O extremismo de direita que cresce no mundo e assusta a Alemanha
Relatório aponta um aumento global significativo do número de atos e de vítimas de violência promovida por movimentos e indivíduos de extrema direita. Na Europa, a Alemanha registra maior número de casos, segundo o documento.
Na noite de 2 de junho de 2019, Walter Lübcke foi executado com um tiro na cabeça em sua casa no Estado alemão de Hesse. Então presidente do distrito de Kassel, o político do partido da chanceler Angela Merkel recebia ameaças de extremistas de direita devido a suas posições pró-refugiados. Um ano depois do episódio, que chocou a Alemanha, teve início em 16 de junho o julgamento de dois neonazistas suspeitos pelo assassinato.
O homicídio de Lübcke, o primeiro de um político em atividade na Alemanha por extremistas de direita desde a 2ª Guerra Mundial, não é, porém, um caso isolado. Segundo o relatório À sombra da pandemia: a última chance da Europa, ou Peace Report 2020, publicado por um grupo de institutos de pesquisa alemães em junho, o país tem o maior número de casos de violência de extrema direita na Europa.
Entre 2016 e 2019, foram ao menos 16 vítimas fatais. Somem-se a esses casos os assassinatos com motivação racial de nove pessoas em Hanau, cidade próxima a Frankfurt, por um extremista em fevereiro deste ano (o suspeito também matou a mãe e depois cometeu suicídio).
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De janeiro a agosto de 2019, o governo alemão contabilizou 12.493 delitos "politicamente motivados" pela extrema direita, dos quais 542 foram crimes violentos. Além disso, apenas em 2016, registraram-se 988 ataques a centros de acomodação para solicitantes de refúgio no país.
Mas o avanço da violência de ultradireita não é um fenômeno alemão. Em 2017, um homem avançou com uma van contra um grupo de muçulmanos que seguia para uma mesquita em Londres, matando uma pessoa. Naquele mesmo ano, um atirador matou seis pessoas em uma mesquita em Quebec, no Canadá.
Em 2019, um homem descrito pela mídia como supremacista branco entrou atirando em duas mesquitas em Christchurch, na Nova Zelândia, matando 51 pessoas e deixando 49 feridas. Alguns meses depois, em El Paso, nos Estados Unidos, um atirador matou 23 em uma loja de departamentos no que foi visto como o pior ataque recente contra a comunidade latina no país.
Apesar do número total de ataques extremistas, em grande parte de origem islâmica, ter registrado uma queda global de 43% entre 2014 e 2018, diz o estudo alemão, a tendência de ações violentas de extrema direita é oposta. Segundo os pesquisadores, "nos últimos anos, o número de vítimas de ataques terroristas de extremistas de direita na Europa, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia aumentou significativamente".
"Existem muitas razões para [o avanço desses movimentos extremistas de direita], incluindo as plataformas sociais e o mundo digital. As ideias se espalham mais facilmente e informam os atos de violência, ou pelo menos os aspectos performáticos e execução desses atos", explica à BBC News Brasil Julian Junk, do Instituto de Pesquisa da Paz em Frankfurt (HSFK) e coautor de um capítulo do relatório sobre a transnacionalidade de movimentos de extrema direita.
O estudo trabalha com dados referente a ataques com mortes entre 2000 e 2020. Neste intervalo, esses casos passaram de cinco em 2000-2001, para 16 ao fim daquela década, somando 29 mortos. Na segunda metade do período, ocorreram 31 ataques, que deixaram 278 mortos. Ao todo, foram registrados 47 ataques e 307 mortes.
Desde 2014, 27 ataques de extrema direita ocorreram na Alemanha, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Reino Unido e Suécia. Ao menos 84 pessoas foram mortas somente em 2020.
Embora os dados tragam casos em democracias ocidentais, isso não significa que o fenômeno ocorre apenas nessa região do mundo, destacam os pesquisadores. De acordo com o relatório, "pouco se sabe sobre o terrorismo de extrema direita em Estados autocráticos como a Rússia ou a Turquia", por exemplo.
'Propensos a violência'
O serviço de segurança alemão atualmente classifica 12,7 mil de seus habitantes como extremistas de direita "propensos a violência". Destes, 53 entram na categoria de "ameaças" por serem conhecidos pela polícia ou suspeitos de terrorismo.
"Esse dado é de pessoas que estão conectadas com estruturas mais organizadas. É claro que temos muito mais se olharmos para grupos e movimentos antimuçulmanos, que muitas vezes estão interligados a extremistas de direita", diz Fabian Virchow, diretor de pesquisa sobre extremismo de direita na Universidade de Ciências Aplicadas em Düsseldorf.
Stephan E., acusado de atirar em Lübcke, por exemplo, tinha um longo histórico de violência: foi condenado por uma tentativa de ataque à bomba contra uma acomodação para solicitantes de refúgio em 1993 e pode estar envolvido em uma tentativa de assassinato, em 2003, contra uma professora opositora ao extremismo de direita.
Após confessar o assassinato de Lübcke, Stephan E. retificou sua declaração e apontou Markus H. como autor do disparo fatal. Esse segundo homem responde por auxiliar o homicídio e por treinar Stephan E. no manuseio de armas de fogo.
O caso ocorreu apenas um ano após a conclusão do julgamento de Beate Zschäpe, uma das figuras centrais da célula de extrema direita Nationalsozialistischer Untergrund (NSU). Ao longo de sete anos, o grupo executou nove membros da comunidade imigrante na Alemanha e uma policial em atos que incluíram dois atentados à bomba.
O principal alvo dos ataques de extrema direita têm sido minorias. Há, contudo, outro elemento recente na violência ultradireitista: ataques a políticos cujas visões de mundo diferem das suas. A prefeita de Colônia, Henriette Reker, por exemplo, foi esfaqueada por um extremista que se opunha a sua posição pró-refugiados. Ela sobreviveu.
E a bandeira anti-imigração ganhou força e popularidade, com o surgimento, há alguns anos do Pegida (Europeus Patrióticos Contra a Islamização do Ocidente), que faz reuniões públicas frequentes em Dresden, na Saxônia. Os eventos, não raramente, contam com a presença de políticos do Alternativa para a Alemanha (AfD), o terceiro maior partido do país ? de base nacionalista, anti-imigração e envolvido em constantes polêmicas devido a ligações de parte de seus membros com grupos neonazistas.
Em agosto de 2018, milhares de pessoas foram às ruas de Chemnitz, também na Saxônia, protestar contra a morte de um alemão em uma briga com dois estrangeiros. O protesto tornou-se violento, foram ouvidas palavras de ordem racistas e vistas saudações nazistas. Novamente, políticos do AfD foram vistos nas manifestações.
Hans-Jakob Schindler, diretor sênior do Projeto Contra Extremismo (CEP), diz que os grupos de extrema direita e seus simpatizantes são, hoje, bem mais visíveis. "Eles fazem marchas agora. Não se trata mais de um pequeno segredo em um pequeno local de encontro. Estão no Centro da cidade."
Mas teria o sucesso eleitoral do AfD estimulado a saída dos extremistas do armário? "Não sei o que reforça o quê", diz Junk. "Agora há uma voz no Parlamento com posições muito mais nacionalistas e extremistas na política alemã. Existe um terreno mais fértil e, portanto, algumas mudanças no que parece ser aceitável."
Novo perfil
O perfil da extrema direita alemã não é mais o ligado a skinheads ou jovens marginalizados. Iniciativas como o Movimento Identitário, surgido na França em 2012, que tem crescido em vários países europeus e visa "proteger a identidade europeia contra a islamização", são eficientes em esconder sua agenda discriminatória.
O grupo foi classificado, em 2019, pelas autoridades alemãs como extremista e com objetivo de "excluir pessoas de origem não europeia da participação democrática e discriminá-las". Com isso, passou a ser vigiado pelo serviço de inteligência.
"Essa nova geração de direita é muito lustrosa, bem falada e educada", destaca Schindler, que atuou na Organização das Nações Unidas (ONU) e no governo alemão em projetos de inteligência contra a Al-Qaeda, o Estado Islâmico e o Talebã. "Eles aprimoraram o estilo, limparam a aparência e a forma como agem. Todos têm empregos e são jovens."
Sob o argumento de preservar uma "cultura homogênea" e sua identidades, esses indivíduos acabam, entretanto, embalando ideias de preconceito e discriminação de outros povos, explica ele.
Como monitorar esses grupos?
No meio de junho, o diretório do AfD no Estado de Brandemburgo foi colocado sob vigilância por haver evidências suficientes de que o partido estava "lutando contra a ordem democrática livre", segundo as autoridades.
A decisão ocorreu no mesmo período em que o então líder regional, Andreas Kalbitz, foi expulso pela direção nacional por ter integrado a Juventude Alemã Fiel à Pátria, um grupo de extrema direita neonazista banido em 2009.
Mas monitorar grupos e indivíduos que possam representar uma ameaça à democracia alemã não é simples. Devido ao contexto histórico do país com a perseguição nazista a opositores e a repressão brutal na Alemanha Oriental, é necessário obter evidências concretas para vigiar um movimento político.
Quando esse processo é aprovado por um juiz, explica Schindler, há dois tipos de vigilância. A inteligência interna, cujo trabalho é monitorar, documentar e analisar os movimentos ? incluindo ordens judiciais para grampear telefones, infiltrar-se em grupos e monitorar correspondências e meios eletrônicos.
Caso a inteligência identifique a possibilidade de um crime grave, inicia-se o segundo tipo de observação. É quando a inteligência doméstica entrega as informações à Polícia Federal, que assumirá o monitoramento e tomará as medidas adequadas.
Ainda que os mecanismos de vigilância sejam colocados em prática, há problemas como a dificuldade em observar todos aqueles com potencial de violência e o fato de muitos grupos utilizarem aplicativos de mensagem criptografados para planejar atos violentos. Além disso, avalia Junk, o ideal é prestar atenção também no nível local, pois a maioria dos extremistas de direita não pertence a grandes estruturas.
Casos que envolvem políticos ou elevado número de vítimas costumam ganhar destaque nacional. Mas o potencial de danos de grupos "autônomos" pequenos e de indivíduos pode ser ainda mais assustador.
"É muito difícil evitar que alguém saia em uma sexta-feira à noite e espanque aleatoriamente um estrangeiro, porque não há planejamento ou comunicação envolvidos", diz Schindler.
"Como impedir alguém que, inspirado em propaganda de ódio, decidiu no sábado de manhã que era hora de matar um cara?", questiona.
Sem fronteiras físicas
Movimentos violentos de extrema direta têm se aproveitado da revolução criada pelas mídias sociais para espalhar suas mensagens, ideologias e narrativas ? além de inspirar ataques ? para além de suas fronteiras, alertam os pesquisadores do Peace Report 2020. E tudo isso sem que necessariamente cooperem entre si.
Os ataques terroristas de Anders Behring Breivik, que matou 77 pessoas na Noruega em 2011, e dos extremistas de Halle e de Christchurch mostram semelhanças em como esses agressores se apresentam, incluindo o uso de vídeos, transmissões ao vivo, manifestos e o conceito neonazista de resistência sem liderança.
Breivik, diz Junk, é um dos primeiros exemplos proeminentes de terrorista de extrema direita que não busca um levante popular, porque isso demandaria algum tipo de estrutura e/ou líderes. "[Sua abordagem mostrou] que os indivíduos podem resolver o problema por conta própria e que coisas horríveis são possíveis."
Aplicativos de mensagens, mídias sociais e fóruns na internet também permitem que militantes de extrema direita se conectem no mundo real com indivíduos com ideais semelhantes. Segundo os pesquisadores, há extremistas de direita europeus em campo de batalha na Síria ou Ucrânia. E a violência deles pode estar aumentando.
A revista alemã Focus, citando fontes da inteligência do país, informou recentemente que extremistas de direita estão recebendo treinamento paramilitar na Rússia. Esses "cursos" incluiriam o uso de armas e explosivos e combate corpo a corpo.
"Não é como se os [extremistas de direita] franceses não conversassem com os alemães. Eles realmente se ajudam, se comunicam, se apoiam financeiramente e com ideias. Vemos uma rede europeia que parece estar indo muito bem", avalia Schindler.
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