dos EUA, Donald Trump, durante jantar na Flórida Imagem: Jim Watson/AFP

Mariana Sanches e Matheus Magenta

Da BBC News Brasil em Washington (EUA) e em Londres (Reino Unido)

20/04/2020 18h05

No mesmo fim de semana em que o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, compareceu a uma manifestação a favor da ditadura militar e, em discurso em cima de uma caçamba de caminhonete —sem microfone—, gritou "não queremos negociar nada", o mandatário americano Donald Trump incentivou carreatas por todo o país de manifestantes que bradavam "Liberate" ("Libere") e "Free Land" ("Terra livre"), contra as medidas de isolamento social impostas pelos poderes estaduais para tentar conter a epidemia de coronavírus.

Nos últimos dias, tanto Trump quanto Bolsonaro colocaram em prática um desafio ao establishment político ao falar diretamente com seus apoiadores - pessoalmente ou via redes sociais - e jogar sua base popular contra os governadores e contra os líderes do Congresso, acusados pelos presidentes de fazer politicagem em vez de atender às necessidades da população.

Trump tem atacado a líder da Câmara dos Deputados, a democrata Nancy Pelosi, enquanto o presidente brasileiro direcionou suas baterias para Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara em Brasília.

"Os dois são líderes populistas. Acuados, Bolsonaro e Trump radicalizaram seus discursos em direção à sua base de apoio, para fortalecê-las", afirmou à BBC News Brasil a cientista política americana Amy Erica Smith, professora da Iowa State University e autora do livro Religião e Democracia Brasileira: Mobilizando o Povo de Deus (2019, Cambridge University Press).

Ela reconhece, no entanto, que Bolsonaro foi além do americano em sua retórica política, ameaçando as bases da própria democracia brasileira, ao fazer um discurso contra as instituições às portas de um quartel, em Brasília.

"Bolsonaro se formou politicamente na ditadura, e a possibilidade de uma ditadura militar ainda está muito presente na imaginação das pessoas, especialmente naquelas pra quem ele fala. Eu diria que, por isso, ele pode ir mais longe no Brasil do que Trump nos Estados Unidos. Aqui não há memória de ditadura e nem há grupo organizado que queira um golpe", afirma Smith.

Mas os cientistas políticos também se preocupam com os Estados Unidos. "Não que achemos provável um golpe militar. Mas a retórica de Trump parece flertar com a ideia de rebelião armada de cidadãos", acrescenta Smith, em referência aos estímulos que Trump tem dado para que cidadãos desobedeçam as ordens de restrição e "libertem" seus Estados.

Embora tenha subido alguns tons a mais do que o americano no fim de semana, os cientistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil concordam que Bolsonaro não abandonou a cartilha ideológica de ações populistas que ele compartilha com Trump. Por diferentes motivos, e em diferentes graus, os dois mandatários decidiram que era a hora de acelerar a retórica nos últimos dias.

"Bolsonaro está institucionalmente isolado: não tem relações com o Congresso, com o STF, com governos estaduais, com quase nenhum partido (nem a partido está filiado). Além disso, seu eleitorado o aprova mais quanto mais ele polariza. Ele tem quase nada a perder, pode ir para o tudo ou nada", avalia o cientista político Carlos Melo, do Insper.

Depois de acumular desgastes até mesmo com seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, demitido na semana passada, o presidente brasileiro elevaria o tom para manter sua base de sustentação coesa e afastar o risco de, segundo sua própria avaliação, sofrer um processo de impeachment pelo Congresso.

"Parece que a intenção é me tirar do governo", disse Bolsonaro em entrevista à rede de TV CNN Brasil, na semana passada.

Já Trump enfrentará as urnas, em pouco mais de seis meses, buscando a reeleição. Ele teme que os números da epidemia que, com quase 800 mil casos e mais de 35 mil mortes, transformaram os Estados Unidos no país mais atingido do mundo, e a recessão que virá com a crise de saúde pública acabem com suas chances.

Isso explicaria, na visão de analistas, a tentativa de reabrir a economia e de jogar a população contra outros atores políticos que possam ser culpados pelo mau desempenho da nação em meio à crise.

"Trump está relativamente numa posição melhor, sustentado por um grande partido (Republicano) e sem qualquer ambiente institucional para tentar um ataque do tipo que o Bolsonaro fez", diz Melo.

Dois presidentes sincronizados

As semelhanças das ações nos últimos dias não destoam do histórico recente de ações quase que sincronizadas entre os dois líderes.

"É uma gripezinha."

"A cura não pode ser pior do que a doença."

"Temos recebido notícias positivas sobre a cloroquina."

"O país não pode ficar fechado."

Nos últimos três meses, Trump e Bolsonaro disseram frases quase idênticas - leves variações das escritas acima - sobre o coronavírus e o combate à pandemia que já causou 2,2 milhões de infecções e 150 mil mortes.

Ambos minimizaram o tamanho do problema, brigaram com seus auxiliares médicos, agiram contra a orientação de paralisar a economia para impedir o espalhamento do vírus, entraram em disputa de poder com os governadores estaduais, mencionaram descrédito em relação às informações da China sobre a epidemia, questionaram orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e, mesmo sem estudos conclusivos, promoveram a cloroquina como cura para doentes de covid-19.

Em maior ou menor grau, ambos voltaram atrás em suas palavras algumas vezes no decorrer da crise, com Trump normalmente mais moderado e Bolsonaro, alguns tons acima. Segundo os cientistas políticos, é um equívoco supor que Bolsonaro imita Trump, como pode parecer à primeira vista.

"Existe uma clara aproximação da extrema direita americana e da extrema direita brasileira. A matriz de pensamento dos dois líderes é a mesma: por um lado Steve Bannon, por outro Olavo de Carvalho. Não é uma questão de mimetismo, é uma questão de identidade entre um e outro", afirma o cientista político Carlos Melo, do Insper, que menciona o ex-assessor de Trump, Bannon, e o guru do Bolsonarismo, Carvalho, radicado no estado da Virgínia (EUA).

"É difícil falar em imitação porque tanto Trump quanto Bolsonaro têm influências muito semelhantes, estão imersos nas guerras culturais alimentadas por essa direita cuja base está na internet e que tem fornecido essas respostas que estamos vendo ambos usarem na pandemia", afirmou Smith à BBC News Brasil.

Em ser perfil no Twitter, Olavo de Carvalho já chegou a questionar até a existência da pandemia de coronavírus e a dizer que a "crise do coronavírus é usada para avançar uma das principais agendas do globalismo: a destruição da instituição familiar".

Assíduo comentarista, ele questiona as credenciais científicas da OMS ("Mais dia, menos dia, a OMS vai obrigar os punhet*iros a usar camisinhas, para evitar que se contaminem a si mesmos"), ataca a China ("só um perfeito idiota pode imaginar que a disseminação do vírus chinês no mundo foi um acidente").

Já Steve Bannon tem adotado uma postura pública cautelosa em relação ao problema: além de reconhecer a gravidade da epidemia, ele defendeu, em comentários à rede de televisão Fox News, uma quarentena total para conter o contágio, apesar dos custos econômicos altos da medida.

Mas os perfis de internet normalmente alinhados ao assessor também culpam a China e questionam as orientações médicas da OMS, além de acusar os opositores de Trump de explorar a crise de saúde pública para prejudicá-lo na eleição presidencial de novembro.

Segundo Smith, além da cartilha ideológica, as semelhanças entre o discurso de Trump e Bolsonaro saltam aos olhos porque ambos compartilham o mesmo estilo político.

"São líderes populistas, que tendem a mobilizar diretamente os seus apoiadores em uma forma de comunicação que lembra uma campanha infinita. Ambos têm um desejo por soluções rápidas e as vocalizam, mesmo que elas não sejam corretas. E nomeiam rápido outros culpados, que não eles, por crises em seus países. Confiam mais em sua própria intuição do que na palavra de especialistas, e isso vale para médicos, inclusive", diz a cientista política.

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil analisaram as similaridades nos discursos dos dois presidentes no transcorrer da crise ponto a ponto.

'É só uma gripe'

Em 26 de fevereiro, quando os Estados Unidos registravam 53 pessoas infectadas e nenhuma morte, Trump afirmou a jornalistas na Casa Branca: "É como uma gripe".

Ele repetiria a afirmação algumas vezes, inclusive fazendo comparativos de dados entre vítimas do covid-19 e a gripe convencional. Cinquenta dias depois de Trump dizer essa frase, os EUA registravam mais de 750 mil infectados e quase 36 mil mortos.

No dia 20 de março, em coletiva de imprensa, Bolsonaro foi questionado se divulgaria os resultados de seus exames para coronavírus.

Em sua resposta, ele desviou da pergunta e afirmou: "Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar, não". Em pronunciamento à nação, em 24 de março, repetiu o termo "gripezinha". O Brasil já tem mais de 40 mil casos e 2,8 mil mortes.

Tecnicamente, o argumento de que o novo vírus tem mortalidade equivalente à da gripe sazonal não se sustenta quando se examina os dados.

A taxa de mortalidade do covid-19 varia de um país para outro, mas estima-se que ela seja em média de 2%. A gripe mata 0,1%, segundo estima o governo americano.

O número de pessoas que morreram por coronavírus até agora no Brasil (mais de 2 mil) já superou o total de mortes pelos três principais vírus de gripe em 2019 (1,1 mil pessoas), segundo dados do Ministério da Saúde.

O mesmo deve acontecer nos próximos dias nos Estados Unidos, que contabilizou 37 mil óbitos por gripe em todo o ano passado. O coronavírus já vitimou 35 mil pessoas apenas entre janeiro e abril no país.

Segundo o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, quando Bolsonaro "fala de gripezinha, é o linguajar dele, busca passar certo grau de confiança para a população. Aí a turma fica com raiva e quer pular na jugular dele".

Ao mesmo tempo, ambos acusaram a imprensa profissional de disseminar pânico ao fazer a cobertura da pandemia. Desde janeiro, Trump já vinha creditando a responsabilidade pelo alarme em relação ao coronavírus à "mídia de fake news".

O mesmo fez Bolsonaro, em 24 de março. Ao mencionar a cobertura da epidemia na Itália, ele disse: "um cenário perfeito, potencializado pela mídia, para que uma verdadeira histeria se espalhasse pelo nosso país".

De acordo com Carlos Melo, lideranças populistas tendem a minimizar as crises sob sua gestão e maximizar os problemas alheios. "Até porque esses líderes têm dificuldades em gerenciar situações graves, coordenar os diversos gabinetes para determinar as ações, eles procuram empurrar o problema para debaixo do tapete", afirma o cientista político.

Cloroquina como cura, vacina pronta em meses

Tanto Trump quanto Bolsonaro compartilharam informações falsas sobre assuntos relacionados à epidemia. Em 28 de janeiro, o americano postou um texto falso que dizia que a empresa Johnson & Johnson estaria trabalhando em uma vacina contra o coronavírus.

Em 10 de fevereiro, em um pronunciamento, Trump disse que a primavera acabaria com o problema. "Parece que em abril, com o calor, a doença milagrosamente desaparece". Na realidade, abril tem sido o mês de pico da epidemia nos Estados Unidos e não existem estudos científicos que comprovem que o novo coronavírus tenha dificuldade de se disseminar em clima quente.

Em 26 de fevereiro ele sugeriu que seria uma questão de poucos meses para que os americanos tivessem uma vacina contra a doença. Foi desmentido na sequência pelo diretor do Centro de Prevenção e Controle de Doenças do governo, o médico Anthony Fauci, que reconheceu que uma imunização levará mais de um ano para ficar pronta - em uma perspectiva otimista, meados de 2021.

Em 21 de março, Trump tuitou: "HIDROXICLOROQUINA E AZITROMICINA, juntos, têm uma chance real de transformar a história da medicina. Espero que ambos sejam colocados em uso IMEDIATAMENTE. AS PESSOAS ESTÃO MORRENDO, MOVAM-SE RAPIDAMENTE E DEUS ABENÇOE A TODOS!".

Com isso, ele insinuava que havia uma cura para a covid-19. Na verdade, a Agência Reguladora de Alimentos e Medicamentos (FDA, na sigla em inglês) tinha apenas autorizado testes com as drogas, não liberado seu uso amplo, como Trump levava a crer por suas palavras.

O tratamento de pacientes com coronavírus usando cloroquina, ou sua variante hidroxicloroquina, um antiviral para combater malária, e o antibiótico azitromicina, é apenas experimental e está em testes. Não há comprovação científica de que a combinação dessas drogas possa mesmo salvar alguém acometido de covid-19.

Já Bolsonaro chegou a ter um vídeo seu apagado de seus perfis no Twitter, Facebook e Instagram porque, de acordo com as empresas, ele violava as políticas de uso da plataforma ao compartilhar informação falsa que poderia colocar a vida das pessoas em risco.

No vídeo, postado no dia 29 de março (uma semana depois da manifestação de Trump), Bolsonaro afirmava: "Aquele remédio lá, hidroxicloroquina, está dando certo em tudo quanto é lugar, certo? Um estudo francês chegou para mim agora".

Essa foi apenas uma das manifestações do presidente favoráveis à aplicação da cloroquina em larga escala nos hospitais do país, um dos combustíveis da desavença entre ele e seu ex-ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Em sua conta no Twitter, no último dia 12, Bolsonaro retuitou a mensagem de um apoiador, que ironizava: "Se Bolsonaro ou Trump dissesse que a Cloroquina faz mal, a mídia apoiaria a Cloroquina. Se dissessem que o oxigênio faz bem, mandariam prender a respiração".

"Nesse caso, acredito que Bolsonaro tenha deliberadamente se inspirado em Trump. Há, claro, uma influência", afirma Smith, que continua: "Tanto a cloroquina quanto a vacina pronta em meses são exemplos do desejo por consertos rápidos e fáceis para uma crise".

Melo concorda: "O líder populista dá às pessoas o que elas querem: uma solução rápida para um problema iminente. Ainda que essa solução não seja real, não importa. O importante é que o líder tenha uma resposta para tudo".

Briga com os especialistas em saúde pública

Tanto Bolsonaro quanto Trump enfrentaram em menor ou maior grau desavenças com seus principais auxiliares em saúde pública.

No Brasil, a contenda desaguou na demissão do ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta, na quinta-feira, 17 de abril, depois de uma entrevista à Rede Globo em que o ministro dizia que os brasileiros não sabiam a quem seguir.

Nos Estados Unidos, o chefe do CDC, Anthony Fauci, temeu que seu destino fosse o mesmo após dar uma entrevista para a revista Nature em que criticava a postura pouco científica de Trump.

No dia 19 de março, Trump tuitou: "NÃO PODEMOS DEIXAR A CURA ser Pior do que o próprio problema". E no dia 23, em uma coletiva de imprensa da qual Fauci não participou, Trump afirmou:

"Nosso país não foi construído para ser fechado. Este não é um país que foi construído para isso '', afirmou, questionando a política de isolamento horizontal defendido por sua força-tarefa contra o coronavírus.

"Os EUA novamente estarão em breve abertos para negócios. Muito em breve. Muito antes de três ou quatro meses que alguém sugeriu", alfinetou. O país contava naquele momento com 46 mil casos e 550 mortes.

Essa postura, no entanto, durou poucos dias e em 31 de março, com 185 mil casos e mais de mil mortes, o presidente já pedia aos americanos para se prepararem para "semanas muito difíceis".

"Trump teve algumas semanas de moderação no discurso, enquanto que Bolsonaro expressou apenas flashes de recuos, muito rápidos e pouco sustentados", analisa Melo.

Para Smith, a diferença está na escala da epidemia em cada um dos países. "A situação aqui explodiu, temos o maior número de casos e o maior número de mortes. Trump teve de confrontar a realidade, o que ainda não aconteceu com Bolsonaro."

Trump, no entanto, pode ter entrado em uma nova fase de confronto com seu auxiliar médico nos últimos dias. Na última quinta, dia 16 de abril, juntos, eles anunciaram um programa para reabertura dos comércios e atividades.

Fauci deixou claro que o momento exigiria cautela, decisão estado a estado, e que um passo em falso poderia levar a um retrocesso total nas medidas de relaxamento da quarentena.

A direita apoiadora de Trump, no entanto, passou a fazer protestos pelo fim do isolamento, apoiados pelo próprio presidente, ao longo do fim de semana. Uma das hashtags que esses apoiadores adotaram era #FireFauci, ou, Demita Fauci.

Já no Brasil, a tensão entre Bolsonaro e Mandetta começou 24 horas depois da primeira fagulha entre Trump e Fauci. No dia 24 de março, em pronunciamento em rede nacional, Bolsonaro criticou o isolamento amplo e pediu "a volta da normalidade".

Em 8 de abril disse quase literalmente a mesma frase de Trump: "As consequências do tratamento não podem ser mais danosas do que a própria doença."

Enquanto isso, Mandetta defendia o isolamento horizontal e orientava a população a seguir as orientações dos governadores, em desacordo com Bolsonaro no assunto.

Nesta sexta, dia 17, durante a posse do novo ministro da saúde, Nelson Teich, Bolsonaro afirmou que "essa briga de começar a abrir para o comércio é um risco que eu corro. Porque se agravar, vem para o meu colo". O país contava com 33,6 mil casos e 2,1 mil mortes.

"Essa direita de Trump e Bolsonaro tem uma descrença forte em relação à ciência, e isso vale tanto para a questão do aquecimento global, quanto para a questão do coronavírus", diz Smith. Ela segue:

"Acho que Bolsonaro realmente acredita que o coronavírus não é um problema tão sério. É possível que ele tenha tido a doença, e tenha sido assintomático, ou que, se ele não se contaminou, com tantos auxiliares doentes a sua volta, ele chegou à conclusão pessoal de que não era tão grave assim. E afinal ele realmente não confia nos técnicos e está genuinamente preocupado com a economia, então ele minimiza a importância da coronavírus e maximiza os custos econômicos."

Segundo Melo, a confrontação com opiniões técnicas e científicas é uma marca indelével de um governante populista. Não importa quem seja o ministro da Saúde ou o chefe do CDC, essa tensão deve se manter ali sempre, em algum nível, por uma questão de quem detém a palavra final diante do público.

"O líder populista é infalível, se dobrar à ciência é demonstrar sua falibilidade. Aqui no Brasil o presidente é chamado de mito, há uma hashtag que diz 'Bolsonaro tem razão'. É isso o que as pessoas esperam, tem que vir dele as respostas, não de qualquer cientista", diz Melo.

Presidentes versus governadores

Na disputa entre manter quarentena restrita ou reabrir o comércio, Trump e Bolsonaro antagonizaram com os governadores. O conflito, no entanto aconteceu primeiro no Brasil.

"Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e confinamento em massa", afirmou o presidente, em pronunciamento à nação no dia 24 de março.

A queda de braço entre a instância federal e os governos estaduais chegou ao Supremo Tribunal Federal, que determinou que os governadores e prefeitos são soberanos sobre as ações de quarentena que imporão à população sob sua jurisdição.

Bolsonaro tem repetido que o que chama de "fecha tudo" vai aumentar o desemprego e nomeado os que considera responsáveis pela queda da economia, projetada em - 5,3% pelo FMI para o ano de 2020.

No dia 18 de abril, em sua conta de Twitter, ele postou: "Prefeito de Pirassununga/SP reabriu seu comércio por decreto, mas teve que voltar atrás por decisão do Governador de São Paulo". Embora o paulista João Doria, um ex-aliado, tenha se tornado seu principal desafeto, os governadores têm agido em união para se contrapor ao presidente.

A pouco mais de seis meses de concorrer à reeleição, Trump iniciou pressão sobre os governadores para que reabram a economia. Ele teme que resultados drásticos de uma recessão possam prejudicá-lo nas urnas.

No dia 13, ao mencionar a reabertura do comércio, ele chegou a dizer que caberia a ele, e não aos governadores, a decisão. ""Eu tenho a autoridade suprema", afirmou. No dia 17, ele passou a tuitar em letras maiúsculas: "Liberte Michigan", "Liberte Minessota", dois estados com governadores democratas que, para o presidente, poderiam decretar o fim da quarentena.

"Esse protagonismo dos governadores é novo no Brasil, onde o presidente sempre foi muito poderoso. Aqui, se o presidente não coordena as ações, os governadores resolveram tomar o protagonismo", afirma Carlos Melo, que prossegue: "Já nos Estados Unidos, que como o próprio nome diz é uma federação de verdade, é totalmente extemporânea essa tentativa do Trump de tutelar os governadores. Parece ser mais um ato em desespero por conta da proximidade das eleições".

Mas não é só isso. As bases eleitorais dos dois presidentes têm se demonstrado favoráveis ao fim imediato do isolamento. No último fim de semana, houve protestos de rua pelo retorno às atividades econômicas nos dois países. Para Smith, nenhum dos dois mandatários quer arriscar perder o apoio dessas bases.

"Em alguma medida todo político tem uma preocupação fundamental: ser reeleito. E não importa se a eleição é em seis meses ou em dois anos, o político não pode perder os eleitores cativos que o fazem eleitoralmente viável. Então, na dúvida, qualquer político vai se redirecionar para sua base e reforçar o discurso pelo qual ele é conhecido."

'A culpa é da China e da OMS'

Em 28 de janeiro, Bolsonaro lançou dúvida sobre as informações repassadas pelo governo chinês sobre a epidemia. Ao falar sobre a possível repatriação de brasileiros em Wuhan, ele afirmou: " A gente espera que os dados da China estejam reais, só isso de pessoas contaminadas. Se bem que são bastante. Mas a gente sabe que esses países são mais fechados no tocante à informação".

Naquele momento, Bolsonaro lançava o ponto inicial de um discurso que seria especialmente desenvolvido por Trump: o de questionar a China e lançar sobre o país a culpa pela epidemia.

Em 16 de março, quando os Estados Unidos contavam com menos de 5 mil casos mas o crescimento exponencial já se mostrava em marcha, o presidente americano passou a chamar o coronavírus de "virus chinês", contra recomendação do órgão federal de saúde do país, o CDC.

"Os Estados Unidos vão poderosamente apoiar as indústria que estão sendo particularmente afetadas pelo Vírus Chinês, como as companhias aéreas. Nós seremos mais fortes do que nunca", disse via Twitter. Ao longo de todo o seu mandato, Trump travou uma guerra comercial intensa com os chineses.

O passo seguinte do americano foi retirar o apoio financeiro da Organização Mundial da Saúde (OMS), medida que Trump anunciou no último dia 15.

Trump acusa o órgão de ter sido leniente com a China em relação às informações - tidas por Trump como falhas - repassadas sobre o novo coronavírus - na semana passada, o país revisou para cima o número de mortos na epidemia em Wuhan, os casos aumentaram em 50%.

Além disso, os americanos pretendem enfraquecer os organismos internacionais nos quais a China tem aumentado sua influência.

"Culpar a China é uma maneira de retirar de si mesmo a culpa pelos maus resultados do combate à pandemia nos Estados Unidos, além de ser especialmente conveniente porque o país já um inimigo frequente do trumpismo", afirma Smith.

Para Melo, por trás dos ataques americanos à China está a disputa pela hegemonia econômica mundial. "A pujança econômica dos chineses é uma ameaça geopolítica para os americanos, então eles estão travando essa guerra por poder, por tudo o que importa no século 21, como o controle das redes de internet 5G, por exemplo", diz o cientista político do Insper.

Dois dias após Trump adotar o termo "vírus chinês", o deputado federal Eduardo Bolsonaro arrastou o governo do pai para a disputa entre China e Estados Unidos, ao escrever em sua conta de Twitter: "Mais uma vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e liberdade seria a solução."

O deputado também celebrou o corte de verba dos americanos à OMS. Eduardo é ex-aluno de Olavo de Carvalho, para quem a OMS é apenas um instrumento dos chineses.

Embora o presidente Bolsonaro não tenha pessoalmente usado a expressão vírus chinês, o assessor especial da Presidência Arthur Weintraub ? irmão do ministro da Educação, Abraham Weintraub ? ironizou os críticos da expressão.

"Gripe espanhola, Ebola (rio africano), pode. Vírus chinês é racismo!", escreveu. O próprio Abraham voltaria à carga no tema no dia 4 de abril, ao sugerir, em uma postagem em que zombava do sotaque chinês, que a China era a principal beneficiária da pandemia: "Geopolíticamente (sic), quem podeLá saiL foLtalecido, em teLmos Lelativos, dessa cLise mundial? PodeLia seL o Cebolinha? Quem são os aliados no BLasil do plano infalível do Cebolinha paLa dominaL o mundo? SeLia o Cascão ou há mais amiguinhos?", escreveu o ministro.

Para Melo, apesar de a briga entre China e Estados Unidos seja algo distante do cenário brasileiro, que tem em ambos os dois principais parceiros comerciais, a agenda ideológica de Bolsonaro exigia esse tipo de postura em relação ao país.

"É muito indicativo que o presidente não tenha desautorizado nenhum de seus auxiliares ou o filho nos ataques", diz o cientista político do Insper.