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Coronavírus: por que japoneses já usavam máscaras muito antes da covid-19

Para sociólogo, há um momento claro na história em que as máscaras são incorporadas aos hábitos dos japoneses, e esse momento é a pandemia da chamada gripe espanhola do início do século 20 - Getty Images via BBC
Para sociólogo, há um momento claro na história em que as máscaras são incorporadas aos hábitos dos japoneses, e esse momento é a pandemia da chamada gripe espanhola do início do século 20 Imagem: Getty Images via BBC

Alejandro Millán Valencia

BBC News Mundo

17/07/2020 19h22

A pandemia de covid-19, que infectou mais de 13 milhões de pessoas e causou quase 550.000 mortes em todo o mundo, nos mudou de várias maneiras: como nos relacionamos com os outros, como usamos os espaços, a maneira como viajamos, a maneira como nos vestimos.

E uma das "roupas" novas que agora fazem parte da paisagem cotidiana são as máscaras.

Inicialmente, a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomendou a máscara apenas para uso médico. Porém, à medida que o vírus se espalhou pelo mundo, seu uso se tornou popular como medida de proteção contra a covid-19.

Enquanto pessoas de diferentes países se adaptam a esse novo hábito, o Japão já usa a máscara como elemento de sua vida cotidiana há décadas - ou mesmo séculos.

"Quando alguém está doente, por respeito, usa a máscara para evitar infectar os outros", disse à BBC Mitsutoshi Horii, professor de sociologia da Universidade Shumei, no Japão.

"Mas não é a única razão pela qual os japoneses têm esse hábito. Não é apenas uma prática coletiva desinteressada, mas um ritual autoprotetor", acrescenta.

Vários analistas apontam que o uso generalizado da máscara, observado na sociedade japonesa há décadas, é uma das razões por trás da baixa taxa de infecções e mortes por covid-19 (até 15 de julho, o país registrava cerca de 22.000 casos e um total de 984 mortes).

É a taxa mais baixa entre os sete países considerados as maiores economias do planeta (EUA, China, Alemanha, França, Reino Unido e Canadá).

Mas como esse hábito surgiu na cultura japonesa?

'Hálito sujo'

Há registros que mostram que, durante o período Edo (1603-1868), as pessoas cobriam o rosto com um pedaço de papel ou com um ramo de sakaki, uma planta considerada sagrada em algumas regiões do país, para impedir que seu "hálito sujo" saísse.

"Existem algumas referências a esse tipo de prática nos livros, elas não eram tão comuns como são agora", explica Horii. "Naquela época, embora houvesse um conceito de limpeza, não havia tanta consciência dos efeitos que vírus e micróbios têm em nossa saúde como hoje", disse o sociólogo.

A verdade é que, segundo Horii, há um momento claro na história em que as máscaras são incorporadas aos hábitos dos japoneses, e esse momento é a pandemia da chamada gripe espanhola do início do século 20.

No Japão, essa pandemia causou cerca de 23 milhões de infecções e 390.000 mortes, em um país que naquela época tinha 57 milhões de habitantes.

"O governo japonês montou uma estratégia de vacinação, isolamento e uso de máscaras cirúrgicas ou máscaras faciais para impedir a pandemia, o que acabou ajudando a controlar a crise", diz Horii.

"O fato é que as pessoas assumiram isso como parte de seus costumes, apontando que as máscaras também eram uma barreira contra a poluição."

No entanto, o uso dessa proteção durante a pandemia de gripe espanhola era uma prática generalizada em todo o mundo.

Mas então, por que apenas os japoneses (e algumas sociedades asiáticas em menor grau) continuaram usando máscaras como parte de sua cultura?

Para o professor de história japonesa George Sand, da Universidade Georgetown, existem vários fatores que influenciam a adoção pelo país dessa peça de proteção como parte de sua vida cotidiana.

"Há uma crença falsa de que os japoneses adotaram essa medida porque seus governos são autoritários e há uma obediência cega aos regulamentos do governo, mas não é verdade", diz Sand.

"Eles fizeram isso porque confiavam na ciência. O uso de máscaras era uma recomendação científica, vista pelos japoneses da época, em um país em processo de industrialização, como adaptação ao mundo moderno, como avanço tecnológico", acrescenta.

Epidemia de Sars

Após a pandemia, apontam Horii e Sand, o que aconteceu foi um fenômeno de "fazer o que os outros começaram a fazer" e que ajudou a popularizar a máscara.

"No novo milênio, as máscaras no Japão se tornaram onipresentes, não tanto por causa de diretrizes estatais ou aspirações cosmopolitas, mas por causa do que é conhecido na psicologia como uma 'estratégia de enfrentamento' e uma escolha estética", diz Sand.

A estratégia de enfrentamento, de acordo com a teoria, abrange os recursos externos e internos que uma pessoa usa para se adaptar a um ambiente estressante.

Um dos maiores testes do hábito público de cobrir a boca na cultura japonesa foi a epidemia da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), que atingiu o sudeste da Ásia em 2003.

"Enquanto o vírus afetou fortemente os habitantes de outros países na região, no Japão não houve vítimas", diz Horii.

Na China, a Sars causou mais de 5.000 infecções e quase 350 mortes. No Japão, houve apenas duas infecções e nenhum caso fatal.

"E isso não apenas provou que os cientistas estavam certos quanto à eficácia das máscaras faciais para evitar o contágio, mas também reforçou seu uso", observa o acadêmico.

Horii acrescenta que a emergência que o país sofreu em 2011, após o tsunami que destruiu a usina nuclear de Fukushima, também ajudou a disseminar ainda mais a necessidade da proteção pessoal.

Com o surgimento do novo coronavírus, o Japão estabeleceu uma estratégia de combate diferente: não realizou confinamentos prolongados.

"É uma questão cultural. Eles adotaram o uso de máscaras por vários motivos: para proteger os outros ou a si mesmos, esconder sua falta de maquiagem, preservar sua privacidade ou simplesmente porque pensavam que as máscaras pareciam boas, mas nunca por imposição do governo", conclui Sand.

"Diante de uma pandemia da gravidade da que estamos vivendo, pode fazer a diferença entre centenas de milhares de mortes que estamos vendo nos Estado Unidos ou aquelas que o Japão tem, que não atingiu nem 1.000", acrescenta.